Capítulo 61 - Sombras de um Passado Jamais Esquecido

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Perdido em seus próprios delírios, próximo ao meio-fio, Salvador percebeu o asfalto molhado refletir a luz feito uma correnteza de piche. Os dentes frouxos tombavam bochecha adentro. Sofria a mesma dor que qualquer homem ordinário e, ao tentar focar-se num ponto fixo, entre milhares de feixes, mal compreendeu a silhueta que, num salto desesperado, montou sobre seu tórax e o golpeou mais duas vezes no pau do nariz.

Visse cumo é o gostin da morte? Eu...— denunciado pelo péssimo português, Nazareno só se calou, devido ao balaço dado por Gavião, que, endereçado à sua cabeça, explodiu sobre a couraça do blindado.

Salvador tentou respirar, mas o sangue inundava suas narinas. Outro murro e sangue, mais golpes. Nazareno parou contemplando o estrago:

— É gostosin pra carai ter a cara amassada no soco, não é? — elevou o punho, mas se deteve ao escutar um murmúrio. — O que tu disse homi?

— Dentes... — após longa hesitação, Salvador superou o inchaço que consumia sua boca e mostrou que "morreria de pé", sem mendigar pela vida. — Eu ainda tenho... os meus — até ser interrompido por outro cruzado.

O mundo rodava ao som de zumbidos perturbadores, Salvador esticou as mãos buscando algo intangível, mas sua cabeça afundou contra a grama. Depois de tantos anos digladiando entre lobos, não havia a glória e nem o glamour esperados.

— Você só pode estar de sacanagi — Nazareno abriu seu sorriso incompleto.

O vento levava a chuva, espalhando poeira e água em seu rosto. Os corpos escuros separavam-se e uniam-se bem em frente dos seus olhos, enquanto, a cada mágoa ou osso fissurado, estava certo de que tamanho martírio representava mais do que um simples serviço. A cabeça pesada balançou num gingado torpe até alcançar o chão. Salvador respirava pela boca com extrema dificuldade. Pontos luminosos. Era apenas isso que enxergava em meio à tamanha confusão. E, persistindo por mais alguns instantes, a silhueta rival desenhou-se em seu campo de visão.

Não era mais o megaempresário, detentor da segurança que só o dinheiro permitia comprar; apenas outro mero mortal engolido por um telão de memórias pintado com suas últimas façanhas. Há anos não brigava como homem e, longe da companheira cuspidora de chumbo, viu-se como um fraco que não suportaria mais um mísero soco. Nazareno espancava-o com razão e, durante um dos diversos socos, ao sentir os punhos pontudos contra a carne fraca do rosto, tornou a escutar vozes, dessa vez, familiares.

— Breno Hélio na escuta. Qual a posição exata? — ouviu, enquanto assistia ao contínuo movimento da mão de Nazareno.

Os brados de seu funcionário eram persistentes para um homem tão raquítico. Sem chance de respondê-los, Salvador percebeu o quão o amor paternal era insignificante diante da autopreservação. Enfim pôs-se no lugar de Treviso e compreendeu que, na posição dele, faria a mesmíssima coisa, pois quem poupa o lobo vira cordeiro. O prudente seria cortar o mal pela raiz. Na posição de tutor ou aprendiz, grosso modo, não passavam de marginais enfrentando marginais. Humanos se digladiando pela sobrevivência. Cara de um, focinho do outro.

Um pequeno vislumbre de consciência o reanimou. Talvez não conseguisse derrotar aquele menino numa briga corpo a corpo, porém, ao saber que em poucos instantes teria a vantagem numérica, apoiou o joelho no solo e tateou o ar em busca de algo sólido para se sustentar. Contudo, voltou ao chão após um chute no peito.

— Então você é durão... — disse Nazareno, segundos antes de perder o equilíbrio ao ser atingido por um soco no adutor da coxa.

Cuspindo um de seus dentes, destituído de qualquer orgulho, Salvador viu-se feito o animal que era e, por fim, reconheceu Nazareno como seu semelhante. Era a primeira vez que, distante da posição de chefe, confrontava sua verdadeira face. Poderia ser tarde, mas, finalmente, descobriu naquele jovem o respeito. Seu garoto era o aprendiz mais fantástico entre as dezenas de jovens que já passaram por suas mãos. Uma pena que havia demorado tanto para dar-lhe o valor merecido.

— O que você vai ganhar? — Salvador falou com dificuldade ao levar uma das mãos à boca ensanguentada. — Porra nenhuma! O Treviso vai te jogar no lixo. Com muita sorte, você vai continuar sendo o mesmo paraíba fedido, largado naquela favela imunda, esperando a morte chegar — deu uma risada também incompleta e cuspiu sangue, enquanto o encarava. — Ou acha que eu não descobri seu esconderijo? Se está vivo é porque eu quis assim. Você é menos que isso. Mais insignificante que o meu cuspe. Um pedaço de merda com RG.

