Intermédio

By TabataEcclissi

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Samira é uma guardiã da vida, um dos muitos povos que habitam o mundo místico. Como braço direito da guardiã... More

Prólogo
1 - A Batalha Em Troca Do Conhecimento
2 - O Sonho
3 - Reencontro
4 - Descuido
5 - Inimigos e Aliados
6 - Melhores Momentos
7 - A Família Errada
8 - Ameaça Constante
9 - Mensagem
10 - Derrota
11 - Tortura Mutua
12 - A Espera
13 - Descoberta
14 - O Verdadeiro Início
15 - Guerra
16 - Sacrifício
18 - A Nova Guardiã Suprema
19 - O Anjo da Guarda
20 - Intermédio

17 - Dor... Raiva... Novo Caminho

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By TabataEcclissi

Nós estávamos imóveis, eu em abalo e Samira no chão. A única coisa pela qual lutei contra desde o inicio se tornou realidade diante de meus olhos. Eu permiti que aquilo se concretizasse. Não se deixe abater; digo a mim mesma. Ainda não acabou. Me apresso para juntar-me a Sam, apoiando sua cabeça sobre minhas pernas. Seguro seu rosto entre as mãos e percebo seu corpo esvaído, os lábios um tanto esbranquiçados, suas bochechas ainda quentes. Minha esperança teimosa brigava com o desespero que marejava meus olhos, me fazendo ver com menos clareza. Começo a sacudi-la ternamente buscando algum sinal vital que não se materializou, ela permanece imóvel agora em meus braços. A guerra ao redor se tornou apenas um pano de fundo sem sentido que não me interessava mais.

- A guardiã suprema foi atingida – alguém grita.

O eco daquelas palavras invade meus devaneios, mas eu não memorizo a sentença que permanece desconexa diante da minha percepção afetada. Mais ao longe há gritos repetidos em uníssono.

- Recuem – ordenam.

Continuei lutando comigo mesma para manter Samira neste mundo, alheia a qualquer acontecimento até Enzo e Edwin se aproximarem turbulentos. Eu não me importava se iriam me proteger ou não.

- Isis foi seriamente golpeada na luta contra o líder dos servidores, e Eliot... – Enzo se interrompe bruscamente.

Edwin se abaixa alarmado ao perceber que não esboço nenhuma reação com aquelas palavras. Ao vê-lo examina-la meu desespero vence a luta.

- Por favor, traga a pedra da graça. Ajude minha irmã. Faça com que ela fique bem, por favor...

Após sentir sua pulsação e examinar seu ferimento, ele me olha com pesar.

- Não há mais como ajuda-la Amber. Ela se foi.

Meus olhos viajam rapidamente de Enzo para Edwin e suas expressões incrédulas, até não ser possível enxergar mais nada. Com a confirmação a dor atingiu meu peito e fechou minha garganta fazendo o choro sair silencioso, não podendo ser detido nem mesmo com os olhos serrados. Tudo que pude fazer foi mantê-la perto de mim, comprimindo seu rosto entre a curva do meu pescoço para fugir da ideia de ter que me acostumar com sua ausência pelo resto de minha vida.

- Eu não pude ajudar Eliot... agora entendo por quê – diz Enzo – Quando corri para deter o ataque do servidor contra Eliot ele simplesmente abandonou sua postura de batalha e largou sua espada, esperando ser atingido. O servidor o matou sem pestanejar. Eu não pude fazer nada.

- Quem fez ... ? – Edwin é cauteloso.

- Foi escolha dela – respondo com a voz embargada.

Ficamos em completo silêncio e enquanto eu a olhava penso nos seus dizeres: Lembre-se das palavras da nevoa. Dor ... raiva... novo caminho. Era isso, exatamente sobre este momento que a nevoa soprou ao meu ouvido, era desta forma que eu me sentia. Com dor, raiva e obrigada a encontrar um novo caminho a partir de agora, mas sem nenhuma clareza sobre qual direção seguir. Aos poucos percebo uma agitação estranha ao redor que interrompe meus pensamentos. Enxugo meu rosto com as costas da mão e tento voltar ao presente por um segundo quando ouço a voz de comando de Phil.

