Capítulo 23 - Inimiga.

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H A N S
W E S T E R G A A R D
D U R A N D A L III

Alguns minutos antes...

A chama alaranjada da tocha ilumina o caminho de terra e rocha, mas a escuridão à frente é maciça. Não penso no que faço, correndo por instinto, ignorando as vozes que sussurram nos meus ouvidos.

Você tem que sofrer, não será perdoado.

Ninguém nunca vai te amar.

Você sabe que não merece ser feliz.

Engulo seco, apertando os dentes. Esse é o poder de um Rio do Submundo. Faz sentido que parte do Cócito passe por este templo, afinal, almas torturadas gravitam ao redor da deusa da Misericórdia. Os semideuses que entram nessa caverna não retornam. É difícil não sucumbir à desesperança. Ou ao altruísmo autodestrutivo — o que é o meu caso.

Meu raciocínio emite um alerta: isso é idiota. Tudo indica que devo abandonar Astrid. Ela é o único obstáculo entre mim e Anna. Ela me deixaria aqui para morrer. Jamais voltaria por mim. A filha da Guerra é uma inimiga declarada. Por que estou fazendo isso?

Desemboco num trecho úmido e mal iluminado, na bifurcação entre os túneis. Estou prestes seguir reto, quando detecto uma fina tira de couro trançado. Chego perto e alcanço o headband de Astrid, guardando-o no bolso. A areia do chão foi remexida, pegadas seguem para o túnel estreito e sombrio ao lado. Tenho um arrepio só de ver. Deve ser o Labirinto.

Avanço para a escuridão absoluta sem pensar.

Vejo a chama da tocha bruxulear, como se a própria luz soubesse seus limites. Mas acho que não sei os meus. O fogo espanta não só as sombras, como também tenho a impressão de que afugenta os espectros transparentes, que deslizam para longe.

Uma gota de suor frio me escorre pela testa, ao ouvir o sibilar de alguma criatura que se arrasta na profundidade desses túneis, em resposta ao alarde causado pelo monstro na entrada da caverna. As rochas estremecem e poeira cai de fissuras que se abrem no teto.

Quando acho que o lugar vai desabar sobre mim e que nunca vou encontrar ninguém, a claridade atinge a garota encolhida no chão, que abraça os joelhos, de cabeça baixa. Meu pulso acelera ao ver Astrid, e apresso o passo.

— Levanta — comando ao me aproximar —, os outros estão nos esperando.

A semideusa ergue o rosto, espremendo a vista contra a luz, cega pelo brilho. Ela estava chorando, tão abalada que nem se importa em esconder as lágrimas. Isso me afeta, me pega desprevenido. Não é a guerreira hostil e implacável que eu esperava encontrar. Vulnerável e indefesa, sequer aparenta ser uma das minhas piores ameaças.

Um guinchar suíno ecoa à distância, seguido pelo silvo monstruoso de uma serpente, que deve ter acordado para proteger seu território. Um tremor reverbera nas paredes de pedra.

— Pegue o seu machado — estico a mão para uma Astrid atordoada. — Sua luta ainda não acabou.

Meio catatônica, a loira alcança o machado, como se não processasse a informação direito. Apressado, sou rápido em puxar sua mão gelada, colocando-a de pé.

Tenho o impulso de guiá-la de volta por onde vim. Não saímos do lugar, entretanto. Uma névoa roxa e densa se espalha vagarosa, como nitrogênio líquido. Gás venenoso, expelido pelo monstro que nos encurralou aqui.

Você é um fracasso, é o murmúrio no fundo dos meus pensamentos. O mundo é melhor sem você. Corra para a névoa, abrace a morte.

Equinócio de AnnaWhere stories live. Discover now