•A benzedeira•

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A testa da negra suava enquanto ela mexia com a colher de pau o cozido no tacho enferrujado

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A testa da negra suava enquanto ela mexia com a colher de pau o cozido no tacho enferrujado. O clima no alto do morro da Fazenda Grande do Retiro não estava dos mais amenos e a singela casa com paredes de tijolos sem reboco e telha de fibrocimento contribuía para aumentar o calor.

- Jura, jura que me dá o seu amor...

Ora soltava um verso de uma melodia de sua juventude que rapidamente surgia em sua memória, ora secava com o avental o líquido que escorria de sua testa, pescoço e bigode.

Enquanto provava a canja no peito da mão, a porta de madeira comida por cupins é aberta de repente, fazendo ranger as dobradiças. Ela se sobressalta, solta a colher e leva a mão ao peito com o susto.

Se fosse algum de seus netos... Apanhariam feio, sabiam da idade avançada da avó e com um susto desses seu coração poderia parar a qualquer instante.

- Oxente, mas além de vermes na barriga tem bicho na cabeça também, é? Trate de... - Quando viu o responsável pelo susto emudeceu, poderia até dizer que chegou perto de ficar pálida.

- Precisamos da sua ajuda, senhora. Estamos com problemas. - O homem vai entrando pela vão da porta sem esperar resposta e joga o corpo quase sem vida no sofá surrado da pequena casa.

A velha limpa as mãos calejadas em seu avental e passa elas pelas madeixas mal tratadas em uma tentativa de ficar mais apresentável. Encontrava desfalecido em seu sofá ninguém menos que o prefeito, quem diria que ao acordar quando repassava em sua cabeça as tarefas diárias fosse pensar em uma visita dessas.

- Eu-eu acho que não posso ajudá-los. Devem estar enganados, aqui não mora nenhum médico. - Ela se abaixa para pegar a colher que havia deixado cair para evitar o contato visual com o homem.

Levou a mão ao rosto afim de impedir que a luz do sol que invadia a cozinha pela janela deixasse sua visão embaçada.
Suas mãos tremiam mais que vara verde e não sabia se era pelo susto ou pelo medo que percorria por suas veias. Sempre acreditou que todos nascem para um propósito, que ninguém se materializa na Terra em vão, em algum momento aconteceria um feito marcante. Então esse era o dela? Ser conhecida por encontrarem o prefeito de Salvador morto em sua casa?

- A senhora sabe que pode ajudá-lo. Acredito que foi envenenado e nenhum médico consegue descobrir o veneno para criar o antídoto. Ele está há uma semana desacordado, os batimentos estão cada vez mais fracos, a respiração falha. Olhe seus pés e mãos o quão inchados estão. Se não fizer algo logo, ele morrerá.
Era possível ver o pânico nos olhos do homem, rugas de preocupação marcava sua testa e apesar de aparentar ser novo, tinha a barba grisalha.

De certa forma ele se sentia envergonhado por estar em um lugar tão humilde como aquele. Observava a medíocre decoração, porém logo abaixa os olhos para os pés para não ficar encarando.

- Creio em Deus pai! O senhor não pode chegar em minha casa, ir entrando ligeiro e jogar uma responsabilidade dessas em cima de mim. De jeito nenhum. Não posso ajudá-lo. Volte amanhã com uma mancha que não consegue tirar ou uma comida que precisa fazer e farei de bom grado, mas isso não, não posso fazer. Melhor levar ele daqui. - Ela vai até a porta e aponta para que saiam.

A GAROTA QUE SE PERDIA (CONTOS)Where stories live. Discover now