What Could Have Been

By ellebrocca

268K 21.5K 64K

Alcina Dimitrescu teve a infelicidade, ou talvez não, de sobreviver após a luta contra Ethan Winters sendo re... More

TEMPORADA 1 - O Corpo
Desconfianças
O Vilarejo
Dentro do Castelo
Primeiro Dia
Seguidas por Sombras
Descobertas
A Queda
Pistas e Suspeitas
Uma Boa Desculpa
A Máscara de Chris
O Plano de Miranda
Uma Verdade Dolorosa
Quem Sou Eu?
Um Recomeço
TEMPORADA 2 - Fragmentada
Lado Sombrio
Alianças
Fuga
No Meio da Noite
Última Chance
Adeus, Rosemary
TEMPORADA 3 - De Volta ao Lar
O Badalar dos Sinos
A Colheita
Donzela
Um Leve Deslize
Incertezas
O Beijo do Dragão
Conexões
Deixe-me Ficar
A Escolha de Rose
A Sua Mercê
Segundas Impressões
Os Bons Filhos A Casa Retornam
Tormenta
Mãe
TEMPORADA 4 - Apresentações
Bela, Daniela e Cassandra
Corra
Conquistas
Pobre Daniela
Profundas Cicatrizes
A Herdeira
Miss D and The Pallboys
A Monarca da Casa Dimitrescu
Mente Estilhaçada
Megamiceto
O Parasita e a Hospedeira
Uma Dádiva
O Dansă, Domnișoară?
A Chave

Domínio

4.5K 261 2.6K
By ellebrocca

Hello, hello, hello! Feliz dias da mulher!!! Preparados para pouco descanso e muita ansiedade? Avisando que, este capítulo contém referências a DLC "Shadows of Rose", e para aqueles que não estão por dentro podem conferir a DLC no meu canal no tutube (vulgodanni). Eu fiz live da DLC e ela está completa lá na rede vermelha e vcs vão adorar s2
Aqui tbm teremos menções a Resident Evil 7, vale lembrar de que a fanfic é um RE9 alternativo, então, logicamente, teremos conexões com o RE7.
Obrigada por sempre estarem fazendo memes da fanfic e edits, além disso ajudar no crescimento da fanfic me arrecada muitas risadas e me motiva a escrever os caps mais rápidos ahahaha (INCLUSIVEEEEEEEE, ansiosos com a chegada da Belbel? Viram o mini spoiler lá na rede de fotos nos meus storys? Hehehe imaginem a Bequinha usando aquela roupa maravilhosaaaaa. #chegamaio)

Sorry qualquer erro, alguns detalhes eu terminei na correria pra poder postar ainda hoje.

Uma boa caótica leitura, e beijos na teta esquerda de vcs (pra Belbel é na direita, pq ela é exigente ahahahaha)


*******

Domínio

Onde eu estou?

Aprisionada dentro do vazio, era a descrição em que Alcina sibilou em sua mente ao deparar-se com a escuridão a sua volta. Nada de janelas, ou portas. Nada de móveis, chão ou teto. Um vácuo intensamente escuro, que poderia deixá-la cega, se não fosse pela pequena luz a quilômetros de onde ela estava... A luz no fim do túnel.

Levou instantes para Alcina desconfiar de que estivesse sonhando, embora não se lembrasse de ter chegado a cama, ou como fora parar ali. Estava sozinha naquela imensidão sombria, vestindo sua camisola favorita e o roupão de cetim por cima. Os pés descalços avançam alguns passos, a incentivando ir até a luz, talvez a sua saída daquele lugar tão solitário. E na metade do caminho, cada pelo do seu corpo enriçou ao ouvir os gritos de uma mulher desconhecida.

Mais vozes surgiram, vozes que Alcina nunca ouvira, a não ser por uma em especial que se destacou entre os gritos da mulher, uma que Alcina jamais esqueceria.

... Garotas, segurem ela! — Narcisa comanda, do outro lado da luz.

— Cisa! — Alcina corre, em direção aos gritos angustiantes, onde estava Narcisa.