De pé por algum milagre, Salvador se contorcia em dezenas de caretas. Ganhando tempo, continuou a insultar Nazareno que, por sua vez, permaneceu mudo desde a primeira palavra; ostentando um olhar perdido. Ele parecia ouvi-lo, digerindo a raiva, mas sem nenhuma emoção. Era mera questão de tempo para o barril nordestino explodir, porém a pistola não seria mais o seu conforto, ou as balas o gás suficiente para reverter o estrago, então, expondo a coragem suicida que o levou ao topo dos Amigos, Salvador avançou sobre o jovem que, muito mais rápido, se esquivou com facilidade e o golpeou nos rins, afastando-o.

— Eu num sei, cabrunco? — desperto do transe, Nazareno berrou antes de atingi-lo com outro soco no maxilar. — Mas você vai morrê antes que eu!

Salvador era duro de cair, recebeu mais um soco no diafragma e outra pancada no posterior da coxa, porém manteve-se em pé, meneando a cabeça de um lado para o outro feito um pêndulo. Depois de tanto, como se fosse constituído de ferro, recuara apenas alguns centímetros; entretanto, não conseguiu desviar da mão que, de encontro ao seu queixo, o derrubou de vez.

A morte de um milionário era rara. Seus aviões não explodiam e seus corações, por vezes velhos e cansados, simplesmente não paravam de bater. Por baixo dos panos, deuses forjados a níquel não morriam e muito menos deveriam ser assassinados. Contudo, o segredo por trás de sua fortuna residia nas exceções, então, nada mais justo do que ser eliminado por uma delas. Acordado por um fio de consciência, olhando-o do chão, Salvador descobriu o calibre 380 — dado por ele em seu batismo de fogo — quando, por trás de Nazareno, surgiu o rosto angelical de Helena.

***

— Hélio? Voa pra lá também! — ouvindo os gritos desesperados de Macedo e, tornando aquele serviço ainda mais pessoal, Nazareno abriu a frequência do rádio e o desafiou — Muito lerdos.

O desespero de seus algozes era no mínimo reconfortante. Se pudesse mataria qualquer um que estivesse ali, inclusive Tupinambá, caso a recompensa não fosse por ele vivo. Só de ouvi-los seus ossos rangiam. Cansado daquilo, Nazareno ergueu o punho e, enxugando os olhos com as costas da mão, encarou Salvador novamente. Matar era uma experiência única, uma prévia de Deus que o possibilitava controlar o destino de terceiros, mas, diante de seu pai adotivo, ainda não estava certo do que queria. Ao fim do cano, Lavezzo apertava os dentes até os maxilares tremerem. Ele transpirava medo. Qualquer outro pistoleiro estaria excitado por ter um capo à mercê de sua piedade, no entanto, ao derrubá-lo com tanta facilidade, esmoreceu.

— Me perdoa, meu amor — murmurou Salvador em direção à escuridão. — Por favor, me perdoa.

— Meu amor? A minha vontade era de te sapecar um tambor inteiro nos cornos, mas... — Nazareno embargou as próximas palavras. — Por que logo o sinhô judiou de mim?

Salvador não respondeu. O corpo tombado não sentia nem mesmo resignação. O último suspiro era o ápice da verdade e, por mais terrível que parecesse, era real. Ao contrário de seus aliados, não teria lápide, totem, ou um retrato no altar, sequer velório, chamadas públicas ou procissões para clamar seu verdadeiro nome. Porém, decidido a instaurar o caos, Nazareno abriu a frequência do rádio e, segurando o revólver de maneira desequilibrada, num toque trêmulo, explodiu a munição contra o rosto de seu tutor.

— Tarde demais... — disse cheio de si, enquanto uma infinidade de vozes se sobrepôs à sua.

— Por favor... — deixando suas últimas lágrimas escorrerem pelo rosto ferido, voltando seus olhos apenas para o firmamento, Salvador enfim calou-se.

Ajoelhado em frente à sua mais nova vítima, Nazareno revelava uma beleza trágica. Os seus olhos estavam brilhantes, enquanto estampava uma expressão espantada de incompreensão. Num simples clique, destruiu qualquer recordação de uma época feliz.

— Por que não tem mais amor em mim, pai? Eu fui fiel, sempre botei o sinhô na frente de tudo... Por que o sinhô fez tanta maldade comigo? — fora de si, praguejava contra o rosto desfigurado até ser atingido por um disparo nas costas.


Bella Mafia - Dinheiro se lava com SangueWhere stories live. Discover now