Capítulo 43 - Roda Viva II/II

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22h15min, 7 de setembro – Condomínio de Salvador Lavezzo

Caminhando em direção à plateia, Salvador enxugou os olhos e, pelas brechas da cortina, avistou as centenas de convidados. Algo lhe dizia que aquele povo já sabia do seu destino e, carregados por uma inveja desmedida, contagiavam o ambiente feito uma doença degenerativa.

— Armas de fogo ao meu corpo não alcançarão, facas e lanças se quebrarão sem ao meu corpo chegar, cordas e correntes se arrebentarão sem o meu corpo tocar. Ó, glorioso nobre cavaleiro da cruz vermelha, vós, que com a sua lança em punho derrotaste o dragão do mal, derrote também os problemas que estou passando — a despeito da oração de última hora, sabia que não era o único a se benzer. Todos o faziam, inclusive os derrotados.

Vestido de branco dos pés à cabeça, Salvador deixou o veludo das cortinas para trás. Seu terno, um Alexander Amosu, de lã Qiviuk, crivado com botões em diamante dezoito quilates, impressionavam pelo brilho. Os flashes sumiram, assim como o som da banda contratada e a salva de palmas. Não se importava com nada daquilo, sequer lhes dava a mínima atenção. À sua frente, apenas o vácuo silencioso da escuridão, um mundo à parte que, distante da centena de convidados, só lhe permitia buscar por seus carrascos. Dentre à multidão de corpos acinzentados, desvendava produtores, diretores, estilistas, empresários, dois ou três ex-jogadores tentando a carreira política, até que, alocados na primeira fila, pouco se importando em disfarçar o interesse em sua morte, os encontrou.

Numa espécie de conclave, aqueles lábios velhos e ardilosos moviam-se em velocidade e, pela propriedade com que confabulavam, não havia dúvidas de que o tema ou eram mortes, ou cifrões. Eram mais de quinze figuras. Sujeitos discretos, no entanto, letais. Donos de ocorrências inexplicáveis, homicídios e desaparecimentos que sequer chegaram ao alcance do público, eles o analisavam e, diferentemente das propagandas ou programas de tevê, encarar-lhes nos olhos não era uma tarefa fácil. Salvador sentiu uma pontada no estômago e seus pés, inquietos, pareciam treinar para um espetáculo de sapateados.

Salvador tornou a sobrevoar o salão com os olhos de lince. Para seu espanto, encontrou Ednaldo Mendes, visivelmente acuado, sentado próximo de seus rivais. Entre a cruz e a espada, deslocado como se não pertencesse ao meio, ele também o encarava, implorando para ser resgatado, e somente não caíra aos prantos, pois, sofreria mais represálias.

Depois de meses à base de pequenas faíscas, o vento fez questão de espalhá-las e gerar o presságio de um fatídico episódio na tragicômica novela da vida. Os uomini d'onore haviam chegado e, de tão próximos, faziam jus à comparação de agentes funerários à espera do "presunto". Demônios de sorrisos hipócritas que se autodenominavam amigos. Há quem diga que não existe ser humano sem medo, mas, neste ramo, a morte não era superestimada. Às vezes, recebia viés de libertação e, com isso em mente, ao ser convertido numa isca humana, Salvador deixou a armadilha armada.

— Foda-se! Se for espetáculo o que eles querem, é isso o que terão — exposto à morte, enquanto lia em seus rivais a confiança inerente aos predadores, encontrou sua razão. A liberdade perdia o real significado e, de coração endurecido, encarou seus oponentes ao surgir no local mais perigoso do evento: o palco.

Após mais uma discreta salva de palmas e assovios, o silêncio se fez presente à espera do discurso. Num hipócrita soluçar, Salvador acenou aos convidados e agradeceu a presença com um sorriso. Há menos de cinco anos, esses mesmos sujeitos não faziam a mínima ideia de quem ele era ou seu verdadeiro nome, mas, naquele instante, assemelhando-se aos miseráveis à espera da gorjeta, faziam de tudo para serem notados. Depois de anos comendo o pão que o diabo amassou, enfim tornou-se um homem público. Pregão eletrônico? Licitações? Tudo baboseira da mídia! A melhor forma de enriquecer era com o dinheiro público das obras emergenciais, ou o sonho de muitos no bolso de poucos.

Bella Mafia - Dinheiro se lava com SangueWhere stories live. Discover now