Seus passos eram rápidos demais, a arremessando na direção da luz que parecia crescer quanto mais ela chegava perto. Os gritos começaram a ficar mais altos, e a mulher desconhecida implora para que alguém seja salvo, a súplica sendo dita em palavras romenas. O brilho poente a cegou por alguns segundos quando cruzou a luz, e suas mãos batem contra uma superfície de mogno. Uma porta dupla.

No exato momento em que Alcina invadiu o quarto, o bebê nascera. A dez passos dela, Narcisa estava na ponta da grande cama, segurando a recém nascida em seus braços. Duas criadas jovens seguravam as mãos da condessa que dera a luz aquele bebê. A mulher, cujo rosto, boca, nariz, olhos e até mesmo a cor dos cabelos eram iguais aos de Alcina.

Seu fôlego se perdeu quando a fixa caiu. Aquela condessa na cama, ensopada de sangue, era a sua mãe. Narcisa pede uma toalha para Marietta, e em instantes, a bebê — a própria Alcina —, é limpa e embrulhada no tecido quentinho. O sonho era tão vivido que Alcina pôde sentir a maciez da toalha raspando em seus braços. Sua mãe, Morgana Dimitrescu, não parecia amaldiçoa-la, e sorria, mesmo que doesse, ela sorria de felicidade por saber que sua filha nasceu com vida.

— Cisa... — Sua mãe arfa, a beira da morte. — Eu não tenho muito tempo.

Narcisa pareceu hesitar, como se estivesse com medo do que aconteceria a seguir.

— Sua filha está bem. Irei chamar o conde para vê-la...

Connor! Alcina estremece só de imaginar o seu pai dentro daquele quarto, e seu estômago revira.

— Não! Me entregue a minha filha. Eu quero que o rosto dela seja a última coisa que verei.

A borda de seus olhos lacrimejem ao ouvir o último pedido de Morgana. Aglomerando coragem, sem saber de onde viera aquela vontade para chegar perto de sua mãe, Alcina avançou, cautelosa. Observou Narcisa a entregando para o colo de Morgana, e até mesmo tentou chamá-la, esperançosa de que a governanta percebesse sua presença. Mas Narcisa a ignorou, como se Alcina fosse um fantasma.

A aparência de Narcisa naquela época deixou Alcina com falta de ar, pois ela parecia uma versão mais jovem de Margaret. Não havia como não fazer uma comparação com ambas. A voz de Pyetra fora puxada no poço de sua memórias, na certa vez em que ela havia mencionado algo sobre reencarnação: "Vocês podem se encontrar de novo... Em uma outra vida."

— Margaret? — Alcina observa Narcisa, refletiva.

O choro da bebê irrompeu a distração de Alcina, a fazendo virar-se para Morgana. Mesmo que a condessa estivesse morrendo, ela parecia tão serena, sem qualquer medo no olhar, nem mesmo uma ruga de desespero em suas linhas de expressões, o rosto se mantendo sofisticado e de beleza melancólica. Tudo o que Morgana transmitia era alegria e amor, e a bebê em seus braços era quem incentivava tais sentimentos.

Morgana ajeita a bebê para que ficasse perto de seu rosto, limpando as partículas de água nas bochechas gorduchas com o polegar. Alcina tocou o próprio rosto, sentindo o toque de sua mãe na mesma região. Ela não percebeu que uma lágrima escorregou sutilmente do lado direito, e a bebê parou de chorar.

— Como você é linda. — Morgana sorriu. Mais uma lágrima escapa de Alcina. — Você foi tão corajosa, draga mea.

— Dê um nome a ela, M'Lady. — Motivou Marietta, emocionada.

— Ela tem o espírito forte. — Morgana recorre aos traços de sua filha, encontrando a ascendência dentro de seus pequenos olhos. — Alcina. — Ela canta o nome. — Sim... Alcina mea...

— Mãe. — Alcina desaba ao seu lado, as lágrimas despencando com mais afinco. — Eu estou aqui, mãe. Eu te vejo.

