10. Half moon

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8 meses antes

Eu comecei essa história dizendo que ela teve um fim. Como qualquer coisa, tem seu início, meio e, eventualmente, fim. É a ordem natural das coisas; não culpo ninguém pela vida ser dessa forma. Chega um momento em que simplesmente não dá mais para ser otimista.
Um mês após a morte de Sana, o tempo parecia passar se arrastando. Os dias tinham a mesma cara, o por do sol era sempre o mesmo. Eu não tinha muito contato com a garota, mas duas pessoas extremamente importantes pra mim tinham, e continuavam extremamente abaladas pela ida dela. Infelizmente, a dor dos outros me abalava de uma maneira que o sofrimento passava pra mim meio que por osmose. Era por isso que eu não conseguia pensar em outra coisa além do acidente de carro de Sana. A imagem que não vi permanecia grudada na minha mente como um terrível pesadelo. Aquilo me afetava de uma tal maneira que cheguei a ter vários pesadelos em que o morto era eu. O discurso de pêsames era pra mim.
Jimin era um caso a parte. Ele tentava ao máximo disfarçar o que sentia, como sempre fez, mas tudo que eu desejava era um pouco de sentimentalismo da parte dele. Afogava suas mágoas em bebida, festas sem fim, milhares de garotas ao mesmo tempo e nem tentava esconder. Eu não ia me meter na vida dele a ponto de regular o que fazer ou não, mas não conseguia deixar de achar que ele precisava de ajuda. Portanto, eu tentava pavimentar os espaços que ele deixava abertos. Sempre que precisava descansar eu me fazia presente com algum videogame novo e cerveja.
Quanto a (s/n), a situação era um pouco mais funda. Ela tentava se recuperar da maneira que conseguia, mas nunca funcionava. Na maior parte do tempo, eu simplesmente queria me dar uns socos, porque não sabia o que fazer. Como ajudar alguém que você tem sentimentos fortes por sem parecer intrometido?
Não me leve a mal, não queria servir como controlador na vida de ninguém. Queria que vivessem do jeito que quisessem, desde que não estivessem entorpecidos pela dor.
Num dos fins de semana sombrios em que as nuvens estavam vermelhas, Taehyung resolveu dar uma festa pra quebrar o clima de morte e tristeza que pairava sobre nosso círculo de amizades. Eu fui, o que ele não esperava, mas eu precisava ir. Quem iria garantir que nenhum dos dois fizesse uma besteira que definitivamente iria se arrepender no futuro?
A festa era como todas eram. Bebidas que não acabam nunca, comida cuja origem permanece desconhecida, algumas substâncias ilícitas que ninguém questiona de onde vieram e música alta. A fumaça espalhada pela sala onde estávamos concentrados era asfixiante, mas eu inalava porque queria espairecer. Relaxar um pouco antes de perder a linha. Jimin se agarrava com uma garota aleatória no sofá da sala, sem dar a mínima pra quem estava por perto, e eu revirava os olhos pra cada gemidinho que saía da boca dela. Recusei pela quinquagésima vez o baseado de Tae, que voltou a fumar. Meus olhos, naquele momento, estavam focados em (s/n), parada do outro lado da sala, com as pernas cruzadas e um livro na mão. O lugar mal tinha iluminação, porém ela de alguma maneira conseguia ler. Forcei um pouco os olhos e enxerguei o alvo de sua atenção: Laranja Mecânica, de Anthony Burgess. Eu gostava dessa história, era interessante e nos fazia pensar. A única coisa estranha era o fato dela estar lendo em uma festa, isolada em um canto. A teia de mentiras na qual estava preso me impedia de ir sentar ao seu lado e procurar entender sua posição. Devido a essa realidade, prestei atenção no meu copo de bebida colorida que continha sei lá o que.
Notei que havia um confete dentro, brilhando com as luzes de led penduradas pelo cômodo. Ri, enfiando os dedos dentro e retirando o negócio, colando-o na testa de Tae, que sorriu na minha direção. Quando ele estava chapado ficava mais de boa ainda.
Todos pareciam estar tendo o mínimo de diversão, menos eu, que não conseguia afastar os pensamentos de que poderia estar sendo útil da minha mente. Sacudi o copo mais uma vez antes de largá-lo na mesinha ao lado do sofá, levantando e me pondo a andar pela casa. Durante o percurso, senti o olhar de (s/n) me seguindo aonde eu ia. Enfiei as mãos em minha jaqueta jeans, pois estava um frio absurdo e o álcool não me esquentava tanto assim. Na varanda da casa de Taehyung havia um banquinho branco como a lua, sempre coberto de orvalho, que costumávamos sentar quando éramos mais novos e a única preocupação era esconder as notas ruins do colégio dos pais. Era janeiro, então a neve ainda estava por lá. Maldita neve que congelava até seus miolos. Meu pé afundava em um monte branco. Seria lindo se não estivesse machucando. Independente da dor, eu não me movia. Voltar pra dentro significava continuar a fingir que estava tudo bem comigo e com todos, o que eu