Capítulo 1

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A cena se repetia em minha mente. Era meu último dia de aula e eu voltava para casa sentindo o peso da minha mochila e a fome que me indicava que era hora do chá e minha mãe me esperava. Mas havia uma surpresa na porta de casa. Onde estava o cheiro delicioso de biscoitos quentes de todos os dias? O gramado que ela prometera aparar ainda estava intocado. As imagens eram tão vivas quanto a lembrança do corpo dela caído no piso frio do banheiro da casa simples onde nós morávamos, numa pequena cidade do Canadá, e ao seu lado, um pequeno frasco de veneno. Algo tinha que estar errado. Oh é claro eu devo ter entrado na casa errada e aquela mulher tão parecida com minha Regina devia ser somente uma sósia, alguém igual... E onde estava o meu pai? Por que ele não estava lá para fazer a tentativa inútil de aliviar a minha dor? Porque é isso que os pais fazem... A menos que exista uma madrasta.


Meu nome é Hannah Melissa Callaway, tenho dezesseis anos e o suicídio da minha mãe me atormentava noites a fio. Meus gritos ecoaram mais uma vez no quarto de hóspedes de Arthur, meu padrinho e segundo pai, a pessoa mais maravilhosa que eu conheço e que me acolheu depois da tragédia, sem pestanejar. Ele me viu nascer, literalmente, a minha mãe não teve tempo sequer de sair de casa e ele era a pessoa mais próxima no momento. Quando ele me pegou em seu colo pela primeira vez, disse que eu era linda, coberta de vernix e disse que eu cheirava a mel. Foi o que originou o meu nome.


Sempre que os pesadelos ocorriam Arthur quebrava algum objeto de vidro que estivesse a caminho do quarto de hóspedes na pressa de verificar se eu estava bem. E ele sempre encontrava a mesma cena: sentada com a cabeça sobre os joelhos, soluçando sem parar. Às vezes ele me falava que ia ficar tudo bem e me abraçava, às vezes ele só me olhava, e depois voltava a dormir. Mas de alguma forma ele tinha o dom de me acalmar apenas com o olhar. Eu não sei o que eu faria se não o tivesse, certamente pensaria em me matar também. Se Arthur não tivesse me acolhido eu teria que ir morar com meu pai, Shannon, minha madrasta que por uma infeliz coincidência é filha de meu padrinho, e também com Amanda a minha nova irmã adotiva.


Eu não lembro muito bem o que aconteceu depois que entrei na casa e vi o corpo da minha mãe imóvel, eu lembro que tudo ficou escuro e frio, e como poderia em pleno verão? Depois eu ouvi meus próprios gritos chamando desesperadamente pelo seu nome, mesmo sabendo que ela não ia acordar. Acordei no hospital algum tempo depois, um pouco entorpecida, embora ciente do que havia acontecido. Minhas mãos estavam enfaixadas em punhos e eu me perguntei mentalmente o porquê. Meu padrinho me olhava com um incrível ar de incredulidade e eu também me perguntei o motivo. Será que ele não tinha conhecimento? Era óbvio que tinha. Todos na cidade sabiam agora. E eu me culpava de certa forma por não ter feito nada quando a tristeza dela era tão evidente em sua face, quando a separação a arruinou de tal modo que ela ficou irrecuperável... Pelo contrário eu a culpava por não reagir, por não querer sair de casa, por não querer se cuidar, por viver do passado. E naquele momento eu estava tendo todos os sintomas dela e sim, era horrível. Era pior ainda o fato do meu pai não estar presente. Eu encarei meu padrinho em busca de alguma resposta, mas por um momento ele apenas acenou para mim, e passou-me um pequeno pacote rosa dizendo:


Trouxe para você algumas balas de morango. As suas favoritas. Seria bom se você se levantasse também, ou vai ser bem mais doloroso depois.


Como se nada tivesse acontecido. Que coisa tola a se dizer a alguém que acabou de perder a mãe. Eu devia sentir raiva, mas não consegui. Olhei novamente para as minhas mãos e delas para o meu padrinho. Então ele disse:

AuroraWhere stories live. Discover now