Capítulo 2

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— Diário do Doutor Paulo Menguele, noite um, espécime dois. A criatura encontra-se presa e segura na gaiola. Lacerações espalhadas pelo corpo, ferimentos graves a machado no tórax. Ao que parece o ferimento oriundo por projétil de arma de fogo, na cabeça, foi o primeiro a cicatrizar. Os talhos de machado visivelmente retrocederam de forma impressionante. Primeira impressão: Ferimentos mais graves tem prioridade de cicatrização. Observação: Queimaduras não iniciaram um processo de cura. Pelo menos não em estágio a olho nu.

Houve o som de um clique, seguido de um objeto sendo posto em uma mesa metálica.

Eu ainda não enxergava quase nada, era tudo turvo. Ao menos sabia que a lesão retrocedia.

Ouvia o som da picape velha em movimento, um sacolejar cheio de rangidos que sugeriam uma possibilidade de que se desmanchasse a qualquer momento. Os caçadores trocavam assuntos fúteis. Quando o veículo parou enfim, fui arremessado de cima da carroceria. Um chão pedregoso deu as boas vindas às minhas costas, uma vértebra chocou-se contra uma pequena rocha, a dor aguda me fez gemer. Poeira subiu e entrou pelas minhas narinas, aderiu aos meus olhos; fiquei piscando para limpá-los. Arrastaram-me pelo chão arenoso, logo senti o piso mudar para um cimento liso, percebi também a mudança de temperatura e do ar, deu para sacar que era um local fechado e coberto.

Algemaram-me de novo naquela posição desconfortável. Braços acima da cabeça, presos por correntes, corpo semiajoelhado, fraco. O processo de cura me custou muito sangue. Não sei quanto tempo se passou depois que o tal Doutor Paulo Menguele saiu de perto de mim. Já enxergava quase com definição completa. Era uma sala de porte médio, do lado oposto ao meu, uma porta larga de metal, com uma portinhola na altura dos olhos, fechada. Escuridão, sons de ratinhos correndo por ali, cheiro forte de cimento, poeira, baratas.

Barulho metálico. Alguns clics, ferrolhos pesados abrindo. Minha cabeça se ergueu em alerta. Uma fresta de luz adentrou o lugar. Duas pessoas, em silhueta, mostraram-se. Entraram. Um dos homens, o mais baixo, acionou o interruptor e uma luz amarela horrível acendeu. À minha frente estava Matheus, o outro ainda não tinha visto, mas julguei ser o tal doutor Menguele. Era magro, não usava óculos e não tinha aquela cara de retardado de filmes clichês. Mancava de uma perna, mas o resto do corpo era atlético. Ele palitava os dentes, cuspiu um pedacinho de carne esbranquiçada. Foi até o lado de fora, colocou uma mesinha metálica, cheia de instrumentos para autópsias, para dentro.

Matheus parou à distância de um braço.

— Boa noite, George.

— Maa... ai... maravi... lhosa! — A voz saiu rouca, fraca e arrastada.

— A conversa que quero ter aqui é bem simples, vampiro.

— E se... eu não... colaborar? ...Vai... me... matar?

— O trocadilho foi maravilhoso, perdoe-me por não rir. Ando meio atarefado. Doutor Menguele, por favor, nos deixe sozinhos, sim?

O homem fez um sinal com a cabeça, ajustou o palito nos dentes, cuspiu mais um pedacinho do jantar ao cruzar a porta.

Matheus apertava as contas do terço. Exalava um ar de soberania, mexia-se sempre de forma elegante, mesmo com aquelas roupas desleixadas.

— Não... — pigarreei e prossegui: — Não faz... sentido...

— O quê?

— Caçadores... que não... destroem o vampiro...

— Não quero te destruir, George. Não agora.

— Haha... ha...ha... coooof-cof-cof...

— Não ria, meu amigo. Sua estadia aqui poderá ser qualquer coisa, menos engraçada. E respondendo à sua pergunta: Caso não colabore, você não morre. Mas seu amigo obeso não está numa cela tão distante. Fiz questão que ele ficasse "audível". E, se você sentir muitas saudades, posso trazê-lo aqui de vez em quando.

Percorri todo o rosto azedo daquele cara com o olho, cruzei meu olhar com o dele.

— Desculpa... mas eu não sou... muito sentimentalista, sabe?

— Só lembre que cada passo seu foi estudado.

Sem respostas. O filho da puta me fez engolir as palavras. Tava foda! Os caras estiveram um passo à frente sempre. Eram bons. E o que diabos aquele louro asqueroso queria comigo?

— Vamos lá então, George — Desceu sobre um joelho, ficou cara-a-cara comigo. — Todo mundo aqui quer te destruir e acham que este é meu único intuito.

— Estou ouvindo

— Eu preciso de outra coisa, antes que isto ocorra.

— Seja direto... bichona!

— Preciso do que você tem! Preciso desta forma de me manter sempre jovem e saudável.

Contrariando toda a minha condição, além do que eu achava que fosse capaz, gargalhei. Dei uma puxada forte com o nariz, guiei o sangue para a boca e cuspi no rosto do palhaço.

— Eu vou sair daqui, Matheus... e vou fazer você passar... pelo ralo inox de... um banheiro. Vou... estraçalhar cada... cada um de... vocês...

Ele limpou o rosto com um lenço. Pôs-se de pé.

— Boa sorte na empreitada. Doutor!

O cientista entrou, catou um cutelo na mesinha. Acionou o botão do gravador.

— Diário do doutor Paulo Menguele, noite um, espécime dois. Continuando a pesquisa sobre fisiologia e anatomia vampírica — chegou bem próximo a mim. — Objeto de estudo: Capacidade regenerativa um!

Desceu o cutelo com força em minha cabeça, o objeto cravou-se até a metade. O líquido grosso escorreu, desceu até o nariz e pingou sobre o assoalho.

Minha audição foi a primeira a apagar. E logo os outro sentidos a acompanharam.









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Memórias Rubras. Episódio 2 - Lança.Where stories live. Discover now