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Quando o telefone toca, eu fico na esperança de que seja a amiga da barista, Briana, então pesco o aparelho rapidamente no bolso afim de espiar a tela. Para a minha surpresa, entretanto, é o meu pai.

Eu não falo com ele desde que me arrumou a vaga no bistrô Paris e claro que meu primeiro instinto é rejeitar a ligação, mas pela primeira vez desde o divórcio, acho que eu quero de verdade conversar com ele. Ouvir o que quer que tenha a dizer.

Não que o beijo que eu dei no Pedro enquanto namorava o Thomas, se compare à traição do meu pai em tamanho e gênero; mas a esse ponto, eu sinto como se infidelidade fosse um defeito de personalidade que eu puxei dele. Acho que é por isso que preciso entendê-lo. Me entender. Então recebo a chamada.

— Filha... ãhm... você está em aula agora? — Sua voz é hesitante, como em todas as vezes que tenta fingir que a nossa relação pai-filha ainda é a mesma de quando eu era só uma garotinha, e ele era o meu herói.

— Não — minha resposta normalmente viria seca e sem explicações, porque eu não lhe devo nenhuma, mesmo assim, prossigo: — Estou passeando na Hollywood Boulevard agora e tentando manter a cabeça longe de... ãh... alguns problemas que apareceram.

— Legal! — Ele soa animado. — É que eu estou de passagem na cidade... e eu... ãhm... que tal a gente se encontrar?

Eu interrompo os passos, ficando em silêncio por um ou dois instantes. Faz bastante tempo que eu não o vejo pessoalmente. Na verdade, costumo evitar qualquer situação em que isso precise acontecer, mesmo nas datas comemorativas, sempre arrumo um pretexto.

— Sei que o seu aniversário foi há um tempo... — a hesitação no seu tom retoma. — Mas eu comprei dois tíquetes para o parque da Disney que você gostava, e pensei...

— Eu não sou mais uma menininha — o interrompo.

— Eu sei... eu... acredite... preferia não saber tanto assim, mas é... hãn... eu... eu sei que você não é mais uma criança. Eu sei.

A ênfase no seu tom e o modo como se embola inteiro de nervosismo torna evidente algo que, até então, nem tinha passado pela minha cabeça: Ele viu a foto. Viu a garotinha que costumava levar para ver as princesas na Disney toda entregue a um cara num terraço escuro. E talvez eu devesse sentir vergonha, mas só consigo pensar que tudo bem, tá aí uma pessoa que não pode julgar meu caráter.

Talvez por esse motivo, ou só porque preciso de um pretexto para ficar longe do campus por mais algumas horas, aceito o convite.

— Mesmo assim ainda gosto da Disney — admito.

Quase posso ouvir o sorriso que ele dá.

— Me passa sua localização. Eu vou te buscar.

Algum tempo depois, o sedan preto para junto ao meio-fio. Os vidros escurecidos escorregam para baixo, revelando o rosto cansado contornado por um cabelo cinza bem penteado. Pequenos vincos marcam o canto dos lábios.

Entro pela porta do carona com um sorriso pequeno.

— Você está muito bonita — ele tenta quebrar o gelo. — Tão... adulta.

Obrigada —murmuro baixo e passo o cinto de segurança.

Uma atmosfera de silêncio estranha preenche o carro ao longo do trajeto, fazendo parecer que nós somos dois completos estranhos, o que não é tão longe de ser verdade, então eu resolvo ligar o som.

Não demora mais que dez minutos para a voz do Pedro aparecer na rádio cantando Ninguém Mais Que Você. Corro com os dedos para desligar, tá aí uma música que eu não quero escutar hoje. Pelo olhar curioso que o meu pai lança, imagino que a minha reação foi muito óbvia — ou ele só pesquisou um pouco sobre o homem com quem a filha foi fotografada dando uns amassos.

Ninguém mais que nós doisWhere stories live. Discover now