•Metáfora•

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Por muito tempo eu fui meu próprio mundo

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Por muito tempo eu fui meu próprio mundo. Não importava as dores, as angústias ao redor, dentro de mim eu tinha meu refúgio. Até que um dia outra pessoa entrou dentro de mim, no meu mundo, roubou meu espaço.

Minha história merece ser contada, não sou um animal. Tenho que expor a vez que decidi sair da minha bolha e quando voltei alguém tinha invadindo meu mundo.

Eu de fato não queria sair do meu lugar. Lá não havia tigres me perseguindo, não escutava mais vozes. Parei de sentir medo das paredes, uma vez que nelas já não ecoava mais nada, nenhum estrondo amedontrador. Era eu, minha árvore e meu paraíso.

Em um certo dia alguém bateu na porta, em geral ninguém me visitava, abri aquela porta de madeira e naquele instante a dor voltou. Rápida e dolorosa como uma apunhalada.

- Por favor, me deixe. Dói tanto.- Eu implorava para o médico, queria minha privacidade novamente.

- Pauline, acalme-se. Está tudo bem.- Esse era meu nome. Pauline. Mas há muito tempo eu não me chamava assim, eu era Daphne, Maria, Ruth, eu era quem eu quisesse.

Ele me abraçou forte para que eu parasse de me debater, eu não queria que ele me prendesse, eu gostava de ser livre. Eu quero ser livre.

Nesse instante começou a chover na minha casa da árvore, tudo estava desabando e eu sentia que eu estava me desfazendo simultaneamente. Relampeou, eu me vi novamente nos braços daquela pessoa. Ele colocou em minha boca um remédio, um pedacinho do céu. Senti-me feliz novamente. Por que alguns acham que existe o "felizes para sempre"? Se o que nos torna felizes são as pequenas momentâneas coisas como chupar um picolé?

Acho que esse homem era Deus, se encaixa bem na descrição que minha mãe fazia: eu mal enxergava seu rosto, não falava com ele, porém parecia me entender, estava todo vestido de branco, e me fez feliz. Tudo se encaixa, ele era Deus.

- Saudades da minha mãe. - Senti meus olhos lacrimejarem e a tempestade voltando, a vontade de mandar uma carta para ela me invadiu, há muito não me visitava, sentia intensamente sua falta. - Mãe, não sou um animal. Sou Daphne, Maria e Ruth, mas não sou um animal.

Desde quando diagnosticaram minha doença, minha família não me tratava da mesma maneira. Todos escolhiam cautelosamente a palavra que ia usar e quando fui internada, piorou. Apenas minha mãe me visitava hora ou outra, mas o sentimento em seus olhos, de que havia perdido sua filha, acabava comigo.

Meu pequeno mundo desapareceu de vez, e por incrível que pareça não me sentia mal. As paredes de madeira com farpas haviam sido substituídas por outras brancas de gesso. As flores de margaridas com quem eu conversava todas as manhãs deram espaço para pessoas que ora estavam felizes, ora me jogavam o café. Mas eu as entendia, talvez alguém estivesse também tentando roubar seu mundo, e elas deviam dar uma chance, talvez perder o chão não seja algo tão ruim assim.

- Meu nome é Pauline.- E dei um largo sorriso para ele.

- Sim. Você está progredindo, Pauline. - O médico retribui o sorriso com sinceridade.

- Eu sou Pauline e não sou um animal.- Levantei e gritei para todos, sentia vontade de que todos naquela sala de jogos que cheirava a mofo, até os que não conseguissem, escutassem. - Meus amigos, eu sou Pauline e não sou um animal.

Aquele moço, segurou a minha mão e me ajudou a descer da cadeira. O seu rosto agora parecia pedir desculpas, acho que foi porque fiz alguns na sala gritarem e outros chorarem, não estavam habitados com berros. Eles também deviam dizer para si mesmo que não eram animais.

Seguro o rosto dele com minhas duas mãos, uma de cada lado de sua face e solto as palavras. Eu não precisava me prender a mais nada, eu era livre. Um livre diferente da minha casa da árvore, mas ainda sim, livre.

- Você é meu Deus, e eu te amo.

Seu rosto era impassível, entretanto, dentro dos seus olhos eu via. Talvez ele tenha me dado uma resposta, lá no seu interior, por dentro dos seus olhos.

Queria ter uma história melhor para contar, queria escrever um livro melhor. Mas infelizmente o que eu tenho é esse. Quando encostei no gélido lápis quase sem ponta, um sentimento me invadiu. Naqueles papéis em branco sentia vontade de descrever meus dois mundos. Os dois mundos carregados de singularidade. Mas, aquela sincera cor de creme merecia mais emoções, merecia a verdade, mesmo que o vermelho sangue desse lugar ao creme. Então conto aqui a realidade, o mundo sem casas na árvore.

Em uma noite descobri que aquele homem que eu havia me aproximado tanto era realmente Deus. Porque Ele é aquele que gera vidas. Mas aquilo me detonou por inteira. Eu estava grávida.

Se procurarem no dicionário a definição de recuperação achará "voltar ao normal", ele me dizia muito que eu estava me recuperando bem. No entanto, eu queria mesmo me recuperar? Queria voltar ao normal?

Essas perguntas me atormentavam e a noite era pior, de certa forma, me via regredindo, eu sabia que estava voltando para minha árvore. Ele achava que eu estava reabilitada mas longe disso, me via cada vez mais perdida.

Hoje eu obtive a resposta, ele gostava muito de mim. Tanto que me deu uma vida, mas essa de certa forma roubou a minha.

- Pensei que você tivesse se tornado meu porto seguro, mas esse sempre fui eu, você me tirou isso. - Eu chorava e lhe esmurrava o peito.

- Pauline, vamos dar um jeito nisso. Eu posso perder meu emprego, há muita coisa em jogo. - Ele disse meu nome para que eu não me esquecesse de quem eu era, porém novamente eu era Daphne, Maria e Ruth.

- Tem alguém dentro de mim.- eu berrava perdida, afogando nas minhas próprias lágrimas.- Tem uma vida roubando meu espaço.

Em um hospital psiquiátrico o que não faltava era médicos, macas e medicamentos. Mas naquele dia não contávamos com todos aqueles luxos. Estávamos na lavanderia, eu jogada em uma mesa fria de metal. As paredes falavam, as roupas davam formas a bichos, sinto uma imensa dor, porém já estava acostumada. Começo a perder meus sentidos mas não acontece como de rotina e tudo fica preto, na verdade tudo fica vermelho. Há sangue para todo lado.

Não queria matar, não queria tirar uma vida, mas eu era meu único porto seguro, ele não devia ter me invadido, o bebê, não devia tentado me roubar. Mas espero que um dia ele encontre sua própria casa da árvore.

- Mamãe, eu sou mais que um aborto, eu não sou um animal.

Nota: O objetivo do conto era realmente ser confuso, se você ficou, parabéns era essa a intenção!!! Essa confusão é para exemplificar o estado da Pauline, como as coisas passavam em sua cabeça de forma não linear. Beijos e obrigada pela leitura.❤

A GAROTA QUE SE PERDIA (CONTOS)Where stories live. Discover now