não era capaz de fazer. A luz branca da lua fazia uma perfeição estética com a neve, deixando um pouco da romantização dos dias frios ainda ali. Bufei, sendo perseguido por um vapor que deixou minha boca. Eu tinha algumas possibilidades: ficar sentado lá e morrer congelado ou retornar e encarar o clima estranhamente falso daquela festa. Não podia ir embora e deixar os dois, jamais faria isso. Antes que eu precisasse pensar mais um pouco, fui retirado de meus devaneios por um ser humano que passou em disparada ao meu lado, saindo da casa. Ergui meu olhar e percebi que se tratava de (s/n), andando rapidamente, quase que sem rumo. Mantive meu olhar curioso sobre ela, mas conforme ela se aproximava do breu que aparentava o outro lado da rua, mais meu coração apertava e eu me sentia mal. Sendo assim, num impulso inerente, me vi de pé e a seguindo com o passo acelerado. A escuridão do outro lado da rua foi se dissipando a medida que as luzes iam surgindo, revelando o lugar. Se tratava de uma praça com algumas mesas e alguns brinquedos. Rodei o olhar a procura da garota, e fiquei aliviado quando a vi sentada no balanço iluminado com enfeites de natal. A praça estava decorada com uns pisca pisca e haviam bolinhas vermelhas e douradas penduradas nos pinheiros. Me dei o luxo de observar as luzes piscando antes de sorrateiramente me aproximar da menina, que sentava no banco do balanço sem fazer nenhum movimento específico. (s/n) apenas tinha um olhar vago em seu lindo rosto e os pés enfiados na neve. Eu sabia que a garota já tinha notado a minha presença.
- Posso me sentar aqui? - Perguntei relutantemente.
Ela assentiu, abrindo espaço para que eu realizasse a ação. O contraste da superfície fria com minha pele, mesmo que coberta de roupas grossas, ainda me provocou um calafrio.
A olhei de canto de olho, sem saber muito o que dizer.
- O que está fazendo aqui?
- Não sei - ela respondeu. - Só não estava me sentindo bem naquela sala.
- Ah - murmurei. - Eu também não.
- Bem, ao menos lá está quente. Aqui tá impossível de ficar - constatei com um sorrisinho de lado.
- Você ficou sentado por meia hora naquele banco, não creio que se importe tanto com a temperatura.
- Eu me importo. Só que às vezes é preciso se afastar da concentração humana um pouco pra... Você sabe, pensar.
- Eu tenho pensado demais. - Suspirou. - Acho que isso está se tornando um problema.
- Sobre o que você pensa?
- Na maioria das vezes, como as coisas atingiram esse ponto. Eu olho pro rosto do meu irmão e vejo sofrimento, um que nunca tinha visto antes. Acho que ele realmente tem medo de me perder. Ao menos agora.
- Lembra daquela vez que fomos buscar Namjoon e Gaeul na estação de trem? - Ela assentiu. - Você me falou que achava que ele não gostava de você. Agora acho que tá bem claro que ele te ama mais que tudo.
- Eu meio que agradeço por isso, mas... Não devia. Essas demonstrações gratuitas de amor da parte dele não estariam acontecendo se Sana não tivesse morrido.
- Como você pode presumir algo sem ao menos consegui ver o futuro? Não tem como saber essas coisas, (s/a).
- Mas é óbvio, Jungkook.
- O óbvio é relativo, (s/n).
Ela riu, mas um riso arrastado, como se sentisse pena de si mesma.
- Você não entende. Não esperava que entendesse, nem eu sei do que estou falando.
- Tem razão, eu não entendo, mas quero entender. Provavelmente eu nunca vá sentir o que você está sentindo, porém posso te jurar de pé juntos que o seu sofrimento está me fazendo sofrer de uma maneira que eu nem consigo descrever. Ver você desse jeito, triste e abatida, é como levar múltiplas facadas em um mesmo lugar. Se eu pudesse, pegaria todas as suas frustrações e tristezas e angústias e as jogaria pela janela do prédio mais alto do mundo, e caso não fosse possível, tomaria todas elas pra mim porque eu simplesmente não consigo deixar você continuar desse jeito. - Finalmente respirei depois de quase um monólogo. - E eu acho tudo isso uma porra.
(s/n) tinha os olhos fixos em mim, mas quem não a encarava era eu. Não conseguia depois de me abrir de maneira tão súbita na frente dela. Eu estava emocionalmente cru e isso me preocupava um pouco.
- Por que não me disse isso antes? - Ela perguntou.
- Porque eu tenho problemas de timidez.
Ela murmurou alguns sons sem sentido que eu não consegui distinguir, só me virei pra ela quando ouvi os barulhos de choro vindos da garota, que chorava de soluçar. Meu coração apertou, por isso me levantei e parei na frente do balanço dela, estendendo a minha mão, que ela felizmente aceitou e a pondo de pé. A segurei pelos ombros, limpei suas lágrimas com meus polegares e sorri.
- Vai ficar tudo bem.
A puxei pra um abraço apertado, que ela deliberadamente aceitou, apoiando a cabeça em meu peito, usando minha camisa pra secar suas lágrimas. Apoiei meu queixo na cabeça dela, respirando fundo o cheiro de baunilha.

