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Me peguei olhando para meu bowl de frutas, com a vista turva e uma leve dor de cabeça, eu não havia dormido direito ontem devido a uma crise existencial. Tentei esconder minhas olheiras com maquiagem, por mais que fosse proibido na comunidade, mas não adiantou muito. Minhas pálpebras pesavam como chumbo e minha cabeça estava pousada em minha mão.

Dancei as frutas com o garfo, sem perceber a presença de Irmã Cecília ali.

-Irmã Marianna? Meu Senhor, você parece um defunto, o que aconteceu? - Preocupada, ela puxou a cadeira e esfregou minhas costas.

-Hm? - Voltei á tona. - Me desculpe, não dormi muito bem ontem á noite.

O barulho alto do refeitório doía meus ouvidos, eu queria um momento de silêncio.

-Você está com círculos enormes em volta dos olhos! O que aconteceu?

-E-eu... - Tentei achar alguma desculpa esfarrapada para responder á pergunta de Irmã Cecília, mas através da porta de vidro, vi a imagem de Papa Emeritus III chegar rapidamente.

Me desesperei para sair dali e acabei derrubando o bowl de cerâmica, fazendo o mesmo se estilhaçar em vários pedacinhos no chão, o barulho atraiu a atenção de todas as Irmãs que estavam ali tomando o café da manhã. Saí dali correndo o mais rápido que pude, entrando pela cozinha e saindo pela porta dos fundos. Não queria ver ninguém naquele momento, não queria conversa com Terzo, apenas focar em mim mesma.

Mais uma vez, meu coração acelerava rapidamente, sendo possível de escutá-lo em meus ouvidos. Voltei para meu dormitório e quando tive certeza que ninguém mais estava vindo, retirei a touca preta e branca, deixando meus cabelos soltos e á mostra. Me sentei na cama, com o polegar e o indicador em meus olhos, forçando-os, vendo apenas a escuridão. Por mais que os dormitórios fossem frios e sempre frescos, minha franja estava suada, colada sob minha testa. Torci para que ninguém viesse atrás de mim naquele momento, então apenas me levantei e passei uma água no rosto.

Provavelmente eu escaparia do almoço, indo comer algo apenas de noite, quando todas já estivessem em seu 3° sono. Me olhei no espelho, encarando minha própria imagem bagunçada. As olheiras, meu piercing industrial que cruzava minhas duas hélices, meus olhos verdes sem vida. Eu não me reconhecia. Como disse antes, nunca quis ser freira, Irmã Cecília e Irmã Ângela sempre me forçavam a ficar naquela gaiola, sem ter uma única oportunidade de ser livre. A raiva consumiu meu corpo e senti vontade de chorar. Me sentei na cama e joguei meu corpo para trás, tapando os olhos com a mão.

E assim acabei dormindo de tanto chorar, fazendo do travesseiro uma verdadeira esponja úmida. Acordei horas depois, com duas batidas leves na porta, com alguém chamando meu nome.

-Marianna? Está aí? - Me remexi na cama quando reconheci a voz de Cecília.

Não respondi.

-Por favor, estamos todas preocupadas. Terzo quer saber de notícias suas. Você não comeu nada o dia todo.

E por que Terzo queria saber de mim?

-Vou deixar seu jantar aqui fora, ok? Mas preciso que me conte o que está acontecendo, você tem agido tão estranha desde a chegada dele.

Só quero que essa sensação ruim que ele me traz vá embora logo.

-Vou entender se estiver brava comigo por ter te forçado a ir lá falar com ele. - Uma longa pausa foi dada. - Mari... você não tem amigos, só lê naquele jardim estúpido mas... dê uma chance para Terzo, eu te imploro.

Suspirei fundo e apertei meu travesseiro.

-Boa noite, fique com Deus. Não se esqueça de comer. - Pela fresta de baixo iluminada pela luz do corredor pude ver que ela finalmente tinha se ido e me deixado em paz.

