Capítulo 4.3 - Final

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O zumbido quase inaudível do ar condicionado acompanhava o clima aconchegante do quarto escuro. O corpo de Silvério Saduj e da esposa afundavam de leve o colchão da cama king size, o edredom garantia o conforto do casal. Havia o cheiro de sexo no ar, deviam ter feito amor pouco antes do sono. Era quase como se os rostos adormecidos formassem marcas de alegria.

- Paaaaaai!!!

E então alguém arrancou a máscara da alegria e vestiu a da angústia.

Saduj arremessou a coberta no ar e saltou da cama. O tapete felpudo amorteceu os calcanhares batendo forte contra o piso e o detetive disparou numa corrida para o quarto da filha. Ah, sim, eu ouvia o coração do homem atacar o tórax com fúria, parecia procurar caminho para saltar do peito. Apesar do ar climatizado, o suor frio escorreu pelo meio da espinha. A esposa despertou lenta, olhou o marido disparar porta afora, os olhos se apertaram contra a luz do corredor que invadiu o quarto.

- Amor? O que...?

- Filha...!

Tão rápido ele cruzou a porta, congelou ao me ver parado no meio do caminho, entre seu quarto e o da filha. A cor do coitado pediu licença e se retirou, os lábios tremiam, parecia que ele havia beijado um punhado de cal. Os olhos marejaram, com piscadelas rápidas e incompletas e as sobrancelhas comprimiram-se uma contra a outra. Não deve ser fácil ver um vampiro levitando sua filha além do parapeito de segurança, prestes a cair direto nos últimos degraus da escada.

- N-nã-nãããooo...

- Eu avisei, Saduj. Eu disse que voltaria se você tentasse outra punhalada em minhas costas. - Movimentei a mão e fiz o corpo da garota girar no ar e ficar de ponta-cabeça. A queda a mataria sem dúvidas.

- Eu dei... eu dei o endereço... eu dei... Fiz o que você pediu...

A esposa aproximou-se dele, tocou-o no ombro.

- Silvério! Amor, você tá me assustando! O que...

O homem só apontou para mim. As lágrimas verteram. A mulher procurou para onde ele apontava sem entender o que queria mostrar.

- Algol. Eles não tinham como saber, Saduj. - Mesmo estando no meio do corredor, minha voz partiu da janela do quarto do detetive.

O homem virou-se num repelão, livrando-se dos braços da esposa. Além de me ver no corredor, viu-me também sentado no parapeito da janela do seu quarto, com as pernas votadas para dentro, quase tocando o piso. Os dois Georges falaram ao mesmo tempo:

- Eles não tinham como saber deste nome, traidor.

Passaram-se uns quatro segundos de silêncio, que devem ter sido uma eternidade para ele. Baixou o rosto repleto de culpa, a esposa o afagava e já quase chorava também, alisava os cabelos do marido e sussurrava:

- Amor, você precisa acordar. Estou aqui. Estou aqui!

Apenas os soluços do detetive preenchiam o silêncio de novo.

E minha voz arranhada de ódio estilhaçou qualquer esperança que ele ainda tivesse:

- Eu avisei, Saduj!

Libertei o corpo da menina da levitação. A pequena mergulhou contra os degraus lá embaixo.

Os ossos bateram contra a escada e rolaram pelos últimos degraus, os sons secos das pancadas viajaram pelo ar. Segundos para findar uma vida que mal havia começado.

- Nãããããããããoooooo!!!! Maldito, não!!!...

Ele correu até o parapeito, agarrou-o com as duas mãos, tentando sacudi-lo.

- AAAAAAAAAHHH!!!!! Aaaaaaaaaaaah!!! Minha filhinha... nãonãonãonãonão... - Saduj se encolheu em posição fetal contra a grade do parapeito.

A esposa mais uma vez o abraçou e se uniu ao marido no chão.

- Silvério, isso é um pesadelo, Silvério! Amor, vai ficar tudo bem! É um pesadelo! Ah, meu Deus!

Ele tentou falar algo, a voz entalou, o rosto se tornou uma cascata de lágrimas. Silvério era um pedaço de gente inútil e desesperada.

- Silvério, amor! Você precisa ficar aqui comigo! Amor! Amor! - A mulher deu um tapa leve no rosto do marido, que, enfim a notou. - Estou aqui com você, meu bem! Vai já passar! Vai já passar.

Ela o acompanhou em lágrimas, embora fossem leves, de pura preocupação com o marido.

- Esta é a última vez que o aviso, Saduj! Por isso direi pausadamente: Não... ouse... me... trair... de novo!!

Mesmo eu estando no corredor e na janela quarto dele, a porta do quarto da filha se abriu. Ficava no ponto oposto do corredor. Eu segurava a maçaneta, pelo lado de dentro do cômodo; eram três Georges agora. Estiquei o braço na direção da cama da criança. A menina ressonava tranquila, dormindo o sono dos justos. Saduj engoliu o choro e arregalou os olhos. Girou de novo na direção da escada, olhou para os últimos degraus.

Não havia nada.

Voltou a olhar para mim.

Fiz uma mesura, ajustei o paletó preto, minhas imagens, do corredor e janela, desapareceram. A mulher me olhava sair do quarto da filha com as sobrancelhas franzidas, a boca aberta e sem som. Parei à frente dos dois, dei três tapinhas no rosto do policial.

- Sei que ainda poderei precisar de você e agora acho que estamos entendidos, não? Melhor não tentar a sorte de novo! - Pisquei meu olho cego.

Deixei os dois, agarrados, vendo-me ir embora.

Os sapatos sociais lustrados martelavam os degraus da escada, ajustei a gravata cinza enquanto descia e penteei os cabelos castanhos com os dedos das duas mãos.

A porta de entrada bateu atrás de mim.

O aroma da noite me recebeu.





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Abraços do Cavira.

Memórias Rubras. Episódio 2 - Lança.Where stories live. Discover now