Você é como nós

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Após um dia estranho e uma noite absolutamente absurda, eu podia, com completa sinceridade, dizer que o meu mundo não tinha mais cima e baixo. Era como se as próprias leis que regem o Mundo tivessem parado de funcionar, me atirando para dentro de alguma fantasia estranha, um espaço de regras esquisitas e pessoas distorcidas. Parecia tudo algum tipo de Alice no País das Maravilhas às avessas.

Mas, de qualquer jeito, eu não pensei em nada disso enquanto estava desmaiada no meio da rua. Na verdade, eu pensei nessas coisas agora enquanto escrevia, já que naquela situação quem iria pensar numa analogia complicada? Isso seria terrivelmente irreal. Irrelevando essa questão, vamos adiante no enredo.

Acontece que, quando eu acordei, não estava em nenhum lugar que conhecia. Pelo contrário. Estava nos pijamas de outra pessoa, deitada na cama de outra pessoa, no quarto de outra pessoa. O que funciona como um ótimo resumo da minha situação, aliás. Meu corpo ainda doía como se eu tivesse sido surrada por um gorila e meus pensamentos estavam inundados de mulheres estranhas e homens mascarados. Tive que me levantar devagar para não arriscar uma dor de cabeça, mas isso não funcionou muito bem.

Alguém me dá um analgésico, por favor.

A porta do quarto não estava trancada, então eu pelo menos sabia que não tinha sido sequestrada. Ou se tinha, que meus sequestradores eram fortuitamente incompetentes, o que na prática era a mesma coisa. O corredor apertado do que parecia ser o primeiro andar de uma casa de subúrbio apareceu do outro lado da porta. Tinha outro quarto ao lado do que eu estava, porém não valia a pena me arriscar a investiga-lo. Minha direção eram as escadas. No andar de baixo tive a certeza de que estava numa casa de subúrbio, provavelmente do tipo que servem de casa e loja. Uma sala com móveis velhos e baratos, um televisão nova, mas também barata, e quadros provavelmente só baratos. Não parecia o tipo de lugar que serviria de cativeiro. Nada naquela situação, aliás, apontava para isso. Não me restava outra escolha que não eliminar a possiblidade de que eu tivesse sido sequestrada.

Viu, Emile? Senhora Sorte não te abandonou completamente.

Naturalmente, isso levantava outra questão. Afinal, onde eu estava e por que estava ali? Era o que eu poderia descobrir. E o melhor jeito de fazer isso seria tentando ir embora sem que ninguém me visse. Ao menos foi o que me pareceu uma boa ideia no momento. Procurei a saída da casa passando por uma cozinha, depois voltando pela sala em direção à outra porta, indo enfim parar… numa loja. Não qualquer loja. Um antiquário. Uma dessas lojas esquisitas, cheias de prateleiras abarrotadas de coisas velhas, que você se pergunta que tipo de clientela recebe. Nada ali parecia ter valor nenhum exceto alguma história bizarra possivelmente atrelada a um objeto, fosse real ou só enrolação. Uma loja de estranhices, definitivamente. Mas tinha uma saída e isso era o que me importava.

Embora sair na rua de pijama fosse algo que de todo modo gostaria de evitar, naquela situação não via outra saída. Literalmente. Aquela era a única porta para fora e dava numa rua. Enchendo-me de coragem, abri a porta, pisei firme na calçada e de cabeça erguida tomei todos os olhares estranhos jogados em mim pela multidão de passantes.

Ou teria sido isso que eu teria feito se tivessem passantes. Do lado de fora, só havia um ou outro gato pingado e o eventual cachorro perdido. No fim, nada de triunfante. Só saí, um tanto aliviada por não ser vista.

Ou teria sido isso que eu teria feito se eu não tivesse ouvido alguém me chamar. A voz era funda, experiente. Voz de quem sabe o que fala. Me virei na direção dela.

Corre.

Corre agora!

Eu teria corrido. Teria saído daquela loja em disparada, descalça, de pijamas pelo meio da rua, sem me importar com o que qualquer um pensasse, dissesse ou fosse lá o que fosse. Eu teria. Se eu conseguisse. Mas não dava. Minhas pernas, meu coração, meu cérebro. Tudo parou. No fundo do meu corpo, eu sabia, uma sensação muito antiga, muito primal tinha despertado. Provavelmente a mesma sensação que uma formiga tem quando se vê diante de um tamanduá, de um peixe sozinho no mar com um grande tubarão branco. Eu sabia, no mais profundo do meu código genético, nas bases da constituição do meu ser, que aquele era um inimigo contra o qual eu jamais poderia lutar.

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