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A culpa é um sentimento corrosivo, que vai te destruindo por dentro pouco a pouco, até não restar nada além do desespero e arrependimento.

Talvez eu esteja sendo um pouco dramática, mas isso é porque estou me sentindo péssima por não contar para a minha melhor amiga que o seu futuro namorado (como ela gosta de dizer), me beijou.

— Você está tão aérea hoje — ouço Letícia falar e suspiro, ainda olhando para o quadro negro e tentando entender como o Círculo de Krebs e todas as suas reações químicas funcionam.

— Eu odeio química. É isso — minto.

Na verdade, eu realmente odiava química. Estou inclusive pensando na possibilidade de mudar de curso, porque certamente irei repetir essa cadeira e isso não é nada bom.

— Calma, Lu. Vai dar tudo certo, eu entendi direitinho e em casa posso te ajudar a estudar — Letícia lança seu sorriso fraternal e isso só faz com que eu me sinta mais culpada.

Foi só um beijo, eu sei.

Mas eu gostei. É isso, eu gostei de beijar o babaca master da faculdade inteira e, mesmo tentando, não conseguia parar de pensar na porra do beijo que ele havia me dado.

Olhei meu relógio de pulso pela terceira vez, apenas para constatar que poucos minutos haviam se passado e que ainda tínhamos mais uma hora de explicações sobre Krebs pela frente.

Pelo olhar periférico notei que Letícia estava com o celular na mão, um sorriso tosco no rosto e digitando rapidamente. Virei a cabeça para encarar a minha futura professora amadora que, ao invés de prestar atenção na matéria, estava de papo no WhatsApp.

— Você está falando com quem? — sussurrei, de modo com que apenas ela me ouvisse.

— Arthur — ela respondeu sorrindo, um sorriso que parecia querer saltar do rosto.

Revirei os olhos e senti algo ácido no meu estômago, muito similar a quando sentimos ciúmes.

— Estão falando sobre o que? — questionei, me lamentando internamente por estar tão interessada assim.

— Ah! Nada de mais — Letícia suspirou. Aquele suspiro apaixonado que você só dá quando está totalmente iludida e fodida na relação. — Acho que vamos nos ver hoje.

— Achei que você ia me ajudar... — resmunguei.

— Eu vou! — ela afirmou. — Sou multiuso, posso fazer várias coisas durante as vinte e quatro horas do meu dia, fica na boa.

— Querem compartilhar com a turma alguma coisa? — A voz da professora soou mais alta que o normal, fazendo-me corar e rapidamente virei para frente.

— Desculpa, era minha mãe, você sabe, mães podem ser bem preocupadas às vezes — Letícia sorriu, colocando em prática suas desculpas esfarrapadas e seus dons artísticos.

Não era novidade para ninguém que a professora Renata tinha um filho pequeno e era considerada uma mãe coruja. Várias vezes chegava na sala contando sobre algo engraçado que o garoto fez ou aprendeu.

— Principalmente quando os filhos saem do ninho — Renata completou, sorrindo para Letícia de forma amigável. — Fique a vontade para sair da sala, caso precise atender o celular. — O olhar da professora passou de Letícia para mim e o sorriso amigável foi substituído por um franzir de testa. — Você não foi bem na última prova, Luísa, aconselho que se concentre mais.

Assenti, sorrindo sem mostrar os dentes e lancei um olhar ameaçador para Letícia. Ela podia ter me incluído na sua jogada e não me deixado ali para ser xingada em público.

Talvez seja o universo me castigando.

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— Antes de irem embora, gostaria de avisá-los que semana que vem teremos uma prova, sugiro que estudem, pois não pretendo facilitar — Renata falou, antes que todos deixassem a sala.

Aquela era a deixa para que eu me afogasse em lágrimas em breve.

Caminhamos pelo corredor lado a lado. Letícia continuava tagarelando via WhatsApp com o Sr. Babaca e eu seguia em silêncio.

— Se importa de voltar sozinha?

— Quê?! — exclamei. — Por quê?

— Vou encontrar com o Arthur, nós vamos comer algo e depois ele me deixa em casa.

— Ótimo, já estou sendo deixada de lado — resmunguei.

Era verdade. Eu realmente me sentia assim, mas 80% do meu ciúme eram por causa do garoto e não porque minha melhor amiga estava entrando em um relacionamento.

— Prometo te recompensar depois — ela disse sorrindo.

— Prometeu limpar a casa durante um mês e até agora só quem limpou fui eu.

— Nossa! Você é muito rancorosa — Letícia falou, dando de ombros —, já faz uma semana, podia esquecer isso.

O problema é que eu nunca esquecia.

Fazia uma semana desde a fatídica noite em que Arthur Kannenberg havia me beijado naquele telhado e depois agido como se nada tivesse acontecido. Ok, não é como se eu estivesse esperando um carro de som em frente ao edifício com juras de amor, mas acho que parte de mim esperava pelo menos um mensagem, por mais errado que fosse.

No entanto, o mais estranho foi que depois de ter agido como um babaca que não estava interessado em Letícia, ele passou a mandar constantes mensagens para ela, convidando para sair, como se realmente estivesse interessado durante todo esse tempo; como se não tivesse me beijado naquele terraço!

— O Breno vai também — Letícia comentou. — Parece que eu já posso te recompensar — ela sorriu maliciosamente.

— Não estou interessada.

— Por que não? Ele é gato, gente boa e está afim de você.

— Caso você tenha esquecido, a última vez que vi o garoto, ele estava aos beijos com outra, em uma festa que supostamente fomos juntos — respondi, soando ríspida demais.

— Rancorosa — Letícia comentou novamente. — Vamos, vai? Assim você não se preocupar em fazer janta e nós podemos estudar juntas quando voltarmos, de barriga cheia.

— Não posso gastar, faltam duas semanas para receber.

Nós não trabalhávamos, mas às vezes fazíamos alguns bicos para ganhar um extra. Fora isso, minha mãe depositava uma quantia necessária para eu me manter durante o mês.

— Deixa de ser boba, eu estou te convidando.

— Você também não deveria gastar — adverti.

Apesar da situação financeira de Letícia ser um pouco melhor que a minha, ainda assim não éramos ricas e não nos dávamos ao luxo de gastos extras.

— Minha mãe mandou um pouco mais esse mês — Letícia explicou — você sabe, recebeu a primeira parcela do décimo terceiro. — A loira sorriu e me olhou com aquele olhar que eu já conhecia bem. — Por favor! Não me faça prometer limpar a casa de novo, você sabe que eu odeio tanto quanto você.

— Tudo bem — suspirei —,mas antes das nove estaremos em casa, ok?

— Prometo!

Dez Vezes VocêWhere stories live. Discover now