O Velho não faz mais leituras

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O lugar era muito limpo — a ponto de desapontá-lo. As pessoas se serviam de vinho em taças, e não usavam as mesmas para o tinto e o branco. Outras bebiam cerveja importada. Bebericavam como se fosse uma grande preciosidade. Ele, sinceramente, não esperava isso. Pensou que encontraria um lugar onde pelo menos o banheiro fosse sujo — era limpo, muito limpo, "eu cagaria e vomitaria ali, abraçando a privada, e cagaria de novo... tinham até sabonete líquido..." Ele esperava, sei lá, mulheres fedendo a látex e homens à derrota. O outro cheiro que encontrou, tirando os vinhos servidos em taças e o sabonete líquido e as cervejas importadas escorrendo pelas bocas rosadas, foi o de perfumes de duzentas pratas. Havia até alguns casais. Ele foi sozinho. Aliás, sozinho não, ele e a garrafa de vinho de plástico e três cigarros amassados no bolso esquerdo da 'calça de segunda a sábado'.

Não havia muitos por aí querendo ser Bukowski, e ele pensou que não seria tão ruim assim aturar o fedor dos perfumes importados e aqueles casais se esfregando na fila para ver um dos poucos caras que estavam dispostos a isso.

Ele mesmo era outro que estava disposto. "Eu devia estar ali", foi o que ele esbravejou, logo no início do primeiro ato.

Começou a ser o velho uns dois anos antes. Leu um poema e depois todo o resto disponível. O poema, que "ele nem se lembra qual", o 'impediu' de se jogar na frente do trem da CPTM. O poema, que "ele nem se lembra qual", tirou ele da linha do trem e o jogou nos cavalinhos e no vinho barato, e ele até comprou uma máquina de escrever. "Me sentava toda noite, depois de 12 horas de trabalho nos Correios, para tentar algo", foi o que ele me contou. Sim, ele até conseguiu, depois de muita insistência, um emprego nos Correios, como o velho, e na época me contou que estava barganhando o turno da madrugada... — espero que tenha conseguido. Bom, o que importa mesmo aqui é o que aconteceu naquele dia, quando ele foi ver o outro cara disposto a ser Bukowski, disposto a ser ele, e teve que aturar os perfumes e casais e beijos e abraços; e sabonete líquido e limpeza e vinhos em taças específicas.

No segundo ato, ele suava frio e agarrava os joelhos como quem está prestes a matar alguém. Ele não teria coragem pra isso, claro, uma vez que nem a própria vida conseguiu tirar. O máximo que conseguiu foi matar uma barata no único banheiro do andar da pensão onde morava até então, no Centro. Ele bateu na criatura uma só vez e ficou olhando ela se contorcendo, até o último suspiro. "Me contaram que a senhorita sobrevive até à radiação. Qual foi? Reage!" Ela não reagiu. Até parou de lutar nos últimos minutos de vida. "Não vale a pena", pensou a barata — eu acho...

O outro Bukowski definitivamente não estava fazendo um bom papel, literalmente.

O conhaque que nosso amigo tomara mais cedo saía pelas ventas, enquanto ele continuava pressionando os punhos e agarrando a calça, na altura dos joelhos. Ele decidiu tirar do bolso direito de sua 'calça de segunda a sábado' um dos cigarros que comprou junto ao vinho. Eu tinha dito bolso esquerdo? Oh, sim, foi isso. Ele decidiu tirar do bolso esquerdo de sua 'calça de segunda a sábado' um dos cigarros que comprou junto ao vinho. Imediatamente, o outro Bukowski, 'sem nenhum estilo', interrompeu a peça e pediu que nosso amigo se retirasse. "Dá pra acreditar nisso?" Ele apontava para um cartaz que dizia 'proibido fumar', balançando o indicador — a banha, que aparecia por debaixo da camisa furada, acompanhava o balançar. As pessoas e casais bateram palmas, ainda segurando as taças de vinho diferentes para tinto e branco nas mãos, e o pano caiu.

BukowskianosWhere stories live. Discover now