1 semana depois

Foi uma péssima ideia ter continuado naquela friagem dos infernos ao invés de entrar no ambiente aquecido e termicamente regulado. A consequência de minha imprudência foi um belíssimo resfriado em toda a sua potência, com direito a catarro, febre e tosse. E eu também deveria ficar de cama, para o meu bem estar, segundo o próprio médico.
Meus dias basicamente se resumiam a sopa, remédios e Naruto.
O único que permanecia enchendo o meu saco e também a minha paciência era Taehyung, que insistia que a convivência era um dos melhores remédios. Um dia ele simplesmente parou de vir ao dormitório e a faculdade achou melhor eu passar os dias doente na minha casa. Assim foi feito, o sofrimento era feito no meu quarto, com minha televisão e minha cama. Jimin vinha de dois em dois dias trazer alguma porcaria deliciosa e colocar o papo em dia, contar os absurdos da faculdade e também as maluquices que ele e (s/n) estavam fazendo agora que eram próximos. Ele contou que ambos tinham aprendido umas coreografias loucas e colocavam em prática quando não tinham nada pra fazer ou ao menos queriam fingir que não tinham. Jimin demonstrou algumas pra mim e foi bem divertido. Infelizmente ele tinha que ir embora cedo porque precisava ajudar Yoongi na obra que estava fazendo no quarto de Haera, já que a criança não podia dormir com ele pra sempre.
E mais uma vez eu me via entregue ao tédio. Meus pais haviam viajado para Busan para ver meus avós, mas como a doença me impedia de me mover, fiquei mofando em casa. Os primeiros dias sozinho foram uma benção, ao menos até acordar me sentindo um pedaço de merda pisoteada por um caminhão. Parecia que minha cabeça​ iria explodir em mil pedacinhos, meu corpo todo pesava oitocentos quilos e eu estava me contorcendo na cama. Após um bom tempo ignorando a terrível situação, decidi finalmente dar um descanso a mim mesmo e tentar contato com o resto da civilização. Nem vi a tal pessoa, apenas enviei a mensagem.

Se puder passar aqui em casa rápido eu agradeço. Tô passando mal demais.

Em meio a tanta dor, acabei dormindo sem nem perceber. No sonho, nadava em uma piscina olímpica feita de ouro. Não entendi absolutamente nada.
Acordei com mãos me sacudindo e alguém chamando meu nome. Abri os olhos e assimilei o rosto de (s/n) com uma expressão inteiramente preocupada na minha frente.
- Kookie? Tá me escutando?
- Tô - respondi. - Que horas são?
- Seis e meia. Eu vim correndo quando recebi sua mensagem.
Ah, então tinha mandado pra ela a mensagem. Feliz, porém não surpreso.
- Como você tá se sentindo?
- A merda das merdas.
(s/n) colocou a mão em minha testa, logo após em meu pescoço, tirando a mão e aparentando estar nem um pouco feliz.
- Você está queimando de febre.
- Os remédios estão na cabeceira.
Ela assentiu, trazendo o copo de água na mesa junto com os medicamentos, que tomei junto com um bom gole. Respirei fundo, procurando acalmar meu corpo debilitado. Ela saiu em direção ao banheiro, voltando com uma toalha molhada em suas mãos. Me deitou de volta na minha posição e colocou o pano sobre minha testa, arrancando um sorriso meu.
- Para de sorrir. Não é engraçado.
- Claro que não - respondi. - É fofo.
- Fofo o caralho.
- Quem diria, Park (s/n) é uma fofa.
Ela me lançou um olhar mortal e deu um peteleco na minha orelha. (s/n) puxou as cobertas até tamparem meu corpo por completo, deixando-me embrulhado como um bebê. A garota correu para sentar-se ao meu lado, ajeitando-se para não me atrapalhar. Eu a olhei com os olhos carentes e ela percebeu.
- O que foi?
- Obrigado por ter vindo.
- Eu não seria capaz de deixar você morrendo de dor.
- É meigo porém levemente constrangedor.
- Eu sei. Agora fica quieto, doentes não falam.
- Quem te disse isso?
- Eu me disse.
- Besteira.
Como maneira bem eficaz de me calar, ela selou nossos lábios, minha fala cessando imediatamente.
O tempo foi passando e meu quadro oscilava entre melhora e piora, em todos os momentos daquele dia ela esteve lá pra me amparar, contar piadas ruins e fazer coreografias bizarras. No alto do meu pior, acabei soltando umas palavras que deveria ter guardado por um pouco mais de tempo.
- (s/n) - a chamei em meu delírio.
- Sim? O que é?
- Não me deixa.
Não consegui pegar a resposta facial dela, mas senti sua mão na minha acariciando em círculos.
- Nunca.

Playing With FireWhere stories live. Discover now