Como um demônio

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Uma calça de moletom gigante com um cordão para apertar na cintura e uma blusa de mangas também grandes haviam sido a roupa que o juiz deixou no banheiro para mim. Vesti-las foi a parte mais fácil, já que a difícil seria sair do banheiro parecendo um saco de batatas ambulante.

O tecido da roupa conseguia ser mais confortável que todas as minhas roupas.

— Serviu? – O escutei gritar assim que abri a porta do banheiro. – Ei, está ouvindo? – Continuou a gritar como uma mãe faria até saber que a sua filha estava escutando.

— Serviu – Respondi contra a minha vontade. Avançando em direção ao som de sua voz mesmo que a calça impedisse meus movimentos e as mangas da camisa cobrissem minhas mãos. Parei assim que avistei as costas másculas do juiz. Ele estava colocando pratos em cima da mesa e então senti o cheiro agradável de algo que desconhecia.

Talvez tenha feito algum barulho ou simplesmente respirado mais alto do que o normal ao sentir o aroma da comida, mas algo o fez virar e me encarar.

— Sente-se – Cada palavra que saia de seus lábios era uma ordem fria. Ele não parecia querer sorrir ou fingir cordialidade comigo afinal eu era uma prisioneira. Alguém que deveria pagar pelo seu crime. – Fiz macarrão com queijo e frango – Falou ao retirar a tampa da panela fazendo com o aroma ficasse ainda mais forte. Meu estômago roncou novamente – Pode comer, sinta-se a vontade – Sei que disse por educação e pena devido ao barulho que fazia, e ainda assim nao me importei. Peguei a panela e despejei metade do que havia nela no meu prato. O som da comida sendo devorada por mim não estava sendo agradável, sabia disso. Mas a fome falava mais alto. Em algum momento, olhei para a frente avistando o seu olhar e por um milésimo de segundo encontrei compaixão neles. – Exatamente como um animal.

Revirei os olhos ao pensar que ele poderia ser humano. Continuei a comer tentando evitar o som da mastigação e quando finalmente terminei, sorri aliviada e saciada. A vida em momentos como aquele poderia realmente valer a pena.

— Agora vamos conversar – O juiz disse ao cruzar os braços em frente ao seu corpo com o seu prato intacto, estava quase pedindo para comer a sua parte quando vi o seu olhar mudar. Algo se tornou perigoso. – Primeiro se levante e coloque a sua perna em cima da minha – Seu pedido incomum acabou fazendo com que eu o olhasse como um pervertido. – É para colocar a tornozeleira – Esclareceu inexpressivo e sem saída fiz exatamente como havia me pedido. Estendi a minha perna direita em cima da sua senti a sua mão erguer a calça, tocar o meu tornozelo para em seguida colocar a tornozeleira. – Não pode se afastar em um raio de 100 metros daqui, se fizer isso vai apitar e a policia irá aparecer e a levar para a delegacia mais próxima, a partir daí não poderei lhe ajudar mais.

— E o que está fazendo é algum tipo de ajuda? Trazendo para o seu apartamento, colocando um tipo de rastreador em mim, sinceramente cara, isso parece mais um sequestro.

— Se quiser posso leva-la para o reformatório – Deu de ombros ao empurrar a minha perna para longe da sua fazendo com que eu cambaleasse um pouco e tivesse que me segurar na mesa para não cair. Ele era um tipo de monstro demoníaco. – Ser atacada pelos guardas em retaliação é problema seu.

— Você realmente joga baixo – Acabei me dando por vencida ao ver que ele tinha razão. Todos os policiais e guardas de prisões, até mesmo reformatórios, eram unidos. Quando um batia o pé os outros gritavam, eles eram esse tipo de gente. Ser vista daquela forma pelo juiz acabou fazendo com que eu fosse o inimigo número um dos guardas. – Vai realmente culpa-lo?

— O guarda? - Assenti – Já solicitei a abertura de uma investigação baseado em seu estado. Será testemunha no caso de maus tratos. Esse foi um dos motivos que me levou a traze-la para cá. Como disse sou um juiz e meu dever é punir os culpados e pretendo fazer isso com as pessoas responsáveis daquele reformatório.

— Então deveria fazer a mesma coisa com as outras meninas. Não era a única naquele lugar.

— Está correta, mas foi a única que vi naquele estado. É a minha testemunha.

Engoli em seco ao desviar o olhar. Algo naquele juiz fazia com que eu me sentisse desconfortável. Ao mesmo tempo que conseguia enxergar sinceridade conseguia ver escuridão. Ele possuía algo sombrio nele.

— Deveria buscar outras testemunhas se espera um caso forte e uma condenação. – Algo do que eu disse o fez me encarar como se eu fosse um tipo de alienígena. O juiz presunçoso não esperava que eu soubesse usar algumas palavras aprendidas nas séries criminais que assistia.

— Palavras de jovens desesperadas para fugir do inferno não é aceitável.

— Também sou como elas.

— Se é assim que deseja pensar – Deu de ombros ao se levantar da cadeira. Sua altura ficou mais evidente ao parar em minha frente. Seu sorriso debochado emoldurava o seu rosto e por algum motivo não conseguia desviar meus olhos. – O que foi? Não para de me encarar.

Desviei o olhar ignorando qualquer sugestão insinuativa que rondasse meus pensamentos e fui em direção a varanda. A vista conseguia ser realmente agradável e bonita. Abri a porta de vidro que dava acesso para a varanda ignorando o meu bom senso, o qual me mandava ir para o escritório e me trancar lá.

— A vista é linda – Deixei escapar ao me debruçar levemente – Seria bom ter asas.

— Basta se jogar então – Mordi a minha língua para não responder. O juiz conseguia ser a terceira pessoa mais insuportável que havia conhecida na vida. O olhei de soslaio ficando incrédula ao vê-lo retirar um maço de cigarros e um isqueiro do bolso. O cheiro de tabaco que havia sentido assim que entrei no apartamento era o mesmo que o dele. Um cheiro inebriante e angustiante.

Cheira como grama e algo doce.

— Se estiver incomodada basta entrar e fechar a porta – Falou em meio a sua tragada. Não era uma fã do cheiro enjoativo do cigarro, contudo algo no dele fazia com que eu me sentisse confortável. Estranhamente confortável.

O aroma deve me lembrar algo da minha infância. Alguma coisa feliz.

Foi o que consegui pensar ao fechar os olhos por alguns segundos antes de sair da varanda. Sentir empatia por alguém que me desprezava não era saudável e muito menos aceitável. Deveria voltar para Breno o quanto antes. Retornar para a minha antiga vida.

— Não pense em fugir, meu temperamento é um lixo para pessoas desobedientes e ingratas – gritou da varanda como se pudesse ler a minha mente.

— Demônio – Falei sem me preocupar que ele escutaria ao procurar pelo escritório e a cama de armar. 

CONTINUA...

MAISON [ Concluído] Where stories live. Discover now