- Guardiões da vida que permanecem puros, devemos partir agora. Adhorat e Unya tragam a guardiã suprema em segurança para nosso reino.

Permaneço com a cabeça baixa, observando de soslaio os guardiões de batalha seguirem as ordens de Phil imediatamente. O restante dos guardiões do reino estavam desnorteados, sem saber o que fazer.

- Enzo o que está acontecendo? – pergunto – o que foi feito dos servidores?

- Nada. Um pouco depois de tentar impedir Eliot ouvi gritos e comemorações de vários servidores, após isso o líder deles não demorou a comandar que recuassem. Tudo aconteceu muito rápido do começo ao fim e a princípio pensei que fora devido a morte de Eliot, mas ao me aproximar da aglomeração de guardiões alguém gritou que Isis havia sido ferida e estava inconsciente. Acho que os servidores desistiram intencionalmente, de outra forma o líder a teria matado hoje.

- Não faz sentido – Edwin diz ao meu lado.

- Sem os guardiões como inimigos, o que mais eles fariam? – Enzo revela sua teoria – devem ter recuado, pois acharam que seria mais prazeroso eliminar o reino dos guardiões aos poucos.

Antes que eu pudesse responder Sophia chama minha atenção ao correr com Cássio em direção a Phil. Fico atenta.

- Adhorat e Unya não a levarão a lugar algum – Sophia se impõe – Como ela está velho Dardan?

- Apenas desacordada e bastante ferida, mas creio que ficará bem – ainda a examina concentrado – Ela precisa de cuidados imediatos.

- Cuidados no reino dos guardiões Sophia – justifica Phil.

Os guardiões de batalha que ainda acatam as ordens de Phil não sabem o que fazer diante de Sophia, nenhum deles quer desacatar a filha da guardiã suprema.

- Minha mãe ficará sob meus cuidados e decisões – ela não deixa espaço para que haja contestação – Ninguém a levará daqui a menos que eu diga.

Phil se aproxima, ficando frente a frente com Sophia antes de falar:

- Em respeito a sua posição e ao atual estado da guardiã suprema, não lutarei contra suas condições – sua voz sempre passiva perante Sophia não existia mais – Mas você terá um prazo que irá definir o resto de sua vida. Dou-lhe um dia para decidir de que lado ficará. É melhor que pense direito, pois se não retornar será a raptora da guardiã suprema – ele faz uma breve pausa – Você sabe o que sua mãe quer.

Meu pai se vira e começa a se afastar com a maioria quase absoluta dos guardiões de batalha e combate seguindo seus passos. Carregando alguns de seus feridos considerados importantes nenhum deles olha para trás, Phil não procura por mim ou Samira. A dor da perda se manifesta mais uma vez, porém, é o ódio que pulsa mais forte. Me obrigo a engolir qualquer emoção, empurrando a dor garganta abaixo para tentar digeri-la depois, quase certa de que isso não seria possível. Volto a apoiar a cabeça de Sam sobre a grama e coloco suas mãos sobre seu colo. Levanto-me sob os olhares cautelosos de Edwin e Enzo.

- Nós precisamos resgatar todos os feridos – surpreendentemente consigo controlar minha voz – Phil e os demais são muito importantes para salvar inocentes, eles não vão voltar.

Cássio se aproxima de nós juntamente com Caleb, ao perceberem o corpo de Samira eles ficam estáticos.

- Amber, o que aconteceu? – Cássio é o primeiro a perguntar.

Ignoro sua indagação, mais tarde alguém lhe diria. Eu não queria tocar naquele assunto enquanto pudesse evitar.

- Enzo você pode trazer Eliot para junto dela? Eles devem ficar juntos – peço e ele concorda imediatamente antes de se afastar – Foi possível recuar alguns guardiões durante o combate Cássio?

