Eu não vou fugir

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“Quem sou eu? Quem é essa pessoa que chamam de Emile Kato? Por que ela existe?”.

Emile Kato é uma mentira. Ela não existe nem nunca existiu. Emile Kato é algo que foi criado por alguém por um objetivo que eu não entendo. Tudo que existia sobre ela foi forjado e tudo que ela acreditava ser verdade não era. O mundo em que Emile Kato existia era uma mentira, assim como ela mesma era.

“Então, qual é a verdade?”.

Ela não sabe. Ela não sabia quando a levaram de volta ao antiquário, tampouco sabia quando a colocaram diante de Marcos para tentar falar, algo que àquela altura ela não conseguia fazer com qualquer possibilidade de coesão. Tudo que ela conseguia fazer era permanecer fechada dentro de si mesma, repetindo a pergunta infinitamente.

“Se Emile Kato é uma mentira então o que é a verdade?”.

Enquanto estava deitada naquela cama, Emile Kato se lembrou de todas as mentiras que viveu. De quando achou que tinha conhecido as pessoas que tinha chamado de pais, quando saiu da casa antiga para a nova e quando se mudou dessa para aquela em que morara até poucos dias antes, quando ainda acreditava ser Emile Kato. Os anos de escola e o tempo na faculdade também não eram verdade. Tudo aquilo era só um sonho que ela tinha vivido por um tempo e do qual agora tinha acordado. Como um bebê que acaba de nascer, a garota que acreditava ser Emile Kato chorou tanto quanto seu corpo aguentou. E então ela se calou. Ela continuou calada quando tentaram falar com ela, os dois, o pai e o filho. Ela não queria ouvir. Não ia ajudar, então para quê ouvir? Apenas se fechou dentro de si e deixou tudo mais para fora. Nada mais ia escapar. Ela ficaria sozinha e não precisaria mais ter que encarar tudo aquilo. Se voltasse a dormir, talvez voltasse a sonhar. Então, dormiu.

Para dormir, é preciso que seja noite, então ela fez o mundo todo escuro e o pontilhou com pequenas luzes e um grande disco branco. Para dormir, é preciso que haja silêncio, então ela fechou todo o barulho ao seu redor, isolou qualquer barulho do outro lado. Estava frio, então ela tornou tudo mais quente.

Quente… Confortável.

Ninguém mais poderia feri-la ali. Enquanto ela mantivesse os olhos fechados, nada poderia chegar a ela. Ela que não vê mal algum, ela que não ouve mal algum, ela que não fala mal algum era então feliz. E então, ela dormiu.

“Quem sou eu?”.

Emile Kato não disse isso. Então quem foi? Ela ouvia a voz em algum lugar, mas não sabia aonde. Ela olhou ao seu redor e, de relance, pensou ter visto alguém. Ela correu, seu corpo se movendo como se não fosse seu, as estrelas e a lua ao seu redor paradas no mesmo lugar, mas a voz chegando mais e mais perto.

“O que eu estou fazendo aqui?”.

Havia uma garota parada ali, sentada no chão, de cabeça baixa.

“O que eu sou?”.

Emile Kato se aproximou da criança que chorava, tocou-a no ombro, com cuidado e hesitação.

“Você está bem?”, ela perguntou à criança.

Levantando a cabeça, a criança revelou seu rosto choroso, o mesmo rosto que um dia Emile Kato tivera. Assustada, Emile Kato recuou sua mão.

“Quem é você?”, a criança perguntou a Emile Kato.

Emile Kato afastou os lábios, mas em sua cabeça não havia uma resposta. Seu peito doía, sua cabeça girava, seu estômago se revirava. Ela vomitou e de sua boca, envolta em sangue e choro, saiu uma Serpente, pequena e confusa. O rosto sem olhos da Serpente procurou ao seu redor, até achar a grande Emile Kato e a ela dirigiu uma pergunta:

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