1. Os diversos tipos de programas

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— Sim, vai ficar pronto até a edição de amanhã, Michael! — Disse pela milionésima vez ao supervisor do jornal pelo telefone. 

— Mas era para você ter entregado o último rascunho às 13 horas de hoje. Já são 13 horas e 50 minutos. A Paula tá no meu pé para concluir o layout e o Rodrigo já me entregou a arte.

— Se você parar de me ligar a cada 5 minutos, talvez eu consiga concluir ainda hoje. Falta muito pouco para eu pegar um ônibus e ir até a sua casa, socar esse rascunho no seu rabo. Muito pouco, Michael. — Suspirei, afastando o telefone do ouvido e escorando a cabeça na parede. Bati duas vezes a testa contra o concreto e voltei o aparelho para o ouvido. — Você deixou bem claro que a deadline seria às 15 horas. Antes disso estará na sua caixa de entrada.

Michael protestou, mas antes que ele despejasse qualquer outra reclamação encima de mim, concluí:

"Às 15h, Michael. Eu nunca perdi um prazo antes. Pelo amor de Deus, homem." Ele concordou, um tanto controverso, e desligou o telefone. 

Me joguei na cama e enfiei a cara no travesseiro. Soltei um grito longo e reconfortante antes de voltar ao trabalho e terminar as últimas alterações do artigo. Embora a minha coluna estivesse no jornal por conta da minha opinião forte e que, aparentemente, divertia os leitores. Não foi o caso da publicação dessa semana. Ou talvez, Michael estivesse mais chateado que o normal com o seu namorado Artur e resolveu descontar em mim. Naquela tarde concluí o artigo na força do ódio e tive o prazer de aguardar até às 14 horas e 58 minutos para apertar enviar. 

— É o fim, Gary. — Disse ao meu gato, o que pode parecer triste, mas Gary Caracol é um bom ouvinte. Após um expediente de 17 horas, fechei o notebook e guardei-o no fundo do armário. — Finalmente sexta-feira! E a noite de hoje merece uma comemoração, você não acha?

Gary não respondeu e eu já estava acostumada, afinal, ele é um gato. Listei mentalmente o que seria preciso comprar para fazer um date comigo mesma nesta noite e, juntando o que restou da minha força vital, saí do apartamento com destino ao mercado.

Me encarando no espelho do elevador, me senti orgulhosa do que vi. Não da imagem, é claro. As olheiras profundas e o cabelo oleoso preso no estilo ninho de passarinho, não favoreciam em nada a minha persona. Mas sempre que essa era a imagem que eu via refletida, sabia que havia dedicado o máximo para entregar um bom trabalho. 

Chegando na portaria com várias sacolas do supermercado nas mãos, tentei de toda as formas acionar o elevador. Punhos, cotovelos... e quando estava prestes a tentar apertar o botão com o nariz, uma pequena mãozinha cortou a minha frente e acionou o botão. 

— Obrigada! — Sorri em agradecimento para a garotinha. Ela sorriu de volta e alisou as suas marias-chiquinhas. 

— Como é seu nome? — Perguntou ela se balançando na ponta dos pés. 

— Marina e o seu?

— Ana Clara. Eu me mudei há uma semana. Eu acho... Que dia é hoje mesmo? Ahh... hoje é sexta. Sexta é o dia que minha mãe me busca na escola e me leva para almoçar. — Ela comprimiu os lábios olhando envolta.

"Ei, tu não estuda não?" Perguntou a garotinha novamente.

— Não, eu só trabalho. 

— Aonde? — Ela inclinou um pouco a cabeça, enrolando o cabelo nos dedos.

— Eu sou jornalista. — Respondi balançando positivamente a cabeça, tentando demonstrar que era um trabalho importante.

— Tipo essas de televisão? — Ela franziu a testa.

— É... mais ou menos isso. — Concluí no instante em que as portas do elevador se abriram e adentramos.

"Você pode apertar o número 7 para mim?" Pedi torcendo para que ela tivesse idade suficiente para saber qual era o número 7.

— Que legal! Eu também moro no número 7. — Adentramos, mas o silêncio não permaneceu por mais de meio segundo. 

"Quando eu crescer, eu vou ser astronauta. O meu pai disse que eu preciso estudar muito, mas eu não gosto muito de estudar. Então não sei se vou ser uma boa astronauta. Ele disse que não existem muitas mulheres astronautas e que isso é um problema no mundo, porque se existissem mais mulheres astronautas, nós já teríamos batatas plantadas na lua. Eu quero muito plantar batatas na lua, porque batata-frita é a minha comida favorita. Qual a sua comida favorita, Marina?"

Pisquei por alguns segundos tentando absorver toda aquela informação. 

— Eu também adoro batata-frita. Acho que batatas-fritas lunares serão deliciosas. — Ela cobriu a boca rindo animadamente no instante em que as portas se abriram no sétimo andar. 

Olhei em volta ansiosa, me dando conta de que a garota havia estado sozinha desde a portaria do prédio. Segui em direção a minha porta e ela parou para amarrar os cadarços na saída do elevador. Vasculhei as sacolas de plástico em busca da chave, espiando a menina pelo canto dos olhos. Por ter conversado com ela e por termos subido juntas, me senti responsável pela menininha. Depois de vasculhar três sacolas diferentes e não ver indício da chave, senti meu estômago revirar. Será que eu havia perdido no caminho? 

— Papai, você não vai acreditar! A menina aí do lado faz programa! — Ouvi a voz da, doce menina, Ana Clara ressoar pelo corredor vazio e comprimindo os lábios para conter o riso, ergui a cabeça para a porta vizinha.

Quando olhei para o homem, já com um sorriso amarelo no rosto, senti meu queixo ir ao chão. Era um rapaz alto e jovem, com cabelos escuros e olhos verdes, não devia ter mais de 25 anos. Vestia uma calça de moletom cinza e uma camiseta preta. Ele corou ao ouvir as palavras da filha e com um sorriso sem graça, deu passagem para ela entrar no apartamento.

Sem jeito, dei as costas para ele e me apressei em catar a chave com mais afinco. Desastrada como sou, derrubei algumas sacolas no chão e um pepino rolou até os pés dele.

— Usa isso nos programas? — Perguntou ele, devolvendo o meu pepino. 

Comprimi os lábios novamente e respondi tentando manter a compostura: 

— As vezes... quando preciso fazer alguma matéria sobre o uso indevido de agrotóxicos.

Um sorriso enviesado se abriu deliciosamente devagar no rosto dele. Ele concordou com a cabeça, passado os dedos entre os cabelos negros, jogando a franja para trás.

— Que tipo de programa você pensou que ela estava falando? — Franzi a testa, dando um falso ar de ofensa à minha pergunta.

Ele soltou um riso nervoso com a pergunta indecente e coçou o nariz, escondendo a boca com a mão.

— Achei que você desenvolvia softwares. — Foi a resposta dele. 

E com um sorriso irônico, o rapaz entrou no seu apartamento.

Chocada, fiquei encarando a porta do apartamento 703 por alguns instantes antes de voltar a procurar a minha chave. Ainda repassando o diálogo na minha cabeça, destranquei a porta e entrei no apartamento. Aquela sexta-feira foi mais promissora do que o planejado. Eu não só beberia um ótimo vinho com uma deliciosa seleção de dois queijos da promoção, como o Gary comeria patê de atum fresco. E além disso, o meu vizinho novo era um gato, e ouso dizer, estava flertando comigo.

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