Era uma memória preciosa, mas Gaspard não poderia se prender às memórias do passado. Precisava assegurar que Mylène estaria a salvo. Não podia se dar ao luxo de perder mais nada. Pegou a mão da noiva e começou a levá-la para a carruagem.

Pelo menos era o que ele pensava estar fazendo.

Gaspard havia se divertido muito na primeira vez que ele e Marianne foram ao festival da primavera. Ela ainda estava bastante chateada por não poder ver Adele, então ver a irmã sorrindo de verdade era um bálsamo para a sua alma.

Mas o festival da sua memória não se parecia em nada com a cena que presenciava naquele momento. E, apesar de ter gritado mais uma vez para que as pessoas procurassem por abrigo, ninguém parecia ter lhe dado atenção. O que ele estava fazendo? Precisava deixar Mylène na carruagem, os guardas de plantão que cuidassem dos outros. Segurou as mãos da noiva e percorreu pelas ruas do centro da Capital que conhecia tão bem.

Porém as memórias não o deixavam em paz. Quando tinha dez anos, e Marianne quinze, foram mais uma vez ao festival depois de implorarem muito aos pais. Entretanto, Gaspard estava chateado porque queria ver todas as barracas, enquanto a irmã insistia que eles ficassem perto de um palco. Quantas vezes eles repetiram o diálogo?

— Vamos, Marianne! — ele pestanejara.

—Só mais essa apresentação, pode ser? Eu prometo que depois a gente vai ver as barracas.

— Gaspard, para onde estamos indo? — Mylène perguntou, sua voz distante.

O pequeno Gaspard acordara de madrugada por conta do calor. Ele se levantou da cama, ficando na ponta dos pés para abrir a janela. Ao fazê-lo, percebeu um vulto correndo e entrando por uma passagem da cerca viva. Não havia dúvidas que o vulto era de sua irmã. Ficou preocupado, mas resolveu não contar nada aos pais ou empregados. Até porque fazia dias que Marianne não saía do quarto, chateada pela proibição de não poderem ir ao festival daquele ano. Então, aquela escapada significava que ela estava se sentindo melhor, não é mesmo?


— Gaspard!

Marianne estava mais uma vez trancada em seu quarto. Seu choro era alto e Gaspard podia ouvi-lo do lado de fora da porta. Gostaria de entrar para consolá-la, mas a governanta apareceu e o mandou voltar para as práticas de piano. Aquilo não era assunto para ele e embora quisesse perguntar, era um garoto obediente. Voltou a tocar como se nada estivesse acontecendo.

Porém a melodia que chegou aos seus ouvidos foi a do desespero de quem estava à sua volta. Gritos, lamúrias, medo de uma nova guerra; tudo misturado. Ninguém tinha ideia do que estava acontecendo.

A última vez que vira Marianne parecia mais real do que o centro da cidade em que estava. Ele acordara assustado com a irmã o balançando com cuidado, aninhando-o em seu colo como se ele ainda fosse uma criança pequena. Seu semblante estava radiante pela primeira vez em tempos. Ela sorriu, olhou para ele e disse:

— GASPARD! — a voz de Mylène o transportou de vez para o presente. Foi naquela hora que ele percebeu que o lado esquerdo da face estava dolorido. — Gaspard, está me ouvindo?

— Sim... você está bem? — Perguntou automaticamente, massageando a bochecha.

— Desculpe pelo tapa, foi a única maneira que encontrei para chamar a sua atenção! E agora quer saber se eu estou bem? — Mylène perguntou, rindo num misto de sarcasmo e incredulidade. — É você que estava me puxando pelas ruas sem rumo, sem prestar atenção nenhuma. Estou preocupada com você, isso sim.

— Por que preocupada? — ele indagou, olhando para os lados, sem encará-la. Sentia como se tivessem virado seu coração do avesso e não queria responder as perguntas que Mylène sem dúvida faria.

As Incertezas da FortunaWhere stories live. Discover now