Capítulo 1.5

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Passei aquele dia em um quarto de pousada barata. Não arriscaria receber uma visita enquanto dormia. Vedei qualquer possibilidade de entrada de raios solares e o quarto estava perfeitinho. Ao cair da noite, passei pela recepção de paredes descascadas e balcão branco encardido. Paguei o valor da diária para um velho fedorento, com hálito de cigarro pé-duro e cachaça. Ele usava uma blusa de botões de cor indefinível tamanha era a sujeira. O ventilador de teto girava lento e criava um ruído irritante no ambiente.

Saduj, sempre eficiente, havia me ligado para passar um endereço.

Estacionei o carro do outro lado da avenida. Olhei o prédio antes de sair do veículo, havia uma luz acesa no trigésimo andar. Esperava, do fundo do coração, que eles não tivessem outro Russo.

O detetive borra-calças disse que um dos caras mais influentes dos Lança, o braço direito de Matheus, trabalhava no edifício. O que ele não sabia era que ao invés de receber Saduj me receberia.

Concentrei-me na aparência do detetive e atravessei a rua a passos firmes. Semblante de raiva. Ainda dava para sentir a dor daquela fratura exposta.

Teria troco. Ah, se teria!

O prédio era repleto de vidraças fumê, tinha um design bem moderno. Mais ou menos pelo vigésimo andar, na lateral direita, era possível ver a grande bandeira da empresa de informática que dominava o mercado, sustentada por um mastro que saia da parede.

Bati na porta de vidro de entrada. Havia um guarda sentado à recepção, ergueu a vista e veio ao meu encontro. Segurava uma espécie de terço, diferente do cristão, apertava uma das contas.

— Pois não?!

— Meu nome é Silvério Saduj, sou detetive. Tenho uma visita marcada com Thiago. Ele disse que estaria no... — Tateei os bolsos. — Cadê o papel?

— Trigésimo andar. — Destrancou a porta.

— Isso! Obrigado, jovem.

Os elevadores ficavam ao fundo do saguão. Apertei a tecla e aguardei.

— Espero que encontre o que veio buscar.

Olhei na direção do vigia, franzi o cenho, ergui uma sobrancelha. Ele trancava a entrada, mas se focava em mim. Sorriso de canto esticado.

— Como?

— Se veio falar com ele, a essa hora, é porque deve ser assunto extra-expediente... senhor! — Continuava a apertar as contas do terço. Sentou-se à mesa com tranquilidade.

O bipe do elevador soou atrás de mim, as portas abriram.

Cheguei ao andar e encontrei o escritório designado pelo detetive.

Era uma sala que se subdividia em vários gabinetes; apenas uma deles iluminado. Ed estava lá, preso por correntes pesadas. O cheiro agressivo de gasolina atingiu meu olfato.

E tinha também o cheiro de merda fresca no ar, com certeza!

Olhei ao redor, busquei por outros odores no ambiente, apurei a audição e detectei o som vindo da esquerda: passos. Thiago abriu uma portinha de um desses gabinetes.

— Olá, George! — Ele segurava um tercinho idêntico ao do guarda.

George?! Ele deveria estar vendo Saduj!

Sacou um isqueiro zippo do bolso e ergueu a tampa. Somei aquilo ao odor nauseante de gasolina. Minhas pernas fraquejaram por um segundo, o rosto transfigurou de marra para angústia, fiz tanta força contra a maçaneta da porta que a arranquei.

Quase pude ver aquilo em câmera lenta. O dedo dele girando, a pedra cuspindo faíscas, que alimentaram o pavio banhado de querosene; a chama surgindo da boca do objeto.

— Ok, maldito, quero ver tu sair dessa!

Se corresse para Ed, ele largaria o isqueiro e eu ficaria ilhado no meio do fogo. Se batesse em retirada, Thiago mataria o paquiderme. Poderia investir contra o inimigo, mas não fazia a menor ideia do que me aguardava dentro daquele cubículo onde ele estava, pois só tinha visão do espaço da porta aberta.

George, seu filho da puta burro dos infernos! Tá sempre pensando com a bunda!!

Thiago tomou a decisão.

Jogou o isqueiro através da porta, sobre um encharcado de gasosa no carpete. O fogo correu rápido, seguiu uma trilha que ia até o gabinete onde Ed estava. Acompanhei a língua de chamas com o olhar. A saleta se acendeu em labaredas.

— Até, George Martins! — Fechou a porta do escritório. Depois, ouvi outra abrir e fechar, seguida de passos descendo uma escada de ferro. Acho era a saída de emergência.

Ed despertou, tossiu, tentou se movimentar. As sobrancelhas se uniram ao centro da testa e se elevaram, a boca tremeu. Percorreu o local com os olhos e me encontrou.

— Chefe... cof-cof-cof... Chefe, me tira daqui... cof-cof...

Retesei cada músculo diante da visão do incêndio. Meu instinto berrava para eu fugir. Minha razão pedia para eu ajudar o balofo.

— Foi mal, Ed! Não dá, cara! Não dá, porra!!! — Desviei o olhar para o chão, sacudindo a cabeça.

— O quê?... cof-cof... Me ajuda, cara...ueeeergh... Cof-cof... So... corro, George!!!

Os olhos dele brilharam aquosos, arregalados, esperando por mim. O fogo se espalhava pelo resto de toda a sala, vinha em minha direção. Se corresse até ele, não haveria retorno. Tentava me convencer disso, pelo menos.

— Foi mal, Ed!

Bati a porta atrás de mim. Voltei para o corredor dos elevadores. Minhas pernas queriam endurecer, dar meia volta, ajudá-lo, forcei a caminhada. Minha cabeça latejava, dizendo que eu era um covarde.

— Não, chefe... cof-cof! Tá quente! Não me deixa morrer, cara! NÃÃÃO... cof!!!!

A voz soava abafada, vindo de dentro do escritório, mas o ouvia sem dificuldades. Por que diabos eu tinha que ter ouvidos tão aguçados?!

                                                   




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Memórias Rubras. Episódio 2 - Lança.Where stories live. Discover now