- Sim. Perdemos alguns infelizmente, mas eu e Sophia conseguimos recuar um grande número de guardiões que conseguiram evitar ferimentos muito graves. A maioria está somente com alguns cortes. Nós os levamos em segurança até um local da floresta.

- Busque-os e espalhem aos que puderem ajudar que faça o que for possível pelos feridos – passo a tomar decisões necessárias na esperança de mascarar a dor que me ocupa. Era o que Samira iria querer – Onde está Sophia?

- Estava com meu pai, cuidando de Isis – Caleb responde – Vim exatamente para começarmos a prestar socorro – se dirige a Edwin.

Não me dou ao trabalho de continuar fazendo parte daquela conversa. Ignoro completamente o dialogo após dar as ordens e me viro para começar a caminhar entre os vários corpos, mas sou impedida por Edwin e sua mão em meu braço.

- Desculpe Amber, mas eu gostaria de examina-la também – ele começa afastando meus cabelos, procurando por ferimentos em meu rosto e cabeça – Está sentindo alguma coisa?

- Não, estou bem – digo impaciente – dê atenção a quem realmente está precisando Edwin, outros guardiões precisam de você para salvar suas vidas. Pare de pensar como se estivesse no reino dos guardiões ainda, aquela utopia encoberta de mentiras e sujeira não existe mais. Não desperdice seu tempo com antigos costumes.

Meu tom de voz é irreconhecível até mesmo para mim. Edwin e eu nos olhamos nos olhos de verdade desde que nos conhecemos, ele não tem palavras ou desculpas e em algum lugar dentro de mim sinto uma pontada de arrependimento por ter sido tão amarga com alguém que me estendeu a mão. Desvencilhando meu braço de seu aperto leve me desfaço também de tal sentimento, eu não voltaria pelo antigo caminho. Não havia mais volta, desta maneira não podia mais haver a mesma Amber.

Ando com cuidado entre alguns corpos agonizantes e alguns sem vida sem reconhecer ninguém por perto, as consequências de meus atos pesam sobre meus ombros. Com toda minha experiência em batalhas nunca presenciei o que acontecia depois. Meu estômago fica embrulhado e eu levo minha mão a boca. Alguns metros a minha frente Caleb parece ter encontrado alguém importante, ele a segura contra si cauteloso por ela estar ferida mas a guardiã não parece se importar, quando passa a examina-la consigo ver melhor seu rosto e a reconheço. Era a guardiã que Caleb estava cuidando quando Sam se machucou no treinamento, ao vê-los juntos e íntimos noto tudo que Samira já tentou me explicar em cada pequeno gesto. Muitos guardiões morreram mas muitos também terão a chance de começar a viver agora. Deixo os dois de lado quando as dobras de minha capa chamam minha atenção, alcanço apressadamente o corpo desfalecido de Isaac e viro-o de costas na grama. O sangue estava seco em seu pescoço, peito e roupas, sua ferida mais aberta. Eu preciso de estabilidade para olhar seu rosto, pisco os olhos uma... duas... três vezes com força, espantando a umidade irritante e dolorida das lagrimas. Enquanto retiro a capa ensanguentada de seus ombros examino suas feições inexpressivas e vazias, parecia-se mais com o Isaac que conheci muitas luas atrás, um guardião que nunca me olharia com aqueles olhos cheios de magoa. Deslizo os dedos pelos cabelos negros sentindo-os pela primeira vez, afasto os fios de seu rosto tocando agora sua pele branca. "Diga que me perdoa", penso "Peça o meu perdão". Torço contra minha vontade para que tudo seja reversível mesmo tendo a certeza de que nada é. Me inclino sobre ele para retirar a capa por completo e ao removê-la beijo sua testa. O tecido em minhas mãos tem um aroma forte, perfumado e inconfundível que eu havia sentido mais cedo, era confortante. Retiro das dobras de meu vestido a flor Damang que esteve em minha cabeceira na grande casa, agora amassada. Mantive a Dama da Noite comigo na crença de que eram de Samira, porém, fora Isaac o tempo todo. Por que se preocuparia comigo ao mesmo tempo em que orquestrava sua vingança? Era possível que nem ele mesmo entendesse a contradição de seus sentimentos bons e ruins, ou que estivesse mentindo. Refaço alguns de meus passos e de Sam retirando a sorte e algumas coincidências que nos ajudaram no caminho, foi fácil demais escaparmos de Isis, aquilo não era possível. A menos que Isaac estivesse em posse de minha capa a fim de confundir Isis quando ela quis vir atrás de mim antes. Ele levou a guardiã suprema em direções contrarias e equivocadas todo esse tempo.

