Capítulo 2.1

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Depois de sei lá quanto tempo adormecido, despertei com o maldito doutor se enfiando de novo na cela. Segurava um funil com bico muito maior que o normal. Na outra mão, um tubo de ensaio com líquido vermelho. Vinha escoltado por um magrelo feioso, que tinha o rosto preso à puberdade. Cheguei a imaginar se ele ainda teria rosto após estourar cada uma daquelas espinhas.

O médico — sei lá se aquele merdinha era isso mesmo — parou à minha frente. Atirava-me um olhar debochado e cheio de confiança.

Minhas entranhas disputavam um pouco de espaço contra a fome, o raciocínio estava lento, a visão, falha. Dava para sentir o cheiro do sangue mesmo dentro do recipiente fechado.

— Preciso que você engula isso.

Claro! Eu abriria a boca de muito bom grado, obrigado! Não permitiria que aquele escroto fizesse o que queria, mesmo que cada pedaço de mim desejasse alimento. Menguele aproximou o objeto, virei o rosto para um lado, ele golpeou com a ponta em meus lábios, um filete de sangue desceu, virei o rosto para o outro lado, nova tentativa de enfiar aquele trambolho em minha boca, mais um corte. Permanecemos nesse pequeno embate por alguns segundos. Eu virava a cabeça contra qualquer investida. Até que ele perdeu a paciência.

— Tudo bem! Tudo bem, demônio! Como quiser! — O médico estalou o dedo. — Segura ele.

O cara de ralador de queijo deu a volta e encaixou um mata-leão, com a outra mão apertou minhas bochechas, até destravar o maxilar. Forcei a mandíbula para fechá-la, tentava me debater e evitar que meu rosto ficasse sob controle. Ele empurrou tanto os dedos contra a pele que ela chegou a passar da linha dos dentes, para dentro da boca, por um momento, achei que se romperia. Uma potência impossível para alguém daquela compleição. Lembrei-me de Russo. Ergueu minha cabeça e, enfim, o doutor forçou o cano do funil goela abaixo. A ponta desceu rasgando um pedaço da língua e deixou um corte no esôfago. Dava para sentir o metal frio do funil dançando e atingindo as paredes da garganta.

Sem possibilidade de resistência, esperei pela execução do ato. Mas ainda faltava uma pessoa para o tal doutor conseguir o que queria e o perfume maravilhoso chegou à cela antes dela. Os passos ficaram cada vez mais altos e ecoaram dentro da sala; Ângela entrou em meu campo de visão. Carregava alguns objetos que não identifiquei de imediato.

Menguele pôs uma mangueira de borracha na boca do funil, destampou o frasco, a fragrância ganhou a liberdade e penetrou em cada poro da minha pele morta. O médico entornou o sangue para dentro de mim;

Aaaaaah, meu Deus! Como era delicioso!

Irriguei a região do pescoço com a pequena porção de sangue que absorvi. Um pouco mais fortalecido, tentei lutar contra o magricela. Mais uma vez, em vão. Que diabos de força era aquela?

Senti mais sangue cair dentro do estômago, o êxtase da heroína vermelha começava a se propagar, eu quase conseguia sentir a energia voltar ao meu corpo, e então, o fio da tomada foi puxado. A sensação maravilhosa se tornou fraqueza e dor anestésica. Amoleci por completo, o cara-de-brita me largou, fiquei suspenso pelos braços, com aquele calor formigante a me corroer de dentro para fora. Menguele puxou o funil, o bico veio empapado de sangue grosso e saliva esticada como elástico, fumaça branca acompanhou o caminho de saída através de minha boca.

Era o sangue dela. O sangue de Ângela. Minha barriga queimava, contrações involuntárias sugavam o abdômen e o alargavam de forma desgovernada e agressiva. A consciência rodopiou, as coisas turvaram, era impossível me concentrar ou reagir. Só conseguia pensar nos mistérios que o sangue daquela vagabunda guardava. Tinha a mesma sensação de quando estávamos na casa dela, eu era um boneco inerte, anestesiado pelo sangue venenoso. Destravaram as algemas, meu rosto arrancou um som seco e pesado quando atingiu o chão. O magrelo agarrou um dos meus pulsos e me arrastou, o atrito com o piso caraquento arrancou uma camada de pele, que deixava um rastro vermelho por onde nós passávamos.

Memórias Rubras. Episódio 2 - Lança.Where stories live. Discover now