Capítulo 06 - O Motorista I/II

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Domingo, 07 de setembro, 8h15min –Barra da Tijuca

Observando o tráfego inferno-carioca, enquanto seguia alheio às músicas escolhidas por seu chefe, Roni Lopes, motorista promovido, avistou um Vectra suspeito e, espiando pelo espelho retrovisor, confirmou a presença da escolta em sua cola.

Apesar da pouca idade, dezenove anos, Roni era um dos melhores motoristas dos Lavezzo e na ausência de Fernando Shotz, motorista titular, era o nome mais indicado. Na visão de um soldado, ser escalado para aquela missão era o reconhecimento de suas habilidades e também a oportunidade de crescimento na organização, afinal, mesmo que não rendesse uma farta recompensa em dinheiro, havia um valor muito maior em jogo, uma espécie de prestígio com os membros mais influentes da organização, gratidão.

Horas antes, o previsto seria buscar o Senador Ednaldo Mendes na Lagoa Rodrigo de Freitas, junto a dois membros de sua comitiva, e levá-los em segurança ao condomínio da família. Uma missão simples, condizente com a sua posição hierárquica, contudo diferente do combinado, as cartas foram embaralhas trazendo no banco traseiro: toda a magnitude do chefão.

De olhar puro, quase virginal, expondo dentes cavalares que mal cabiam na boca, o jovem de cabelo crispado tratou de evitar outra rua de mão única. Precisava de vias largas que facilitassem manobras evasivas. Em especial depois de um atentado a bomba, meses antes, no Elevado do Joá. Na época, toda a história foi abafada pela mídia com a desculpa de um atentado planejado por traficantes incomodados com os projetos sociais da Fundação Amor+, financiada por Salvador Lavezzo.

As rodas seguiram firmes pelo asfalto. Cercado pela ameaça de morte, Salvador viu-se obrigado a fechar as portas para o mundo em prol da autopreservação. Roni, apesar de ser um mero motorista, lidava bem com o aumento repentino de responsabilidade e riscos. Quem diria que um Zé ninguém que comia palma por falta de galinhas, ao tornar-se um Uomo d'honore, só andaria de BMW Série 3? A melhor saída seria ver o problema pelo lado positivo, atendo-se à honra do cumprimento do dever, afinal, para quem enfrentou a fome, morrer à bala seria um luxo da cidade grande.

Ciente de que pequenos imprevistos são o trampolim para grandes atentados, ao perceber uma brecha cortou rumo à pista mais rápida da esquerda, só que logo se viu forçado a dar uma freada brusca na entrada do túnel.

— Tudo bem, chefe? — perguntou preocupado.

— Sem problemas, Roni — Dr. Lavezzo respondeu.

Nada de suspeito. Nenhuma moto à frente ou atrás, apenas um mar de luzes vermelhas, que de tão estáticas lhe diziam: "Bem-vindo, babaca! Você está preso em outro engarrafamento". Ônibus caindo aos pedaços e propagandas atrás de propagandas: dois dos grandes fatores para um trânsito de merda. Ninguém tinha direito a transporte, porém eram distribuídos incentivos para comprar o carro próprio. Algo estranho, já que em sua terra a miséria era miséria absoluta.

A viagem pelo Elevado demorava e, após se digladiar por quilômetros, parou novamente. Não havia pensamento positivo que quebrasse a barreira de um congestionamento. Ora andava, ora parava e não adiantava reclamar ou tentar forçar passagem, pois aquilo era normal. Consistia num jogo incrível de embreagem e freio, porém nada de acelerador.

Roni tentou forçar, mas permaneceu parado. Há poucos metros enxergou um furgão vermelho desviar da escolta traseira, forçando a passagem ao seu lado esquerdo. Alguns centímetros de avanço e as buzinas em sequência denunciavam seu ato falho. Levado pela tensão, não fazia mais nada, a não ser tatear o acelerador. O congestionamento dentro de um túnel era o cenário ideal para qualquer covardia numa cidade recheada de motoqueiros como a do Rio de Janeiro. E, desconhecendo a intenção do motorista ao lado, Roni tentou ver nos retrovisores e no espelho se havia algum movimento suspeito. Nada. Talvez fosse outro esperto que, assim como ele, quis abrir passagem. Porém, e se estivesse errado? E se fosse outra emboscada? Será que a blindagem daria conta do recado? Se não, como conseguiria reagir dado que após as seguidas ultrapassagens distanciou-se dos demais carros da Família.