- Eu entendo sua frustração – visto minha capa, sentindo o peso sobre meus ombros – A frustração de amar alguém tão covarde quanto eu.

Coloco a flor mais uma vez entre minha roupa antes de deixa-lo para trás. Auxílio precariamente guardiões feridos. Quem eu queria enganar se eu não era capaz de fazer nada além de lutar. Com minha mente pelo menos ajudo guardiões a se moverem em busca da ajuda de Edwin e Caleb. Os irmãos tiveram que lhe dar com uma fileira enorme de guardiões pedindo por socorro. Surpreendentemente muitos guardiões sobreviveram, nosso número reduziu drasticamente, mas fico feliz em ver vários de nós que não tinham quase chances nesta batalha ainda com vida.

Demoramos praticamente a noite toda para distinguir mortos de feridos, e a pouca luz noturna não ajudou no processo. Antes que pudesse me juntar a Sophia e Enzo, ouvi gemidos fracos de dor, era uma voz feminina. Segui os sons agonizantes para encontrar a origem, ao final daquele dia os sons das coisas ao redor foram cessando aos poucos enquanto cada um se fechava em seus pensamentos. Ao descobrir a fonte dos gemidos escondidos, encontro a guardiã que evitei conhecer durante todo aquele tempo, ela estava ao pé da colina sob um dos corpos sem vida. Ajudo-a levantar, carregando todo seu peso colina acima, a prometida de Isaac mal consegue colocar um pé a frente do outro e parece não me reconhecer. Com paciência e cuidado peço que ela aguente firme até alcançarmos os outros guardiões que estão na arvore. Passo diretamente por Sophia, Enzo e Cássio, me dirigindo com urgência até Edwin.Vejo com minha visão periférica que a avó de Isaac estava sentada com o olhar perdido, Arebil havia escapado.

Após entregar a prometida de Isaac aos cuidados dos irmãos sento-me afastada de todos, escondida da luz de tochas enquanto a luz do dia ainda não surgia. Sozinha, escondo o rosto entre as mãos e permito-me voltar a ser a guardiã fraca que sempre fui, escondida sob a capa. A exaustão emocional empurra minha cabeça para baixo inevitavelmente e eu não sabia como fazer para levanta-la outra vez. O que Samira faria se eu tivesse ido embora? Com certeza não se esconderia como eu. Será que Isaac iria preferir minha força física ou a força emocional de Sam? Não importa, ele pelo menos teve coragem de tomar uma decisão e fazer alguma coisa por sua família mesmo sendo algo tão destrutivo. Ele provavelmente morreu decepcionado com cada uma de minhas atitudes. Parecia fisicamente impossível não deixar o ódio me dominar quando tudo me levava a ele. Suspiro brevemente e me obrigo a parar de pensar já que nada daquilo iria me trazer respostas ou me levar a algum lugar naquela hora do dia. Cada passo a partir de agora provavelmente definiria todo o meu futuro, mas infelizmente parecia que as pequenas decisões que tomamos muitas vezes sem perceber é o que nos leva ao nosso caminho.

***

Como esperado o sono não compareceu até o nascer do dia mesmo com meu corpo exausto pela batalha. Pelo menos todo aquele treinamento com Lena ajudou a esvaziar minha mente por algumas horas, mas os guardiões sob nossos cuidados começaram a fazer indagações preocupantes. Assim que o dia deu sinais de estar começando, foi necessário limpar meu rosto molhado e me juntar a Sophia e os outros.

