Capítulo Cem

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Deixa a timidez de lado

Dj Guuga – Vidrado em Você


Como o Pivete tinha falado, haviam deixado o corpo do moleque nos fundos da loja, em cima de uma mesa firme de madeira.

Cara, eu não sei explicar direito, mas eu simplesmente achei horrível o jeito como os outros moleques que haviam levado ele pra lá tinham "ajeitado" o corpo dele de modo a parecer com um velório formal — ele tinha as mãos cruzadas sobre o peito e a cabeça tava pendendo um pouco para a direita.

O moleque tava vestido numa camiseta regata da Quiksilver, uma bermuda água e um Kenner nos pés. Tudo ligeiramente normal, não fosse os quatro buracos... dois no peito e dois na testa.

— Quem limpou o rosto dele? — decidi perguntar pra um dos moleques que estavam de pé ao redor da mesa.

— Eu — assumiu um deles, o mais baixinho, meio branquinho, que usava um boné branco também. — O Victor era firmeza, mano, tava sempre com a gente aí na correria e a gente encontrou ele... todo zoado, a cara com o sangue seco, grudando e a... a Lais aqui falou que dava pra tirar com um pouco de água quente. O mano merecia esse cuidado. Merecia.

Os outros resmungaram em apoio.

Identifiquei a tal Lais por ser a única mulher no lugar. Ela tava sentada nos degraus da escada que levava ao segundo andar. Tinha a pele relativamente clara, o toque do sol e os cabelos lisos e um olhar meio sofrido, de quem já tinha passado por muita merda. Era bonita. De algum modo, ainda que fosse bem diferente, ela me lembrou daquela mina que o Russo tinha levado junto com o moleque pros trampos na Itália — Ariadne, eu acho, refleti.

E dava pra ver que tinham usado água quente pra lavar o rosto do moleque, porque a pele tava bem avermelhada, mas me parecia que nem tanto pela temperatura da água, mas sim porque deveriam ter esfregado com um pouco de força.

Corri um olhar pela molecada...

Se o mais velho entre eles tivesse vinte anos, era muito.

— Cadê o... como é o nome daquele maluco que eu vi na responsa lá fora? — perguntei, porque o Tatu tinha congelado, cara. Ele olhava fixo pro corpo do moleque, mas seus olhos não estavam enxergando ele de verdade; tava numa outra dimensão.

— O Diguinho? — o mesmo moleque de boné branco falou, colocando os braços pra trás. O moleque não merecia, mas eu fiquei meio incomodado com a postura dele. Tá ligado, ele parecia querer o tempo todo mostrar que era envolvido, que tinha experiência com o crime, que era perigoso, sério e entendia tanto quanto o Tatu e eu, o que eu sabia ser normal. Na quebrada, até mesmo a molecada que não era de fato envolvida tinha esse deslumbre com o Comando, como um moleque novo feito ele não teria? Só que essa mesma postura me fez lembrar do Capuava quando tínhamos a idade dele. O Capuava tinha essa mesma postura: a cara fechada, o vocabulário forçado, as mãos nas costas e o queixo meio erguido. Mas, tentei me desvencilhar dessa impressão. Não foi fácil, mas tentei. — Ele tá na responsa da loja, irmão. Você tá ligado como é: o mundo para, mas a loja nunca. É vinte quatro por sete.

— Por que você tá me falando isso? — o questionei, foi mais forte que eu. — É você que tá na gerência aqui?

Ele se retraiu, tenso.

— Não, mano, não. É o... o Pivete que tá dando uma moral aí, eu só comentei que...

— E peraí que essa história aqui tá muito mal contada — o cortei. — Olha a hora, moleque. Meio da tarde, solzão e a quebrada toda na rua e vocês me encontram o corpo dele agora? E falou aí que tiveram de lavar o rosto dele com água quente porque o sangue tava seco. Como é que o corpo dele ficou jogado por aí por tanto tempo sem que ninguém percebesse? Ou você vai me dizer que já tinham encontrado ele e resolveram avisar só agora?

DeclínioOnde as histórias ganham vida. Descobre agora