Morgana continuou sorrindo para a sua bebê.

— Não sabe o orgulho que tenho pela sua determinação, meu amor. — Diz Morgana, segurando a pequena Alcina diante de seu rosto. — O destino te reservou grandes conquistas, e eu posso prever isso. Você nasceu para liderar, Alcina. Jamais deixe que te digam o que fazer, ou que a rotulem. Mostre a eles o que é ser uma Dimitrescu, e brilhe para o mundo.

Ali estava... O amor verdadeiro de uma mãe. Alcina olhou, admirou a mulher com os fios escuros grudados em seu rosto divino, para a mulher que rejeitou a entrada do marido e pôs a filha em primeiro lugar. A filha recém nascida, na qual jamais tivera chance de vê-la crescer, ou ouvir suas primeiras palavras, ensiná-la os primeiros passos... Mesmo assim, apesar de ter passado minutos com a pequena Alcina em seus braços, já a amava mais do que tudo no mundo. Morgana, a condessa da Casa Dimitrescu, sua mãe...

Pobrezinha. — Uma voz infantil caçoa. Alcina vira a cabeça na direção de onde viera a voz, se deparando com uma garotinha de dez anos. Uma intrusa. — Mas nada é tão deprimente quanto ser obrigada a ver essa cena: a frágil e boazinha Morgana pendurada no fio da morte e bajulando seu bebê com juras de amor na qual ela mal irá se lembrar. Que desperdício de oxigênio.

A garotinha riu, uma risadinha amarga e sem um pingo de compaixão, deixando Alcina de estômago embrulhado e com uma massa de ódio crescendo em seu peito por sua ousadia. Ela nunca vira aquela criança em sua vida. A garotinha tinha cabelos castanhos, quase pretos, que ultrapassavam a linha dos ombros e uma das madeixas tapava seu olho direito, e o esquerdo tinha uma cor verde-fantasma. Ela usava um vestido de aspecto velho, indo até a altura dos joelhos e mangas curtas, e seus pés calçavam botas de chuva.

Definitivamente, Alcina nunca havia visto aquela garota.

— Deve estar se perguntando... O que ela está fazendo no meu sonho? — A garotinha adivinha seus pensamentos, sorrindo de escárnio. — Bom, isso é um tanto real para ser um "sonho", não acha?

— Me diga você. — Alcina diz, diligente. Ela não deixou a cama, mas seus olhos se mantiveram fixados na criança, cuidando seus movimentos. — Você é a intrusa aqui, me deve explicações.

A garotinha faz um biquinho, fingindo estar pensando.

— É justo. Eu devo te dar os parabéns, você conseguiu atingir o núcleo do Megamiceto.

— Núcleo?

— Sim. A consciência. Sua capacidade para entrar em contato com as suas memórias mais antigas, a primeira... — A garotinha aponta para Morgana. — Significa que você está no último estágio de transfusão. Nunca achei que fosse existir outro hospedeiro.

— Memórias. — Alcina volta-se para sua mãe, imobilizada. — A minha... Primeira memória.

Era por isso que ninguém naquele quarto conseguia vê-la. Por isso tudo parecia ser real, por que aquilo já havia acontecido. O último estágio, e se era verdade, e Alcina fora capaz de adquirir aquela habilidade, significava que ela tinha desenvolvido a mesma aptidão de Rose em se aprofundar nas memórias mais antigas — até mesmo daquelas em que ela era apenas um bebê com pouco meses de vida —. E ainda, há outra coisa que a garotinha revelou...

— Outro? — Alcina virou-se para a criança. — Como assim outro hospedeiro?

— O pai da sua Rose. — A garotinha faz uma careta de nojo ao especificar o "sua".

Ethan! A criança sabe sobre ele, e sabe sobre a Rose. Além de ter conhecimento sobre a consciência do Megamiceto. Ela era uma intrusa... Um parasita.

Quem é você?

O rosto da garotinha endureceu. Sua pele branca cintilou em raiva, e Alcina arrependeu-se levemente de ter perguntado.

