Vênus em Áries

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Se alguém tentasse prever que algo anormal aconteceria naquele dia, e apostasse nisso vinte e cinco centavos, essa pessoa ficaria vinte e cinco centavos mais rica no fim do dia, porém ninguém jamais faria isso, pois, para todos os efeitos, aquela era uma manhã perfeitamente normal. O Sol nascera no lugar certo, os telefones funcionavam e até mesmo os relógios marcavam o horário correto. Tão correto, de fato, que um deles, na hora em que havia sido programado, começou a tocar. Primeiro foram apenas soadas leves, como pequenas batidas numa xícara. Logo, eram quase pancadas num sino.

De baixo de algumas cobertas, uma mão se esticou para bater no telefone. Não era uma mão grande, muito menos uma mão com garras ou tentáculos. Era apenas uma mão normal de uma garota normal. Se havia algo de especial nela era o fato de que aquela mão era minha. As cobertas também eram minhas, assim como o despertador e o quarto. E quando, depois de uma pancada bem aplicada, o despertador parou de tocar, o silêncio também era meu.

Naturalmente, não havia como aproveita-lo. No fim das contas, se um despertador toca, é obrigação da pessoa que o programou se levantar. Por um momento, enquanto ainda estava deitada, queria não ser essa pessoa. Mas o destino não é tão gentil, e minha identidade não tão problemática para que eu conseguisse muda-la com tanta facilidade. Ou ao menos era o que eu achava sobre a última parte, mas isso não importa agora. O que importa agora é que, sendo eu a pessoa responsável por programar o despertador, cabia a mim o dever de “se levantar”. Não se tratava de um ato de coragem ou de responsabilidade, mas de simples relação contratual. O despertador tocava, eu me levantava. Era o nosso combinado.

No fim, por mais que os meus desejos dissessem o contrário e as cobertas tentassem com todas as suas forças me agarrarem, consegui sair da cama. Meu corpo estava dolorido, meus olhos pesados, meus cabelos bagunçados. Olhei para o meu imperdoável companheiro contratual e o sorri.

— Você não perdoa, não é?

Abri o armário e as gavetas e peça a peça escolhi minhas roupas. Nada demais, porém. No fim das contas, eu não esperava me encontrar com ninguém especial enquanto estivesse usando aquelas roupas, então acho que era justificável não me preocupar demais com elas.

Dito isso, acho que se algum aficcionado por moda me visse, provavelmente ficaria horrorizado e tentaria me despir e me colocar dentro de outros panos. Mas não tinha jeito. Não importasse o que eu escolhesse para vestir, provavelmente isso aconteceria. Bem, na verdade não, afinal seria estranho que alguém saísse tirando minhas roupas no meio da rua. Pelo bem ou pelo mal, a vida não é um anime ecchi.

Acho que estou divagando demais. De volta aos trilhos.

Depois de me vestir, escovar os dentes e pentear o cabelo, desci para cozinha. Meus pais ainda estavam dormindo, provavelmente, então tive que fazer meu café sem barulho. Em outras palavras, nada de liquidificadores. Não que eu pretendesse usar um, mas limitações são limitações. Fui pelo caminho mais simples. Torradas, manteiga, café e uma maçã. Nada demais, como eu falei.

Os relógios marcavam algo por volta das nove horas. Faltava uma hora até minha aula começar. Tempo o suficiente. De casa até a faculdade, usando o metrô, não demorava mais que uns vinte minutos. Em outras palavras, havia acordado na hora certa.

Parabéns, Emile.

Se bem que quem deveria ser creditado era o despertador, afinal, ele acordou antes de mim para me tirar da cama. Ou talvez ele nem dormisse. Talvez devesse perguntar um dia desses. Não que esperasse que ele fosse responder. Falta de cordas vocais não ajuda na fala.

Quando estava saindo de casa, ouvi passos descendo as escadas. Ao me virar para trás, lá estava a minha mãe. Ela era menor do que eu, algo bastante impressionante já que eu mesma não era exatamente enorme, tinha cabelos curtos, usava óculos por cima de olhos puxados.

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