- O que nós faremos? Não podemos ficar no meio do nada – diz um jovem guardião.

De repente me dou conta de que não tenho mais um lugar para voltar. Não seria possível retornar ao reino dos guardiões, meu lar.

- Nós sabemos disso – começa Enzo com sua seriedade e calma inabaláveis – Mas devemos nos lembrar que aquele reino também foi construído quando nada existia ali. Foi necessário muito trabalho dos antigos guardiões para que tivéssemos aquilo que conhecemos hoje. Temos a chance de fazer o mesmo agora com base em tudo que acreditamos.

- Mas como? – insiste uma guardiã descrente.

- Seremos uma unidade, trabalharemos juntos – responde Sophia – Ergueremos nossas paredes com nosso suor, só precisamos de um lugar.

- Esta é a grande questão, não é? – soo mais irônica do que pretendia, me apossando das palavras de outra pessoa – A maioria de nós mal conhece os arredores do reino dos guardiões.

- Só precisamos de uma pessoa que saiba – ela ignora meus maus modos e aponta para Arebil.

A avó de Isaac permanece com o olhar distante mesmo ao se pronunciar.

- Eu posso nos conduzir ao local que devemos estar agora – as palavras me intrigam.

- Que local seria esse? – abaixo-me para poder olha-la nos olhos.

- O portal do mundo dos humanos. É para lá que devemos ir.

Troco olhares com Sophia e Enzo, mas Cássio chama nossa atenção para guardiões que se aproximavam. Voltando a me erguer vejo três guardiões carregando mastros com bandeiras vermelhas descendo a primeira colina. Não era um bom sinal! Sophia pede para que eu, Cássio e Enzo a acompanhe, assim fomos todos ao encontro dos guardiões. Os três usavam suas proteções de batalha e espadas na cintura, sem nos dizer nada entregam um papel enrolado a Sophia, que lê com atenção.

- Vocês esperam alguma resposta? – ela indaga aos três ao terminar a leitura do documento, mas eles permanecem em silêncio.

- O que diz Sophia? – Cássio parece impaciente.

- Se não voltarmos ao final do dia estão declarando guerra. Quem não retornar livremente será procurado e morto, são as punições aos traidores.

- Devemos ir até o reino – diz Enzo.

- Se formos irão pensar que mudamos de ideia e tudo que Samira e Eliot fizeram terá sido em vão – retruco – Nada mudará por lá, Sam fez o que fez por que sabia disso.

- Mas precisamos...

- Não vamos ter essa discussão na frente destes guardiões – Sophia nos interrompe – Vocês três podem retornar, qualquer coisa que seja decidida todos no reino dos guardiões e neste mundo saberão.

Sem qualquer reação ou reverência a filha de Isis, eles refazem seus passos nos dando as costas.

- Eu não quis dizer que precisamos voltar Amber – se explica paciente.

- Todos aqui acreditam naquilo que Samira nos mostrou, porém, é fato que precisamos de alguns mantimentos e recursos da grande casa para cuidar destes feridos.

Considero as palavras de Enzo, ele era o mais experiente de todos nós. Perto dele éramos quase como um bando infantil nos rebelando contra nossos pais.

- Ele está certo, mas quanto á declaração de guerra é uma decisão que cabe aos outros também – Sophia enrola novamente o documento.

- E quanto a sua mãe? – pergunto – Ela não demorará a acordar e todos aqui sabemos qual lado ela irá escolher. Para os guardiões aqui ela é a traidora.

- Amber não vamos fazer o mesmo que aqueles guardiões do reino – ela tenta ser pacífica.

- Sophia você deve ser imparcial agora. Sabe quanta dor aquela guardiã causou. Quantos de nós ela já matou e ainda pretende matar.