O ambiente estava totalmente escuro agora, apenas a lua cheia iluminando as cortinas claras do meu quarto. Como eu havia dormido o dia inteiro, tive a liberdade de ficar acordada o resto da noite. Abri a porta com cuidado para não fazer nenhum barulho e peguei a vasilha de plástico, levando-a comigo até o jardim. Eu não me importava se odiavam que eu ficasse ali, já que era meu único lugar de refúgio.

Dessa vez, torci para que ninguém me encontrasse, inclusive Papa. Abri o pote e comecei a jantar o macarrão com camarão. Eu estava verdadeiramente faminta, foi uma péssima ideia ter ignorado duas refeições seguidas. Me sentei na grama ao lado de um banco, e apoiei o braço no cimento gelado do mesmo, dando garfadas e giradas na massa. Levantei a cabeça e olhei para a lua, amarela como um queijo e brilhava intensamente, iluminando cada centímetro de minha pele.

Nela, tentei procurar todas as respostas de minhas perguntas que tinha sobre Papa Emeritus. Deveria mesmo dar uma chance pra ele? A que custo?

-Você parece confusa. - Tomei um susto enorme quando a voz de Papa surgiu atrás de mim. - Talvez eu deva parar de te assustar.

-Ainda mais de noite. - Voltei a controlar minha respiração.

Meu plano falhou, simplesmente não dava pra ficar sozinha naquele lugar. Observei o homem se sentar ao meu lado, notei que ele havia acabado de tomar um banho, pelo cheiro de seu perfume maravilhoso misturado com o aroma do sabonete.

-Vi você sair de fininho até aqui. Fiquei preocupado de que eu tivesse feito algo de errado assim que entrei no refeitório.

E você realmente fez. Vamos lá, Marianna, diga a verdade.

-Não se preocupe, Terzo. A culpa não é sua. - Suspirei fundo e continuei a olhar para a lua brilhante, aliviada por ter mentido.

Pude sentir seu olhar queimar sob minha pele, e era uma sensação estranhamente gostosa.

-Eu reconheço esse olhar, Marianna. Me diga o que está havendo, manterei isso entre nós. - Ele levantou o mindinho, indicando que era para cruzar o meu com o seu, como sinal de promessa.

Assenti e fiz o que deveria fazer.

Mordi o lábio, pensando por onde deveria começar.

-Eu... conheci um cara. Mas ele me intimida de alguma forma, sinto que ele está querendo jogar um jogo comigo. - Brinquei com o macarrão na vasilha.

-E você sente que está vencendo o jogo? - Ele também apoiou o braço no banco e tombou a cabeça levemente para me encarar.

-Não sei. Acho que não. Todas essas dúvidas e paranóias estão me deixando fraca, vou ficar impossibilitada de jogar na próxima fase.

-Não diga assim, Mari. Há quanto tempo você conheceu ele?

-Uma semana. - Estava deixando muito óbvio que era ele, então adicionei uma leve mentira.

-É alguém de confiança?

-Hmm...Sim. É o que dizem.

-Então não há com o que se preocupar, doçura. Deus escreve certo em linhas tortas, Ele sabe o que faz. - Ele apontou com o dedo para o céu.

-Não quero duvidar dEle mas e se Ele não responder ás minhas perguntas?

-Ele não faria isso, porque Ele te ama.

Era estranho ouvir aquilo de um Papa que tinha uma aparência diabólica, era como se fosse misturar a mesma quantidade de sal e açúcar numa receita. Eu duvido muito que Ele fará isso.

-Não se culpe muito por isso, Marianna. Não nascemos perfeitos, e nunca seremos o suficiente. - Ele me tranquilizou, apoiando a mão em meu ombro.

Assenti com a cabeça, absorvendo aquela frase.

-Durma com Deus, espero ver você amanhã no café novamente. - Terzo sorriu e depositou um selinho em minha testa. - Não vá deitar muito tarde.

Ele se levantou, limpou a grama das calças e seguiu até o seu dormitório particular  que era separado das Irmãs. Olhei a porta de entrada do jardim, ainda com a imagem de Papa Emeritus me encarando durante a missa em minha cabeça. Valeria a pena conhecer melhor esse homem?

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Pecado Desejadoحيث تعيش القصص. اكتشف الآن