Capítulo 3

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Morar com Helena por meses fez com que morar sozinha parecesse solitário. Embora por um tempo foi, depois que me acostumei com Flyin morando comigo, tudo melhorou.

Ter a sua presença me trouxe paz, ter com quem conversar sem que me julgue me traz alívio. É claro que as vezes penso estar louca, até porque ele é um cachorro, um golden lindo.

Assim que abro a porta ele já se anima, me animando junto.

Corro por alguns minutos sem parar, apenas Flyin e eu. Estamos em forma, estamos liberando estresse, gastando energia. Não tem coisa melhor.

Quando sinto as pernas doerem, paro aos poucos, fazendo Flyin parar junto.

— E aí, garoto? — me agacho sem ar. — Por você nós dois completaríamos 1 hora inteira sem parar né?

Ele não responde, é claro. Mas a sua lambida diz bem mais que um sim.

Me sento na grama do parque e me jogo para trás. Flyin deita ao meu lado com a língua para fora e eu faço carinho no seu pelo loiro até cansar.

— É carma — penso alto. — Eu já estava bem. Nós estamos bem, né? Ele não precisava aparecer. Oh Deus, por quê?




— Miller, um senhor está na enfermagem te chamando — o enfermeiro Pietro me chama.

— Já estou indo — me levanto saindo da sala da minha residente responsável, colocando o estereoscópico no pescoço.

Assim que passo pela triagem, caminho até uma das salas de enfermagem vazia, um pouco distante dos outros setores.

— Boa tarde, senhor Yuind — altero a voz meiga pegando o prontuário antes mesmo de o ver. — Como estão esses pontos?

— Estão bem — ele responde sem muita certeza.

Assim que termino de preencher alguns campos ausentes no prontuário, pego uma cadeira no meio de uma mesa e levo até o paciente. Antes de sentar, percebo mais duas figuras ao lado do senhor.

Uma senhora vestida toda de branco, que imagino ser a cuidadora e, para a minha sorte, Hariel.

Ele virou motorista particular agora?

— Boa tarde — comprimento os dois, os olhando de relance.

"Boa tarde" — os dois respondem juntos.

Pego o meu oximêtro e coloco no dedo do paciente, pedindo licença e examinando a sua pressão arterial.

— Tudo ok — informo. — Já mediu a glicemia hoje?

— De manhã, antes do café da manhã. — A senhora ao lado responde.

— Perfeito, estava quantos? — pergunto olhando para a senhora que tem a resposta na ponta da língua:

— 180.

— Hum, um pouco alta para quem estava de jejum. Vamos fazer de novo, senhor Yuind? — pergunto com a voz doce e elevada.

Ele dá de ombros, sem muita importância.

Pego o glicossimetro e faço o exame rápido. Durante todo o procedimento, sinto os olhos de Hariel sobre mim. Não só avaliando o exame, mas me avaliando por completa.

Eu podia estar totalmente sem jeito ou mexida por ele estar aqui, mas sinto tanta confiança no que faço, que quase esqueço a sua presença em pé ao meu lado.

— 98, está ok — asseguro, confirmando o exame.

— É difícil equilibrar Doutora, mas eu sou bonzinho — ele brinca olhando para a senhora.

Fixo os olhos nele e sorrio para a senhora que sorri de volta. 

— E há quanto tempo o senhor descobriu que tem diabetes? — Pergunto. — Tá cuidando bem?

— Sim — ele arregala os olhos com um sorriso divertido. — A minha falecida mulher sempre me privada de doces e massas porque eu tinha pré diabetes, mas não adiantou.

Sorrio ao ver o sorriso crescer quando menciona a falecida mulher.

— O senhor foi casado por quanto tempo? — pergunto pegando os materiais para tirar os pontos, afim de fazê-lo se distrair.

— Casamos com oito meses de namoro, foram 37 anos casados — ele sorri me olhando. — Elisangela, lindos olhos verdes e cabelos castanhos.

Ele tem um sorriso largo, tão largo que mostra os implantes dentarios superficiais. Ele percebe o meu sorriso e então pergunta:

— A doutora é casada?

— Eu? — pergunto dando tempo para mudar de expressão. — Não sou.

Antes que eu possa evitar, meus olhos viajam pela sala, encontrando Hariel enfiando o celular no bolso com um olhar sério e fixos em mim, deixando as mãos nos bolsos da calça, arrumando a coluna e voltando o olhar para o senhor. 

Evito ao máximo responder as perguntas íntimas que Yuind faz durante a retirada dos pontos. A maioria sobre a faculdade e família, agradeço aos céus por não ser nenhuma sobre relacionamentos.

— Prontinho — falo assim que termino. — Nem vai ficar feia a cicatriz.

— Com essas mãos de anjos — Yuind brinca. — Obrigada, doutora.

— Eu que agradeço — respondo o acompanhando até a porta da sala. — Toma cuidado, viu.

— Ele é danado, foi só eu olhar para o lado que ele se enfiou no meio dos carros. — A senhora sorri. — Obrigada.

Sorrio me afastando enquanto ela o ajuda a sair da sala.

Vou até a bancada onde deixei a tesoura e a pinça clínica. Quando vou até o lixo de materiais descartáveis e infectados para jogar fora, Hariel ainda está imóvel no mesmo lugar, em frente ao lixo.

Arrumo a postura, ficando um pouco abaixo da sua altura e o olho séria.

— Posso descartar o material infectado ou vai ficar me atrapalhando? — pergunto. 

Ele não responde apenas me avalia, olhando cada detalhe do meu rosto, depois abaixando os olhos sobre o meu corpo, me deixando mais nervosa que o normal.

— Por favor — peço, sentindo a voz falhar enquanto seguro as lágrimas que estão quase se formando nos olhos.

— Claro — ele continua por um tempo imóvel, estralando a mandíbula.

E então ele sai com o semblante frio, deixando só o seu cheiro.

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