Ela fica em silêncio, claramente para evitar uma discussão que com certeza seria fervorosa entre nós. Sophia não estava nada convencida por qualquer argumento mesmo sendo a dura verdade. Isis era um monstro, mas era o monstro que lhe deu a vida.

- Pensaremos em algo quando tivermos melhor instalados – responde – Enquanto isso ela ficará fora de qualquer deliberação entre nós.

Faço menção de continuar a discussão, mas Cássio me impede com um sinal de sua mão. Os outros guardiões estavam deitados ou sentados sobre a grama, tomando toda a colina e um pouco além, os irmãos checavam ferimentos de um por um e pareciam não ter dormido a noite toda assim como eu. Estávamos todos fisicamente abatidos e parecia que não descansaríamos por anos. Nós quatro paramos sob a sombra da arvore lado a lado, observando todos os guardiões a nossa frente, chamando a atenção de um por um. Todos estavam curiosos e ansiosos por respostas.

- Aqueles guardiões vieram entregar uma mensagem direta de Phil e seus novos braços direitos – a voz de Sophia estremeceu brevemente, estava nervosa por se dirigir a todos daquela forma – Neste documento eles nos dão um prazo irrevogável para retornar ao reino pedindo por misericórdia – ela gagueja – temos até o final deste dia para tomarmos qualquer decisão, caso nossa escolha seja ficar amanhã estaremos em guerra.

- Vocês devem sentir-se livres para escolher a direção que irão tomar – completa Enzo – não estão presos a nós.

- É compreensível que queiram se salvar, poupando-se de outro combate como o de ontem sem nenhum preparo – digo.

Alguns feridos trocam olhares entre si, outros abaixam a cabeça, o medo e a lembrança recente do confronto estampados em cada semblante. Todos muito reprimidos e desencorajados, ninguém ali tinha qualquer poder de palavra para se fazer entender perante a todos. Encolhida segurando um pedaço de pano rasgado que foi amarrado em seu braço ferido improvisadamente, uma guardiã pequena se pronuncia fitando o chão:

- Não é possível acreditar na misericórdia deles. Mesmo que alguns escolham voltar por medo, não há garantias de que sejamos perdoados.

Os demais murmuram em concordância.

- Podem achar que esta guerra é sobre traidores e é o que eles vão alegar, mas é muito maior do que isso. Temos que devolver a integridade desses guardiões e o nosso próprio direito de escolher prioridades e as pessoas que estarão conosco – diz Caleb em alto e bom som segurando a mão daquela guardiã frágil.

Permito-me sorrir numa fração de segundo ao notar a luta e os esforços de Sam naqueles rostos carregados de esperança. Ninguém decidiu ir embora.

- Samira não iria desistir fácil mesmo com essas ameaças – um guardião novo se manifesta, me surpreendendo.

Ao ver todos os outros concordarem com aqueles dizeres meu peito se estufa com um suspiro profundo e se aquece.

- Vamos nos preparar para a guerra então – Sophia conclui.

Penso em sentar ao lado de Arebil, que se manteve alheia a todo o comunicado, mas há muito para ser feito e resolvido por toda parte.

- É preciso realizar uma cerimônia para todos os que se foram – comento com Enzo – Você é o que mais vezes fez isso, deve liderar.

- Há muitos deles agora...

- Como houve antes.

- Precisamos enterra-los.

- Eu cuido de Samira e Eliot – desvio o olhar.

- Há um campo aberto a alguns metros. Seria fundamental que ficassem próximos ao local que os libertou – Enzo é cauteloso ao dirigir-se a mim, uma preocupação que jamais demonstrou em todo o tempo que me treinou.

- Samira e Eliot podem ficar aqui – cruzo os braços sobre o peito – sob a arvore.

- Não – Arebil interrompe de repente – ele devem ser libertados, não estarão seguros aqui. O fogo os libertará.

A encaro com cenho franzido, sem compreender.

- Todos devem ser libertados pelo fogo, é o único jeito – ela continua.

