Correr atrás

1 0 0
                                    

Todos tinham metas. E não eram essas que estipulam em empresas em que, por mais que o produto seja ruim, você tem que vendê-lo. Eram metas pessoais. Dessas que os caras inteligentes julgam ser 'imprescindíveis', se você almeja 'crescer'. E não crescer significa perder. Por algum motivo, esses dois verbos constituem uma antítese.

Alguns se espreguiçam de manhã e tentam encostar os dedos no teto; outros, nem tentam.

Ele se levantou e sentou na cadeira, disposto a escrever, essa seria sua meta, terminar o maldito romance e vender para alguém que soubesse como vender para vários outros alguéns. O nariz dele escorria, fazia frio, era julho, e suas esperanças de alcançar qualquer coisa na vida se esvaiam como a coriza. Dois rolos de papel higiênico preenchidos com nada e ele com tudo na cabeça, mas com aquelas folhas vazias, e o mundo era injusto. Ele tinha uma pilha de rascunhos, outra de currículos e nenhuma entrevista agendada. Uma frase de efeito veio à sua cabeça, quando o telefone tocou.

"Oi... aham... sim... sim, é ele... aham... tá... okay... estarei aí... sim, sim... boa tarde".

Ele se sentou novamente (havia se levantado para atender o telefone) e tentou se lembrar da frase de efeito. Em vão. E era tudo de que precisava — você pensa na frase de efeito e escreve o texto em volta dela, o texto nem precisa ser muito bom, as pessoas só vão se lembrar mesmo da frase de efeito, muitos se tornaram grandes assim.

Sobre o telefonema, tinha conseguido uma entrevista, só não se lembrava onde — não se pode escrever e conversar com pessoas ao mesmo tempo. Mas, "tudo bem, essas entrevistas são sempre iguais mesmo". Depois de muitos currículos distribuídos por aqui e ali, chamavam ele pra uma conversa, que na verdade consistia em confirmar as informações que estavam no currículo e pedir atestado de antecedentes criminais.

"Onde você mora?" "Pretensão salarial?" "A empresa oferece blá blá blá blá, tem interesse na vaga?"...

"Qual seu nível de educação?", perguntaram a ele.

"Bom... eu pego trem no Brás, sabe como é".

Era demais para ele pensar em levantar cedo, curar uma gripe, pegar o trem no Brás — e empurrar todo mundo pra isso —, pra chegar nessas entrevistas e ouvir aquelas perguntas, ver aquelas pessoas alinhadas — "não deve ter vindo de trem" — anotando coisas nas pranchetas e dizendo que 'a gente entra em contato'. A vida se repetia, afinal, e por aí as pessoas ficavam maravilhadas com aqueles caras do passado, que 'escrevem coisas tão atuais'. Ora... é sempre a mesma merda, não? O telefone tocou.

"Oi... opa, e ae?... tô bem também... quer dizer, essa gripe não me larga, mas... beleza, beleza... é, tinha cortado, o telefone voltou ontem... é, tinham cortado, paguei a conta semana passada... aí, que eles me disseram para eu ligar lá e pedir que minha linha voltasse... é, tudo filho da puta... marquei uma pra amanhã, mas não vou... alguma coisa pra mim aí no jornal?... ok, tudo bem... beleza... até".

É bom ter alguns amigos para arrumar empregos e mulheres, não muito mais que isso. O amigo trabalhava num jornal de média circulação, anúncios caros, pagavam até que bem. Nosso protagonista largou a faculdade de jornalismo... na verdade, só fez dois semestres.

Voltou pro romance. Tinha só dois capítulos. O cara no telefone tinha metas, e o nosso pensou, novamente, que era isso que lhe faltava, mas voltou atrás e lembrou que as oportunidades também são mal distribuídas. A título de curiosidade, o romance tratava de um homem que não tinha nada e correu atrás de tudo e depois perdeu tudo de propósito, ou quase — no pôquer —, e aquilo deu um sentido à sua vida novamente: correr atrás de tudo que não se tem.

Ele se esforçou e tirou mais dois capítulos de sua cabeça — e mais dois rolos de nada do nariz. Estava se livrando das coisas. O telefone tocou novamente, mas dessa vez ele não atendeu. Pegou um caderno onde anotava as contas da casa e riscou o gasto com o telefone das prioridades.

BukowskianosDonde viven las historias. Descúbrelo ahora