— Eu fui a primeira criança. — A garotinha responde com remorso. — Eu fui a primeira cobaia, forjada do mofo, usada em experimentos... Criada pelas mãos de Miranda junto daqueles cientistas desgraçados!

Era como se o chão tivesse sumido abaixo dela, e Alcina fosse engolida pelo vazio. Uma rara memória fora recuperada com o gatilho despertado daquela confissão: anos atrás, Miranda havia a chamado para fazer exames sobre seu processo de crescimento, e enquanto aguardava o resultado dos testes, Alcina se interessou por uma dúzia de papeladas com fotos de uma garotinha com roupas hospitalares, nomeada com o codinome E-001 escrito em vermelho na parte superior. Miranda havia confessado que, certa vez, saíra do vilarejo para se unir a um grupo secreto para criar uma cobaia compatível para sua Eva, mas que perdera o experimento quando outro grupo maior descobriu seus planos e sumiu com a garota. Na época, Alcina não deu importância e até mesmo deixou passar o nome que Miranda havia dado a cobaia.

O nome que enriqueceu sua recordação ao interligar aquela cadeia de eventos.

— Eveline. — Alcina tomou coragem para pronuncia-lo, o sussurrando.

Eveline semicerrou os olhos.

— Então já sabe sobre mim.

— Não muito, honestamente. Você ainda é uma desconhecida para mim. — E uma ameaça indecifrável.

— Eles temiam o desconhecido, por isso me eliminaram. — Ponderou Eveline. — Por mais que Ethan tenha destruído o meu corpo, minha mente se manteve intacta dentro do Megamiceto. E agora que o organismo está se fundindo em você, minha consciência está sendo implantada para dentro da sua. Todos nós estamos.

— O que você veio fazer aqui? — Alcina aperta o edredom com força, ouvindo Morgana murmurando declarações maternas para a sua versão bebê. — Além de atormentar minhas memórias?

Eveline endureceu o rosto novamente, conjurando uma aura maligna em volta dela.

— Eu estou aqui para te destruir.

Alcina levantou-se tão rápido quanto entrara avulsa dentro daquele quarto, dando um passo à frente em defesa de sua mãe. Garras dispararam na ponta de seus dedos, numa extensão de quinze centímetros.

— Por que?! — Exclamou Alcina.

— Miranda não deu a família que eu queria, então ela também não terá a dela. Uma vida por outra!

— Miranda não se importa comigo.

— Se fosse verdade, ela já teria acabado com você e ido atrás da Rosemary. — Eveline rebate. — O Megamiceto e a Miranda querem você... É uma mulher bem disputada, Alcina. Me pergunto o por quê? Você não vale nada, é só um cadáver andante, vivendo uma falsa vida. Você já está morta a muito tempo, e deveria ter parado quando Ethan te derrubou... Mas você tinha que resistir, não é? — Havia tanto rancor e ódio naquela voz infantil que Alcina não conseguiu digerir suas acusações com facilidade. — Você tinha que bancar a mãezinha da Rosemary e daquelas outras cobaias que sequer nasceram de você...!

— As minhas filhas não serem sangue do meu sangue não me torna menos mãe! — Alcina vocifera, estridente.

— Você não foi feita para isto! Não significamos nada para ninguém! — Eveline grita de volta. Lágrimas de remorso embaçam os olhos de Alcina. — Você foi feita de objeto, a sua vida toda, como eu! Sua função é obedecer e ser a hospedeira perfeita... A filha perfeita!

— Eu não quero ser a filha perfeita!

Eveline gargalhou, considerando aquilo uma piada. Alcina recuou um passo, chegando mais perto de Morgana. Eveline mostrava sinais deturpados de sanidade, e Alcina precisava se manter longe, não se deixando enganar pela aparência infantil.

— Diga isso na frente dele.

Pancadas fortes quase arrombam as portas, assustando todas as mulheres que estavam no quarto, incluindo Alcina.

Morgan! — Connor berra do outro lado, girando a maçaneta repetidas vezes. — Narcisa, abre essa porta!