Converso alguns minutos com Enzo antes de concordar que precisávamos de novos costumes. Então todos sem ferimentos graves foram em busca de madeira, gravetos, folhas secas e qualquer coisa incendiaria que encontrassem. Os guardiões escondidos na floresta guiaram os outros.

Demorou toda a manhã para deixar tudo pronto antes de realizarmos a cerimônia daquela batalha. Samira e Eliot estavam no centro de tudo e todos, deitados sobre uma pira de gravetos e folhas dispostos como uma cama. Não tive como trocar suas roupas sujas de sangue, mas limpei seus rostos e braços e penteei seus cabelos calmamente entre meus dedos. O mesmo fiz com Isaac, que era o primeiro guardião ao lado deles, antes de cobri-los com flores que eu mesma colhi, deixei uma Damang entre as mãos dele. Escolhemos o grande descampado de terra próximo ao reino dos guardiões, pois era o caminho mais fácil. Incluímos na cerimônia os guardiões de batalha que perderam a vida durante aquele combate, mesmo que Phil os tivesse ignorado completamente concordamos que mereciam sua libertação. Todos foram cuidadosamente colocados lado a lado e cobertos por folhas secas, arbustos, gravetos, flores e algumas toras, ao final do trabalho de alguma forma parecia um grande jardim circundado por flores silvestres. Por esta razão achei que seria mais fácil estar lá, contudo quando Enzo lançou a flecha de fogo e tudo acendeu em chamas a dor voltou a me atingir como na primeira vez. Observo o fogo cada vez mais alto e feroz, encolhida com as mãos entre as dobras da minha roupa.

Todos nós permanecemos lá até o fogo não ter mais o que consumir e o vento levantar as cinzas e fuligens. O tempo passou devagar e mais um nó se formou em minha garganta. Quando vimos que nada havia ficado para trás voltamos a nos reunir na colina. Meu caminhar era pesado, como se eu não pudesse aguentar mais a mim mesma.

- É preciso retornar para pegar os suprimentos, mesmo que não haja mensagem para entregar – Enzo insiste durante o caminho – Assim que a guerra for oficialmente declarada não poderemos mais entrar lá.

- E acha que podemos agora? – pergunto cética.

- Temos que aproveitar o pretexto de reunir um conselho de guerra. Vamos com intenções de resolver tudo pacificamente sabendo que jamais será possível, mas uma vez lá dentro podemos conseguir o essencial para sairmos daqui.

- Enzo tem razão – Cássio diz e tenho a sensação de nota-lo pela primeira vez, como se tivesse acabado de conhecê-lo naquele instante. Agora com outros olhos – Precisamos tentar. Se não medicarmos esses guardiões logo estarão condenados.

Cássio era o único que poderia saber remotamente como eu me sentia, ambos perdemos irmãos e pais em toda aquela quebra de elo. Ele havia me perdido também, mesmo que eu não pudesse saber se isso era algo bom ou ruim em sua concepção. Mas era com certeza o melhor para nós dois.

- Certo, mas não podemos ir todos – Sophia se junta a discussão que até então só seguia de perto.

- Acho que Enzo, Amber e eu já somos o bastante – Cássio arrisca, mas eu faço duras objeções imediatamente.

- Não posso encontrar Phil agora. Não estou pronta para deixa-lo para trás sem qualquer sentimento de magoa ou ódio.

Cássio coloca a mão sobre meu ombro e eu reprimo seu toque por puro instinto. Em seguida ele ergue Arebil nos braços, carregando-a colina acima e nos deixando para trás.

- De qualquer forma, - continuo – serei inútil. Enzo deveria levar Caleb ou Edwin, somente eles saberão o que é preciso para ajuda-los.

- Você está certa – concorda Enzo – eu sei lhe dar melhor com o conselho de guerra, Caleb ou Edwin cuidam dos medicamentos e suprimentos e Cássio ajuda com sua força. É necessário que você e Sophia fiquem aqui.

- De olho em Isis – digo entre dentes e ele concorda com um aceno.

