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(Mais um capítulo com música. Vou postando algumas das minhas referências musicais para vocês saberem um pouco mais sobre o que escrevo e ouço. Enae Volare é também o nome da palavra-passe para abertura da Muralha do Povoado).

Todos os alunos estavam reunidos no pátio principal recebendo os ensinamentos de Karl. O pátio era a céu aberto e recebia todo clima frio das montanhas, os discípulos sofriam com o mestre que tinha uma predileção especial pelo local, sobretudo em dias chuvosos. Naquele dia ao menos só estava nublado. O grupo recebia instruções sobre postura, sobre olhar compenetrado, sobre antecipação dos ataques. Era a base da doutrina de Langear, vencer sem ser atingido. Entender o movimento do oponente e derrotá-lo antes mesmo de começar o combate.

Gavril chegou ao local acompanhado de Nadia, apoiando-se no ombro de sua mestra. Seu corpo começava a dar sinal de melhora real e todo o cansaço de minutos atrás parecia ser somente uma lembrança incômoda e distante.

– Todos vocês! – bradou a respeitável espadachim, interrompendo os treinamentos dos trinta jovens presentes. – Teremos um treinamento especial hoje, como não temos aqui há muitas décadas.

Karl saiu da arena com um salto, posicionando-se em uma torre improvisada construída meses atrás com madeira e pedras para melhor observar o que estava por vir. O olhar de Gavril estava diferente. Ele dominava o segredo dos mestres, finalmente o guerreiro entendera os meandros da arte de Langear. Impressionava ainda mais o fato de ter conseguido isso tão novo.

– Um corte. – continuou a mestra, dirigindo o olhar para todos os aprendizes com o dedo indicador enrugado e levantado. – Recebendo um corte você se retira. Quando alguém for capaz de atingir Gavril, interrompo e terminamos o treinamento.

Enquanto todos se entreolhavam em confusão, Gavril retirou sua camisa mais uma vez, agora diante de seus companheiros de academia. Suas cicatrizes eram chamativas, mas nada impressionava mais do que a mancha negra e pulsante em seu dorso. Era, de certo modo, hipnotizante.

Todos terminaram de reunir suas espadas e retiraram suas camisas. Cercado por trinta oponentes, o espadachim de olhos dourados ajoelhou-se e começou a mentalizar a voz de sua lâmina. Sentia as passadas de cada um dos presentes, sentia o deslizar das espadas contra o ar, a pressão nas empunhaduras. As lâminas com as quais pretendiam atingi-lo também falavam, mas os jovens que as portavam não conseguiam ouvi-las. Gavril suspirou e manteve seus olhos fechados.

A arte estava tão enraizada em sua mente que acreditou que poderia lutar contra todos aqueles jovens sem nem mesmo abrir os olhos. Era como ter sido cego por toda uma vida e, de repente, passar a enxergar. Gavril não conseguia aceitar como lutara por tanto tempo e sobrevivera sem conhecer um segredo tão poderoso.

O primeiro a atacar não esperou que Gavril se levantasse, porém não foi suficiente para evitar um corte em seu pescoço. E assim foi com o segundo, evitando que as lâminas se chocassem, gingou seu corpo para a direita e depois para a esquerda e então fez um corte preciso no adversário. Em seguida vieram três oponentes, que devido às esquivas sutis do espadachim, atingiram um ao outro e receberam em seguida cortes superficiais em seus pescoços.

Nenhum dos alunos era capaz de atingi-lo, mesmo que dois, três, cinco ou sete o atacassem ao mesmo tempo. Seus reflexos eram rápidos demais, sua espada reagia sozinha, como alguns dos adversários comentavam. Ele sabia, com a certeza do predador espreitando a presa, onde seria atacado e reagia antes mesmo do ataque ser desferido. Quando alguém erguia a espada para atacá-lo, Gavril sabia exatamente a direção que a arma traçaria até atingi-lo. O tempo de reação dos aprendizes para planejar um ataque e executá-lo era o bastante que o espadachim de olhos dourados atacasse antes de ser atingido.

Gavril havia cortado, sem gravidade, cada um dos que haviam tentado aproximar-se dele. A destreza empregada era tamanha que nenhum ataque sequer chegara perto de atingi-lo. Doutrinado e disciplinado, mostrara aos seus mestres, que sorriam em uma satisfação contida, que estava pronto. Havia dominado a arte de Langear e era também um mestre, mesmo que não se considerasse como tal.

****

Os dois dias seguintes ao treinamento onde Gavril pode demonstrar toda sua recém-adquirida habilidade, serviram para mais uma despedida. O espadachim não era do tipo que espalhava seus feitos. Falava pouco, mas suas atitudes gritavam o quão habilidoso e capaz ele era. A impressão que causara nos aprendizes mais jovens deixaria uma marca que jamais seria apagada. Um modelo a seguirem. Reto, determinado, afiado, preciso. Para ele, deixar mais uma vez o templo onde passara a maior parte de sua vida, era doloroso e seu coração pesava na garganta com o peso de mais uma despedida.

– Para onde você pretende ir agora, Gavril? – perguntou Nadia, enquanto acompanhava seu discípulo até a saída do templo.

– Para o sul, Amantá. – respondeu ele. – Antes de voltar ao templo, ouvi rumores sobre uma poderosa clériga dos Dez que São Um. Talvez ela possa ajudar com a maldição que carrego. É apenas um palpite, mas é o melhor que tenho no momento.

– As Estrelas irão guiá-lo. – disse ela. – Sei que não é dos mais religiosos, mas os Deuses olham por você. Olham por todos nós e acreditam em você, independente de que acredite neles. Gostaríamos muito que retornasse, sabe bem que já passamos tempo demais como os únicos mestres deste local... Alguém como você faria a diferença. 

Gavril sorriu e baixou a cabeça sem responder.

–  Jamais se esqueça que os tempos difíceis não criam heróis. É durante os tempos mais difíceis que o herói dentro de você vem à tona. Você é esse tipo de indivíduo. – continuou Nadia.

Com um breve abraço os dois se despediram e Gavril desceu a escadaria de milhares de degraus que separava a altitude do templo das planícies rochosas, fronteiriças com o nordeste das Planícies de Ferro e Sal, as Planícies Rochosas eram habitadas por poucos e apenas os mais fortes ousavam estabelecer uma vida ali.

Nadia acompanhou com o olhar enternecido seu destemido discípulo, enquanto seu irmão chegava a passos lentos e pegava sua mão com carinho fraterno.

– Ele nunca mais irá voltar, irmão. – disse ela com um suspiro.

– Também acredito que não. – respondeu Karl. – Mas o mundo será grato a ele, tanto quanto nós somos por termos convivido com esse jovem. Esses inimigos tentaram acabar comigo porque sabiam que eu iria atrás deles... E agora deixo essa missão para nosso mais brilhante aprendiz. É impossível não me sentir culpado, irmã.

Os dois mestres ficaram ali por um bom tempo apenas observando a passagem das nuvens carregadas que bailavam pelos céus. Cada um com seus próprios pensamentos, refletindo e imaginando o que viria a seguir.

Espada e Dever  - Um livro no Mundo de ThystiumOnde as histórias ganham vida. Descobre agora