Morgana envolveu o pescoço de sua bebê com o colar Dimitrescu, o processo sendo acompanhado por Alcina. Te amarei para todo o sempre, foram as últimas palavras de Morgana.

Uma das criadas, Constance, abriu a porta para Connor. Narcisa já estava com a bebê em seus braços. E, quando Alcina estava preparada para retalhar seu pai, não admitindo que ele tocasse Morgana, humilhasse a própria filha recém nascida — um monstro, narcisista, estrume... —, Alcina contraiu seus dedos e... Nada. Suas lâminas foram anuladas. Ela estava imponente. Tentou uma, duas, três, quatro... Nada de novo.

Dentro do núcleo, Alcina é uma humana. Ali dentro, ela é a caça, e o seu pai o caçador.

— Você a matou. — Connor olhou para Alcina. Olhos demoníacos a predavam. — É culpa sua.

Alcina arregalou os olhos. E, quando ela olhou para Eveline, ela já não estava mais lá, assim como Narcisa e as duas criadas. Pânico recaiu sobre Alcina, e Connor se pusera de pé, a bengala — não soube como ele a pegara —, mas estava ali, firme em sua mão.

— Não... — Alcina soluçou, recuando dois passos da cama.

Connor avançou um passo, cauteloso. Um caçador avaliando sua presa.

— Você a matou. — Repetiu ele. Cada bater da bengala era uma pancada nos ossos de Alcina. — Era para ter sido você... Não ela.

Corra, pequena condessa. A voz de Eveline sussurrou, onipresente.

Alcina olhou para si mesma: humana, frágil e vulnerável.

Corra pela sua vida!

E Alcina correu. Quando empurrou as portas o cenário mudou para um corredor frio, cinza e sem vida. Outro estrondo, mais grotesco, aconteceu a suas costas. Alcina atreveu-se a olhar por cima dos ombros, e horror se revirou em seu estômago. Connor era um gigante, e o corredor estremeceu conforme ele avançava. Ele deveria ter 3 metros, ou então...

Alcina soluçou ao ver suas mãos, tão pequenas e finas. As mãos de uma criança de 6 anos. Ela voltara a ser criança. O corredor parecia se alongar como um elástico, fazendo com que Alcina nunca saísse do mesmo lugar. Seu pai, cada vez mais perto, um gigante perseguidor. Terror constante martelava seu peito.

Era assim que aquelas pobres empregadas se sentiam perto de Alcina?

— Era para ter sido você! — Connor berrou, sua voz estrondosa causando um terremoto.

— Cisa! — Alcina corria, as pernas quase cedendo. — Cisa, por favor!

Sua governanta estava distante, e não a ouviria. Connor estava perto demais, e a caça seria bem sucedida. Caça... aquilo era uma caçada. As caçadas se originaram dali, daquela infância conturbada e cheia de traumas. Alcina gritou, berrou em estridentes, e se chocou contra a porta no final do corredor.

A superfície era sólida, como uma cortina, e o cenário mudou outra vez. Uma luz ofuscante a cegou temporariamente. Aplausos e assobios entupiram seus ouvidos, e, quando Alcina conseguiu abrir os olhos, reconheceu o minúsculo palco do Nola's. Ela era uma mulher feita, esbanjando um vestido preto luxuoso, o pescoço decorado por uma gargantilha de pérolas com uma pedra de rubi negro. Os holofotes em seu rosto não deram a chance para Alcina enxergar seu público, e Connor simplesmente sumira.

— Tente acompanhar a gente, princesa.

Alívio massageou seu peito, e Alcina virou-se para o saxofonista.

— Jackson!

Choque espancou seu rosto. Ofegante, assombrada, Alcina encarou aquele que fora, um dia, seu irmão do coração — o sangue drenado do corpo, empalidecido pela morte, Jackson a encarava de volta. O corpo dele... era igual aos espantalhos de seu vinhedo.

— Você nos deixou. — A voz de Marcus sussurrou do lado oposto.

