'Não voltam mais'

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Esse cara. Se sentou para cagar. Simplesmente não tinha nada para fazer enquanto não pensava em algo bom, algo que lhe tiraria daquele buraco. Um conto. Se sentou para cagar, como fazia três ou quatro vezes por dia e, ao tentar se limpar, descobriu que não tinha mais papel. Então, permaneceu ali, pensando na vida e em quantas coisas precisamos para vivê-la. "Um homem não consegue se virar muito bem com menos de 500 reais por mês", pensou. E cada homem procura fazer suas contas para chegar ao fim do mês ainda de pé. E não colocam nessa conta só as contas a pagar, aluguel, papel higiênico, mas também o esforço que pretendem fazer para ter tudo isso e quanto vale a pena fazê-lo.

Ele chegava ao fim de cada mês escrevendo. Ganhava em média 20 reais por cada conto publicado em jornal (25 por um conto na edição de domingo) e cerca de 30 reais por cada conto nas revistas. Tinha que escrever pelo menos 16 ou 17 contos por mês, mais ou menos um a cada dois dias. Mas, como todos sabem, os textos escolhem os escritores, eles miram esse ou aquele cara e vão em sua direção. Num mês em que nosso amigo era bastante disputado por esses seres que ocupam todos os espaços vagos da Terra, como o interior de um pote de biscoitos ou circulando pelas correntes do ar condicionado de um escritório, ele escrevia cerca de 40, até 50 contos, quase dois por dia. Mas naquele mês o ar era rarefeito e aquilo lhe incomodava muito. Ele tinha até ali 3 contos escritos, só 1 publicado. Era dia 28 e a senhoria batia à sua porta havia três dias. O aluguel vencera dia 20.

Ele se levantou e subiu as calças, sem notar que não se limpara. Foi até o congelador. Havia 3 salsichas; nenhuma congelada. A luz havia sido cortada uma semana antes. Melhor assim. Comeu uma, sem precisar cozinhar. O gás havia sido cortado duas semanas antes. Pensou em ligar para um amigo e ver se ele tinha uma cerveja que pudesse acompanhar as outras duas salsichas. Trocaria uma cerveja por uma salsicha. Colocou as salsichas num saco de pão que não via pão algum há 40 dias e foi andando até a casa do amigo. O amigo era o único que conhecia, tirando ele próprio, que estava na casa dos 30 e não tinha carteira de habilitação, quem dirá um carro. Ele partiu em direção à casa do amigo perdedor, da subclasse 'pintor', sem avisar antes. O telefone havia sido cortado havia três semanas. Ele nem se lembrava mais.

Pensou que o pintor poderia ter arrumado uma bela loira num bar e estar em meio a um nu artístico, ou mesmo em meio a uma foda. Mas balançou a cabeça e preferiu pensar que o amigo estava nas mesmas condições que ele, ou piores, enquanto ganhava a segunda calçada. Aquilo era mais reconfortante.

No quarto do amigo não havia loira alguma. Até os ratos haviam abandonado o lugar. A porta se abriu ao primeiro toque do punho que escrevia. O punho que escrevia contos se abriu e cumprimentou a mão que pintava quadros de nu artístico — a grande maioria fruto da imaginação do pintor perdedor ou lembrança dos domingos nos shows de variedades.

— Oh, oh. Como eram bons aqueles tempos. – disse o pintor.

— É. E não voltam mais... – completou o contista.

Continuaram nessa por uns 5 minutos, puro papo de perdedor, quando o pintor notou o saco de pães.

— O que traz aí? Não vai me dizer que é pão... não vejo um pão faz duas semanas.

— Não, não é pão. – disse o escritor. — São duas cervej... quero dizer, salsichas, duas salsichas. Pensei que talvez você tivesse duas cervejas, para comermos e bebermos juntos e falarmos da época dos shows de variedades...

— Desculpe, amigo. Não pinto nada faz três semanas. Não tenho dinheiro para as tintas. Talvez... seria melhor começar a escrever, como você.

— Sem chance. Você consegue até duzentas pratas nessas suas telas. Sabe quantos contos tenho que escrever pra conseguir duzentas pratas?

Eles fizeram algumas contas. Contos, quadros, aluguel, papel higiênico — e esforço. O pintor disse que tinha a chave do quarto da vizinha prostituta.

— Já a vi por aqui. É um belo rabo. – disse o escritor. — Anda comendo ela? Seu filho-da-puta sortudo...

— Não, não. Quem me dera. Mas o poeta do 2º andar sim.

— Malditos poetas!

— Hey, cara. Ele é legal. Me arranjou a chave. Quando quero tomar uma cerveja, dou uma descida lá. Ela não tem comida, mas sempre tem cerveja na geladeira. Os clientes trazem... mas ela só bebe quando o cara é realmente feio, ou quando tem um pau descomunal. Ela não vai sentir falta de duas cervejas.

— Ou quatro. – completou o contista, que rapidamente pegou as chaves — "Estão penduradas ali" —, desceu, pegou quatro cervejas e voltou.

Os dois amigos beberam suas cervejas e comeram suas salsichas. O escritor disse que já era hora de ir. "Tenho que cagar. Até mais, amigo". "Até. Vamos no show de variedades", disse o pintor. "Estou com saudade daquelas strippers". "Vamos sim", e se foi, deixando a porta encostada.

BukowskianosWhere stories live. Discover now