Capítulo 57 - Coração de Porcelana

5 0 0
                                    

23h20min, 7 de setembro – Magé

Há oitenta quilômetros do restaurante onde haviam se reunido, o esquadrão da morte avançou mais um sinal.

Preparado para uma caçada noturna, após tantos insultos e traições, coronel Souza não poupou esforços. Seus inimigos haviam ido longe demais ao matar seu sobrinho, primo e tantos amigos numa única noite. Explodidos, fuzilados e até queimados, seus familiares foram assassinados da maneira desonrosa, esquecidos aos pedaços por onde quer que estejam. Salvador Lavezzo haveria de sangrar no coração.

Munidos com fuzis de calibre 7,62 e pistolas .40, avançando pelas ruas desertas daquela região quase interiorana, à surdina, meia dúzia deles se esgueiravam pelas sombras da rua de trás, enquanto ao lado de fora da casa marcada, bem próxima à entrada, uma SUV 4x4 dava meia volta, bloqueado o único acesso da rua sem saída.

***

Helena vagava pela imensidão da sala, sem destino, tal qual um fantasma. Sua pele estava mais pálida e os olhos embotados em lágrimas deixavam nítido que a saudade era o pior dos tormentos. Em momento algum ela gritou, fez escândalo, ou se perdeu a chorar.

Lucca era apenas uma criança de seis anos, indefesa e ingênua. Um pedaço de si, o único inocente. Perdida, olhou para um de seus guarda-costas, depois se concentrou no relógio empoeirado sobre o aparador da cozinha e, de joelhos, em direção aos brinquedos largados no "cantinho da bagunça". Por um instante, abandonou a fé diante da possibilidade de jamais revê-lo.

O rosto, antes angelical, adquiriu um aspecto pesado e sombrio. As olheiras ganhavam espaço pela base desgastada e os cabelos, antes reluzentes, em poucas horas tornaram-se quebradiços. Não sabia se seu único filho, onde quer que estivesse, sentia frio, fome ou medo. Fortunato não tinha esse direito. Nenhum ser humano o tinha. O que era mais covarde do que privar uma mãe de saber o paradeiro de seu filho? O desaparecimento, fazendo da esperança um veneno, tornou-se pior do que a certeza da morte.

Amaldiçoou o dia em que permitiu que Salvador subisse a seu apartamento e a conquistasse. Amaldiçoou os anos e juras de amor eterno coberto pelo luxo. Nunca havia se enganado sobre o que seu marido fazia. Contudo, acima de qualquer droga ilícita, apaixonou-se pelo homem que a traficava. Para ela não importava se ele vendia cocaína ou tomates, pois Salvador era Salvador, o homem que a fez ver o mundo sob uma ótica completamente diferente daquela ensinada por seu pai.

Por um instante a raiva deu espaço ao carinho. Lembrou-se do rosto jovem e cheio de vida que a abordou naquele fatídico carnaval. Apesar do olhar de crápula e os traços meio grosseiros, sua beleza rústica era agradável. Embora não fosse uma sumidade, Salvador tinha, je ne sais quoi, uma espécie de borogodó, um algo a mais que atraía a atenção das pessoas, principalmente de suas amigas que não paravam de falar dele, seja pelo fato de comê-la com os olhos, seja pelos quase dois metros de altura. Apesar de não ser dada a certos tipos de brincadeira, Helena achou graça dos comentários que variavam desde a cara de cafajeste até cálculos mirabolantes sobre a proporção de outras partes de seu corpo. Eram jovens, riam e curtiam o momento de descontração. Mal sabia ela que uma mísera escolha a colocaria dentro do olho do furacão.

Amava Salvador Lavezzo como jamais amaria outro homem. E, embora dissessem o contrário, por trás daquela carranca criminosa havia um ser humano que, pagando por suas escolhas, não seria adestrado pelo destino. Um homem que não media esforços por aqueles que julgava importante. Outro pobre inconsequente que apostava a liberdade pela sensação de ser livre. Mais um enganado pelo sonho de ser o protagonista da vida, sendo que nela não passavam de meros coadjuvantes apagados pelo tempo. Salvador era tudo isso e mais um pouco. Era o sujeito que roubou seu coração e o destroçou por estupidez. O homem que lhe ofereceu o mundo, mas no fim roubou o que lhe era mais importante. O herói de muitas das suas histórias que, no desfecho do livro, acabaria como vilão.

Bella Mafia - Dinheiro se lava com SangueOnde as histórias ganham vida. Descobre agora