Alcina olhou para o pianista, também um cadáver drenado. Os Pallboys não passavam de homens espantalhos. Seus instrumentos manchados de Sanguis Virgines.

A voz de Alcina falhou, mal respirando:

— Não... E-Eu não queria...

— Olhe o que você fez com elas. — Samuel apontou para a plateia com o queixo.

Os holofotes desligaram, e escuridão tomou conta do bar. As moroaicas rangiam os dentes e arrastavam suas lâminas nas mesas e no chão. Donzelas mortas por suas mãos. Mulheres usadas em experimentos, mortas por sua causa. Milhares e milhares de moroaicas secas e sedentas por vingança.

Os Pallboys se ergueram, e Jackson agarrou Alcina. Ela se debatia, chorando em pavor, implorando para que ele não fizesse o que pretendia. Ela fora posta de costas para a plateia, obrigada a olhar para o vazio nos olhos de Jackson. As mãos geladas e podres dele apertavam seus ombros desnudos.

— Jack.

Foram as últimas palavras de Alcina.

— Morra com elas. — E Jackson a empurrou.

O corpo dela desabou para dentro da onda de moroaicas. Espadas e foices lhe espetaram, e seu sangue jorrou, vazando do seu corpo como o vinho despejado para fora da garrafa. As moroaicas desfiguraram Alcina, seus gemidos mesclados com os gritos dela. Sangue sufocou sua garganta, asfixiando seus pulmões. Era como se afogar sem estar dentro do mar. Seria até menos doloroso se fosse desse jeito.

Seus olhos se fecharam, e seu sangue submergiu o bar. Alcina se sentiu flutuar, e água invadiu seus pulmões. Água! Abriu seus olhos rapidamente, enxergando uma imensidão de águas esverdeadas e algas e ossos humanos atolados na areia movediça. Alcina reconheceu o terceiro cenário, e precisava fugir o quanto antes.

Nadou para a superfície, os pulmões queimando e braços se debatendo o mais rápido que podia. Seu corpo estava mais pesado devido as camadas de tules do seu vestido branco — o mesmo que ela usara quando morreu nas mãos de Miranda —. Alcina conquistou o oxigênio, arfando e trêmula, os braços e pernas se debatendo para que não afundasse.

Alguns metros de onde ela estava, uma grotesca salamandra-peixe híbrida, saltou para a superfície. Uma legião de olhos vermelhos que ocupavam toda a cabeça da criatura encararam Alcina, e sua boca abriu-se para revelar Salvatore Moreau.

Seu irmão de Cadou, um homem deformado, um dos Quatro Lordes, berrou em sua direção, a voz duplicada com a horrenda criatura que também fazia parte dele:

Não é justo! Por que a Mãe a ama mais do que todos nós? Mais do que a mim?!

Moreau mergulhou, as barbatanas chocando-se na superfície, espirrando água e criando ondas que naufragavam os barcos de pesca.

Nade, Alcina! Nade! A margem não estavam tão longe, e Alcina começou a nadar desesperadamente. Não para! Não para! Não para! Conseguiu chegar ao solo, a terra penetrando dentro das unhas. Diante de Alcina, a floresta a chamava. Moreau saltou pela segunda vez, e Alcina rolou na lama. A salamandra mutante desabou para fora do rio, ensopada pela lama. Alcina teria se considerado com sorte, se não fosse pelos braços e pernas que a criatura possuía. Ele também é terrestre!

Irmã... — Moreau choramingou, com uma voz doente. — Me ajude, irmã!

Alcina rastejou, exausta demais para se manter de pé, engatinhando para longe da margem, longe de Moreau... Corra! Corra! Corra! Ela não conseguia invocar suas asas, e não podia usar suas garras, todo o seu poder fora tirado dela. Quando Moreau se equilibrou com suas patas, Alcina gritou uma palavra vulgar, e alguma parte dela que desejava sobreviver, a fez reconquistar as forças de que precisava para fugir.

