Capítulo 3.3

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Escondi os rastros de pneu da picape e a deixei no meio de um matagal distante da casa. Ângela cuidou de limpar e fazer curativos em Ed, e, bem, ajudar a despi-lo foi algo que me dá pesadelos até hoje.

Um banho depois, vaguei pelo corredor estreito e claustrofóbico que levava à sala. A penumbra era agradável, mas os conjuntos de velas que sopravam fumaça negra no ar, e os lampiões acesos, cortavam minha espinha com calafrios a cada cinco passos. Nenhuma lâmpada e nenhum resquício de fios elétricos na casa.

A cadeira de madeira velha estalou sob meu peso. Rangia a cada movimento.

Os carrinhos de plástico iam e vinham nas mãos do menino, sentado ao chão. Pernas esticadas, costas curvadas sobre os brinquedos, que entravam em colisão toda vez que se aproximavam. A raiva sempre estampava o rosto do moleque e os carrinhos se chocando talvez fossem um meio de extravasar. A velha conversava algo com a filha. Fumaça de incensos empesteava o cômodo, queimava minhas narinas e se misturava ao cheiro de feijão, arroz, carne cozida e batatas; Ed, já acordado, comia sem pudor, embora com a dificuldade de ter que usar a mão esquerda.

Dentro de mim martelava uma inquietação constante, desde o primeiro passo dentro daquele lugar. Esfregava o peito e engolia em seco e coçava a cabeça e mudava de posição incontáveis vezes.

Tontura, enxergava tudo em dobro, ou triplo, ou via o que não existia? Talvez não tivessem trinta velas sobre a estante de carvalho, ou incontáveis livros em suas prateleiras. Era provável que todas aquelas ceras derretidas, endurecidas na borda do móvel como estalactites, não fossem tão volumosas quanto eu enxergava. Sabe assim quando você fica bêbado, com as coisas caminhando devagar em seu espectro visual? Os sons distorcendo; distanciando-se e se aproximando, aumentando e baixando de volume? Pois é. Esfreguei os olhos. A conversa entre Ângela e a mãe ficava cada vez mais etérea.

— Por que... Por...que... eu estou assim... velha?

Olhou-me de canto.

— Eu disse que não gosto de maus espíritos em minha casa.

— Mama! Falei que não precisa disso!

— Não confio, prefiro ele dormindo.

A velha me encarava o tempo todo. Catou um livrinho fino... não, era um caderno... ou era só uma folha? O que importa é que leu o que estava escrito à mão nele... à mão? ou datilografado?...

Palavras em uma língua maluca sambaram de dentro da boca da bruxa, percorreram meus ouvidos e esmurraram minha consciência. Cada verso, um golpe. Meu corpo amoleceu, o piscar dos olhos pareciam em câmera lenta. Balbuciei:

— Para com isso... velha...

— Mama Ved'ma!! — A diaba ruim gritou. — Me chame de Mama Ved'ma!! Aqui, nesta casa, eu tenho o poder!!

— Ok..., Véia... de má...

Algumas velas apagaram quando o vento frio passou cortando a sala e atingiu meu peito.

O incenso nauseante. Uma voz risonha ecoando no fundo de um canto escuro da minha mente. Velas. Livros. Ângela me olhando estranho, a voz "ele vai apagar, Mama" saindo em mil tons diferentes, reverberando distante. O menino. Cheiro de comida.

Baque surdo do meu ombro direito sobre o piso.

Sala girando, olhos revirando...

Os pés delas...

Carrinhos...

Escuro.

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Sons de madeira rangendo sob pancadas duras, ritmadas.

Memórias Rubras. Episódio 2 - Lança.Where stories live. Discover now