Olhando pelo retrovisor, contemplou a chegada de uma moto com dois ocupantes na garupa. O suor corria gelado por sua testa. A qualquer instante, pelo corredor, um meliante poderia avançar e surpreendê-los com um explosivo. Suas mãos tremiam e, padecendo diante da pressão, seu estômago começou a sabotá-lo. Num ato de coragem decidiu que assumiria o inevitável destino de um soldado e, com a Beretta 93R, guerrearia pela primeira vez. Caso falhasse, teria o desprazer de ser abatido antes mesmo de ceifar uma mísera alma.

A pistola já estava em posição. Àquela distância, não erraria nenhum dos disparos. Ainda assim, reduzindo a zero qualquer possibilidade de confronto, agiu com prudência ao descobrir a sirene da ambulância e o solitário entregador de pizza com seu baú. Riu ao lembrar-se do vidro blindado. O que conseguiria fazer se estava com a janela fechada?

Seguiu mais alguns metros e viu outra brecha. Sem hesitar, cortou a ambulância. E, encorajado pela jovialidade, trocou de marcha e esticou pela contramão no mesmo instante em que um risco azul triscou o retrovisor do veículo. O suor gelado deu espaço ao alívio. A adrenalina dissolvida na corrente sanguínea lhe dava a certeza de que valia o risco em tempos de guerra.

O coração voltava ao compasso normal. Enxergava o começo da autoestrada Lagoa-Barra quando, interrompendo o descanso, pôde sentir sobre seu ombro o peso de uma das mãos mais temidas da cidade. A despeito da distinção hierárquica, Salvador Lavezzo não era mais um burguês de palma macia esperando pra se sujar. Pelo contrário, ela era imunda e calejada, como a mão de um assassino.

— Quer ter o mesmo fim do Nazareno? — Um cheiro forte de uísque acompanhava a voz fria.

Roni apertou o couro macio do volante. De repente, um súbito flashback. Lembrou-se do colega de infância, do espancamento, da humilhação e do fim indigno ao ser desovado dentro de uma fossa de esgoto. Embora amasse o Salvador Lavezzo feito um pai, aquela voz lhe causava mais calafrios do que a própria ameaça e, para piorar, não sabia se um simples deslize teria a mesma proporção de um grave. Dúvidas e mais dúvidas o bombardeavam ao passo que, se deixando levar pela preocupação, sem querer, desviou os olhos da pista. Ato que chamou a atenção do superior.

— O que você tem na cabeça? Acha que a minha vida vale menos do que um esporro, seu moleque? — Dr. Lavezzo berrou no pé de seu ouvido.

O cheiro azedume da morte fez-se presente, tocando o fundo de sua alma. Um a um, os pelos se arrepiaram. Não havia ouvidos, apenas mãos fixadas ao volante. Seus movimentos estavam desordenados e, tomando-lhe o corpo, uma espécie de agonia o sufocava. Sequer conseguia pensar. Nenhuma palavra veio à mente. Depois, as cordas vocais, inchadas, embolaram na garganta e falando por intermédio da mudez, seus olhos se moviam como se buscassem algo que não estava por ali. Tinha-o como um pai. Seria uma tragédia se, por imprudência, o matasse. Enfim, deu-lhe razão.

O medo o ensurdeceu. Sabia que, no submundo, a pena de morte era sentenciada sem pena, em especial, àqueles que se desviavam do caminho. Pelo espelho, alcançou os olhos esverdeados de seu patrão destacados na escuridão. Tentou prestar atenção no trajeto, mas o bafo de bebida se tornava insuportável, até que a barreira de acrílico se fechou, deixando apenas a imagem do corpo do colega afundando numa vala séptica.

Poucos sabiam. Por trás do sorriso simpático e das campanhas beneficentes existia um homem sem escrúpulos que trilhava o caminho do sucesso fazendo valer suas leis.

Pela autoestrada Lagoa-Barra Roni chegou ao Túnel Zuzu Angel, seguro de não ser seguido. Outro engarrafamento o esperava. No fim das contas, o saldo era positivo. Dr. Lavezzo gostava de seus serviços e o pouparia. Uma medida considerada improvável onde o perdão raramente tinha vez, visto que, dos cinco novatos, restavam apenas dois.


Uomo d'honore - (Homem de Honra) Termo utilizado para membros de um clã.



Bella Mafia - Dinheiro se lava com SangueWhere stories live. Discover now