Capítulo 03

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Eu pisei na areia branca e olhei para o alto. O sol ardia no topo do céu, intenso e imperdoável.

Exausto pelo calorão e por carregar aquele trambolho azul, eu me escorei num coqueiro e observei o mar.

Com alguma sorte a loja daquele tal de Jones não seria longe. Queria voltar logo pra casa e ver a cara da mãe quando eu aparecesse com feijão, e maçãs, e ovos. Aquela prancha parecia tão cara, que talvez eu pudesse comprar uns bifes. Eu não comia carne há meses.

As ondas rebentavam com força naquela tarde, cobrindo o mar de safira com sua espuma branca. O calor assustou os turistas, e nem os surfistas se arriscavam àquela hora da tarde. As ondas iam e vinham indomadas, me lembrando a sensação gelada nos pés, e o magnífico surfar do Grande Alisson.

Droga. Pensar naquele cara acalorou meu corpo ainda mais. Meus sentimentos começavam a me assustar de verdade, porque não fazia sentido. Alisson era um cara, e bem mais velho que eu. Devia ter uns vinte anos, no mínimo. Eu gostava de mulheres, embora nunca tenha beijado uma, ou... sequer me interessado em fazer isso.

Quando minha preocupação atingia níveis alarmantes, vi dois turistas se aproximando. Um casal como aqueles dos filmes, o homem com óculos de sol enormes e relógio dourado, e a mulher com longos cabelos volumosos, e maquiagem elegante no rosto de cirurgia plástica. A grife MaiMai estampava as roupas de banho, e até o guarda-sol no ombro do homem era de marca internacional.

Eu me encolhi, percebendo que me afastei dos coqueiros como se atraído pelo mar. Exposto nos meus chinelos gastos e bermuda de trapo, eu murchei atrás da prancha azul, querendo desaparecer.

Assim que me avistou, a mulher apertou a alça da bolsa e o homem a conduziu para longe de mim, me contornando como se eu tivesse uma doença.

"Que horror. Um garoto desses com uma prancha tão bonita, de quem acha que ele roubou?" Ela deu um sussurro fingido ao marido, justamente para que eu ouvisse.

"Ele deve ser dos morros. esconda os anéis."

"Uma favela, numa cidade tão bonita. Esses meliantes estragam tudo, mesmo." Disse ela, e os dois seguiram pela areia branca, relaxando apenas quando já estavam bem longe.

Eu os segui com os olhos, e suspirei aliviado. Não parecia que voltariam para me bater.

Novamente sozinho, eu olhei para o mar bem diante de mim, tomado pela frustração e pela mágoa. Por que algumas pessoas valiam menos que outras? Será que eu nunca mereceria ser feliz?

A imagem do Grande Alisson retornou à minha mente como se ele estivesse bem ali, conquistando as ondas como se não fossem nada. Eu toquei meu antebraço, que ainda arrepiava quando eu lembrava seu toque. Todos em Orla das Sereias conheciam seu talento. O Grande Alisson não temia o frio da água, ou a altura das ondas, ou um adolescente loiro e magro, com jeito de mendigo. Ele não se deixava intimidar, e por esse motivo todos o respeitavam.

Nem que demorassem mil anos, eu queria provar daquele mesmo respeito.

Pensando bem, por que não ali mesmo, naquele instante?

Eu ergui a prancha sobre a cabeça, chutei meus chinelos longe e avancei na direção do mar. As ondas bateram nos meus tornozelos, nas minhas pernas, na minha cintura. Logo me vi cercado pelo brilho esverdeado do mar, e pelos peixinhos que nadavam entre os corais, sob os meus pés. Eu continuei avançando até a água atingir meu pescoço, trancando a respiração para cada onda que acertava meu rosto. Nem as maiores turbulências me fizeram recuar.

Quando enfim alcancei a área de formação das ondas, eu subi de joelhos na prancha e estremeci, tentando me manter em cima. A prancha oscilou para frente e para trás, e quando enfim se estabilizou uma onda me acertou em cheio, me arremessando contra a água.

O Preço da Adoração (AMOSTRA)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora