Capítulo 2.4

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Perdi a contagem.

Entre tantas entradas e saídas daquele médico filho da puta e Matheus, perdi realmente as contas do tormento que era servir de rato de laboratório.

O menino sempre chora. Não. Não pense que eu estava com dó. Era apenas algo que eu chamava de oportunidade fortalecida. Quanto mais ela o ouvir sofrer, mais pensará em minha proposta. Confesso que às vezes até torcia para que o fedelho sofresse. Sou cruel por isso? Acho que não. Experimente ser quebrado, queimado, fatiado e ferrado por quase um mês e, aí sim, responda se minha única moeda de troca girava em torno da crueldade.

Meu despertar naquele dia veio com um raio solar atingindo meu peito em cheio. Eu achava que já tinha sentido o que poderia sentir de dor. Mas aquilo, amigo, aquilo foi incomparável. Nada, nada, nem quando era vivo, doeu tanto. O fino raio de luz corroeu a carne, transformando-a em farelos de cinza. Avançou para outra camada de pele. Depois chegou ao músculo...

O pó flutuava pela sala como se fosse a poeira batida de um tapete, ficava visível ali no ar e depois ia encontrar o piso.

Nem consegui gritar. Vi a imagem dos malditos caçadores através de olhos semicerrados, não estava em minha cela.

— Chega!

A ordem de Matheus foi suficiente para que alguém girasse uma manivela e fechasse uma claraboia no teto do galpão, o que chamavam de curral. Haviam usado um espelho para refletir a luz que vinha do teto. O mesmo espelho agora mostrava a cratera fumegante próxima à clavícula.

Meus olhos verteram lágrimas vermelhas. A ânsia de me manter firme como pedra gritava dentro de mim, mas a dor foi mais forte. Meu corpo amoleceu, as lágrimas de sangue escorreram e pingaram sobre o chão. Minha voz chorosa escapou como um filho rebelde.

— Eu... não sei... não sei... Matheus!!

— Parece que enfim dobrei você — Um sorriso enrugado se esticou sobre a face cansada.

Àquela altura eu desisti. Pendi nas algemas como um boneco de marionete. Rosto derrotado mirando as gotas rubras espalhadas ao chão. A voz arranhada e arrastada de Matheus soou bem próxima a mim, seus pés entraram em meu campo visual.

— Uma hora você vai desistir, vampiro. E eu sinto que está perto.

— Eu não posso... dar o que... você quer.

— Você até pode aguentar por muito mais dor, George. Mas acho que o seu amigo gordo não.

Ergui o olhar para encará-lo. Um soco preciso, de cima para baixo. O nariz estalou, um corte abriu sobre a pele do nariz quebrado.

— Ok, rapazes. Tragam a vaca. Vou deixar vocês brincarem. Menguele...

— Senhor?

— Você assume.

O líder nos deixou.

Ergueram a vaca, enfiaram a maldita agulha no meu coração. Ângela, como de costume, estava conectada do outro lado.

Engatilharam armas. Projéteis voaram pela sala, acompanhados do som ensurdecedor. As balas cruzaram meu corpo e pararam ao atingir a estrutura metálica atrás de mim. A memória de meu último dia como um ser vivo veio com força. Os sorrisos de Carlos, Caladão, Cara-de-peixe.

Sangue espirrava. Esperaram os ferimentos fecharem, trocaram o calibre.

O tiro da espingarda .12 acertou um dos meus joelhos e separou minha perna em duas. O segundo disparo deixou um rombo na barriga do tamanho de um melão.

Cura.

Mais sangue de vaca.

Mais sangue de Ângela.

Os homens sorriam, se divertiam com a carnificina. Dez homens, cada um portando uma arma diferente, dentre pistolas, revólveres, fuzis e espingardas de grosso calibre. Sem dó.

Nacos de carne voaram, o sangue lavou o piso abaixo de mim, estendendo-se como um tapete vivo. Eu gritava a cada perfuração. A fúria renascia e queria ganhar liberdade.

Os sons cessaram. As armas fumegavam, os sorrisos contaminavam o ar. Os projéteis de metal quente pararam de me perfurar.

Depois de reduzido a um monte de trapos, alimentaram-me mais uma vez e me irrigaram com o sangue da mulher.

— Diário do Doutor Menguele, noite 23, espécime dois. Pesquisa sobre fisiologia e anatomia vampírica. A criatura resistiu aos mais variados calibres, disparados em massa. Se bem alimentado, fica comprovada a inviabilidade de deter tais seres por meio de armas de fogo. Contudo, é possível causar-lhes enorme prejuízo e retardá-los por bons instantes através deste meio. O sol se prova como seu maior inimigo, de acordo com as lendas.

— Você vai ser o primeiro, Menguele! — eu disse, antes que ele encerrasse a gravação.

O médico virou-se em minha direção. Pude ver o pavor naqueles olhos escancarados. Ele engoliu em seco.

— Tenho planos para este gravador, doutorzinho! Você vai ser o primeiro! Ah! E não esqueça de avisar ao seu dono que não morra antes de acertarmos uns perrengues.

Os olhos dele arderam de ódio e incredulidade.

Destracaram a cela, prenderam-me mais uma vez.

Meu corpo recuperava-se dos últimos resquícios de ferimentos. Algum tempo se passou. O buraco no peito permaneceu como estava, sua recuperação era ainda mais lenta que a do fogo.

Passos familiares. Ela.

A portinhola de ferro abriu. Ela ficou calada por um tempo, dava para ouvir a respiração receosa. Inspirou fundo e falou:

— Do que você precisa pra sairmos deste inferno?







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Memórias Rubras. Episódio 2 - Lança.Where stories live. Discover now