Por que eu?

105 3 2
                                    

Anomalia. O dicionário define o termo como “Irregularidade, Anormalidade”. Algo que escapa às regras e opera nos seus próprios termos. Uma garota que continuou viva após ser partida ao meio, uma serpente gigante que fala, um gorila que mais parecia um monstro de Frankenstein. Todas essas são coisas que pelas leis normais da Natureza não poderiam existir, entidades cuja existência é fundamentalmente impossível.

Anomalias.

Não importa do que ângulo que se olhasse, não havia como me encaixar numa categoria como essa. Eu era um pouco mais rápida que a maioria das pessoas e tinha um pouco mais de fôlego, mas nada disso era algo que se pudesse considerar como um crime perante as Leis do Universo. No máximo, eram qualidades ligeiramente desejáveis que permitiam pequenas vantagens na sobrevivência. Mas apesar disso, apenas porque uma serpente havia me perguntando seu nome e uma mulher estranha havia me perseguido, a possiblidade de que eu fosse uma anomalia tinha sido levantada.

Era absurdo. Eu era só uma garota normal que, por algum erro nas pranchetas de organização da Senhora Sorte, havia sido jogada num mundo estranho. Se havia algo de anormal em mim era o azar que me perseguia nos últimos dias. Apesar disso tudo, não podia negar que era estranho tanta coisa acontecer comigo. É só que a ideia de que eu fosse uma anomalia parecia tão errada.

Deixando isso tudo de lado, acho que seria melhor voltar à história.

Depois do que aconteceu no capítulo anterior, a conversa não durou muito mais. Ficou decidido que Daniel iria pegar minhas roupas na casa de Paula e, assim que ele chegasse, ele e Lavínia iriam até a minha casa ver se meus pais tinham chegado. E enquanto isso, eu tinha que esperar. O que não era de todo mal, exceto pelo fato de que esperar, no primeiro momento, significava ficar no mesmo quarto que aquela garota.

Muito obrigada, Senhora Sorte.

Fiquei sentada no quarto dos fundos lendo um livro que pegara emprestado do pai de Daniel, enquanto Lavínia insistia em fazer barulho batendo nos sacos de areia, executando katas, embora, em alguns momentos de surpreendente consideração, ela calasse a boca e se contentasse em ficar sentada num canto. Ela parecia um tipo de filhote de gato de rua, cheio de manias chatas e bastante chegado em derrubar coisas. Irritante era o melhor termo para defini-la. Especialmente nos momentos em que ela parava de fazer o que quer que estivesse fazendo para me encarar com aqueles olhos famintos. Francamente, tinha vontade de bater nela numa hora dessas.

Por sorte, o toque do meu celular me impediu de fazer alguma coisa idiota. Peguei o telefone e, na tela dele, vi o número da minha veterana de cabelos multicoloridos. Normalmente, eu teria fingido que não estava vendo aquilo, mas naquela situação uma distração cairia bem.

— Então você está realmente viva? – minha veterana disse.

— Eu não deveria estar?

Considerando tudo que tinha me acontecido, definitivamente não.

— Sua amiga, a Paula, me ligou hoje – ela disse. – Ela disse que você tinha desaparecido da casa dela ou alguma coisa assim.

— É… alguma coisa assim.

— Bom, pela sua voz você não está machucada, então vou pensar que não foi nada. E a entrevista de emprego? Como foi?

— O quê?

— A entrevista de ontem. Você acha que foi bem? Que conseguiu o emprego?

Entendam, com os problemas e coisas estranhas que haviam me afligido nas últimas vinte e quatro horas eu tinha realmente me esquecido de toda a questão da entrevista. Isso tinha virado uma daquelas memórias marginais, como o barulho de uma televisão ao seu lado enquanto você tenta ler. Precisei me concentrar para poder entender o que ela estava dizendo e aí sim me recordar de tudo.

LimiarOnde as histórias ganham vida. Descobre agora