- É melhor irem o quanto antes – recomenda Sophia – temos que deixar estas colinas antes que o dia termine. Não podemos correr o risco de sermos atacados por guardiões ou servidores.

Assim que Cássio acomoda Arebil, ele Enzo e Edwin partem imediatamente em direção ao reino dos guardiões. O tempo parecia voar quando não tínhamos nenhuma garantia de sair a salvo daquele lugar, especialmente se você não se importasse muito com isso. Sento-me ao lado da prometida de Isaac. Ela estava com cortes no rosto e ataduras mal feitas nos braços e pernas, retalhos de seu próprio vestido. Assim que me sento ela abre os olhos, bem desperta. Sinto-me envergonhada em sua presença e sem saber o que fazer apenas pergunto:

- Está se sentindo bem?

Ela pisca os olhos algumas vezes e responde com a voz fraca.

- Tão bem quanto você poderia estar agora.

Mesmo sem dizer uma palavra eu posso senti-la me repelindo com severidade. Krista não se importava com antigas ou novas regras, a guerra ou quão importante já fui em um reino, ali eu era apenas o motivo da ruína de toda sua felicidade ao lado de Isaac. Ainda assim me recuso a sair do seu lado.

- Qual foi a ultima coisa que ele lhe disse? – pergunto.

- Que havia acabado de voltar da grande casa – ela não me olha. O nó em minha garganta se aperta – Depois desapareceu.

Abaixo a cabeça deixando meus cabelos esconderem meu rosto. Minha pele arde de vergonha, culpa e remorso. Todo esse tempo ele sempre esteve por perto e eu tive medo de sequer olha-lo. Fico imóvel e em um silêncio desconfortável, sentindo a dor de causar dor a Krista também, até que Caleb me chama para ajuda-lo a prestar assistência aos guardiões. Ocupei minha mente até o momento de Enzo e os outros retornarem. Eles só voltaram com um pequeno carregamento quando a noite já havia caído outra vez.

- O velho Dardan nos ajudou com algumas plantas e ervas sem que Phil soubesse, trouxemos água também. Nossa conversa foi bem unilateral como previsto, ele e seu comitê não quiseram ouvir nada do que tínhamos para falar – Enzo nos comunica – saímos de lá com mais um aviso de guerra e sem dar nenhuma resposta.

- Fomos escoltados até a saída. Quando estávamos a caminho daqui vimos que meu pai conseguiu colocar uma pedra da graça escondida entre os medicamentos.

- Simplesmente deixaram que trouxessem essas coisas? – Sophia surpreende-se.

- Como não demos nenhuma resposta creio que deixaram o superficial por causa de sua mãe. O resto foi meu pai quem nos ajudou.

- Eu consegui alguns pertences de sua irmã – Enzo me entrega uma pequena muda de roupas e a espada de Samira – Foi um pouco difícil, porém, eles ainda possuem as mesmas fraquezas – sua expressão sempre séria não demonstrava nenhuma emoção nem mesmo com aquele gesto, mas não era necessário.

Agradeço ao pegar de suas mãos.

- Melhor ajudarmos Caleb e Edwin – diz Sophia.

Deixo as coisas de Sam aos breves cuidados de Arebil enquanto caminho entre feridos junto a Edwin, seguindo suas instruções cuidadosas. Separamos os guardiões com ferimentos mais graves para que utilizássemos a pedra da graça. Eram muitos e talvez a pedra não possuísse energia ou fluídos suficientes para todos. Alguns estavam agonizantes. Foi preciso fazer o melhor possível com o que tínhamos nas mãos para salvar a maioria. Antes que pudéssemos partir em direção ao portal do mundo dos humanos muitos de nós já podia caminhar sem ajuda.

Enquanto Sophia e Cássio dão água para os guardiões, eu pego as coisas de Sam das mãos calejadas de Arebil. Ao colocar sua espada em minha cintura, a muda de roupa cai ao chão espalhada e revela alguns papéis velhos. Recolhendo-os reconheço a letra de minha irmã borrando aquela superfície com carvão.

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