Alcina corria às cegas, a noite reinava no vilarejo. Nuvens carregadas ofuscavam a lua cheia, e o frio era insurportável. Passando pelas árvores, Alcina chegou ao cemitério. Fios de ouro, como teias de aranha, reluziam dos galhos secos. E da névoa, uma figura feminina emergiu adiante. Ela era melancolicamente linda, trajada de seu eventual vestido preto. Um véu rendado da cor das sombras se estendia da cabeça para suas costas.

A Tecelã das Sombras ocultava seu rosto com uma máscara de esqueleto, tão reluzente quanto os fios dourados que despontavam de seus dedos.

— Donna! — Alcina reconheceu a irmã.

Donna estalou os dedos, e um relincho ecoou dentro do coração da floresta. Um cavalo de aço surgiu, atendendo ao chamado da Tecelã. Heisenberg era o seu cavaleiro, embora fosse seu irmão, sua aparência não era mais a mesma. Ele era metade homem e metade máquina; um cavaleiro de aço.

Suas irmãos se tornaram as reencarnações dos personagens do Vilarejo das Sombras: O Peixe Rei, A Tecelã das Sombras e o Corcel de Aço.

Alcina fora cercada por eles, e Moreau chegou ao cemitério em seguida, bloqueando qualquer passagem com o seu tamanho colossal.

— Se acha tão especial assim, irmã? — Indagou Heisenberg. — Não passa de uma mimada metida.

Algo trincou no peito de Alcina, como vidro rachando.

— Karl. — Sussurrou Alcina. — Sou eu. Sua irmã.

Karl estava inexpressivo, e os lábios se contraíram em desaprovação.

— Você me enoja.

A apunhalada da adaga de flores prateadas, usada por Ethan, não se compara a dor que Alcina sentira ao ouvir Karl proferir aquelas palavras... Palavras tão verdadeiras.

— Para você nada era o suficiente, Alcina. — Disse Donna, o rosto severo por baixo da máscara. — A Mãe tirava de nós para dar a você, por ser a favorita. Você tinha tudo. Mas nunca era o suficiente.

— Você é igual ao seu pai. — Comparou Karl.

Conforme o medo e culpa apunhalavam Alcina, uma névoa translúcida encobriu seus irmãos, e dela, o quarto personagem surgiu. A bruxa — Miranda —, má, contudo magnífica, conjurou corvos que sobrevoaram acima delas, escurecendo a pouca luz que restara da lua.

— Presentes lhe dei e mais você quis. — Disse a bruxa. — Então mais eu pegarei.

Donna estalou os dedos pela segunda vez, e aqueles fios de ouro enroscaram nos pulsos e nos calcanhares de Alcina, lhe acorrentando. Sua mente fora dominada, e mais sangue jorrou dela.

***

As constelações foram encobertas pela obscuridade da tempestade. Relâmpagos se estapeiam nas proximidades do castelo, e a chuva se intensifica cada vez mais. O vento uiva do lado de fora, mas as irmãs Dimitrescu estavam seguras na biblioteca, descansadas perto da enorme lareira bem alimentada e quente, ouvindo Becca narrar uma história de aventura.

As cinco estavam deitadas de costas no tapete, usando as almofadas do divã como apoio para suas cabeças. Daniela abraçava o pote com brownies queimados, ou o que restara deles, com farelos de chocolate nos cantos de sua boca. O desastre culinário não arruinou a experiência de Bela, Daniela e Cassandra em desfrutar da sobremesa, e elas haviam adorado, comendo até o último grão crocante. Outro relâmpago chicoteia com mais força, e Becca desvia o olhar do livro em suas coxas para reparar na persiana fechada e com as cortinas abertas, avaliando a tempestade. Em seguida, ela olha para o relógio de parede que havia ultrapassado das duas da manhã.

— Acho que deu de leitura por hoje. — Becca fecha o livro.

— Só mais um capítulo! — Prue implora, os olhos caídos de sono.

— Sim, só mais um! — Daniela apoia.

— Continuamos amanhã, eu prometo. — Becca anda para a estante onde o livro fora pego, o encaixando num espaço aberto entre dois livros grossos. — O resto é com vocês.

— Hãm?! — Prue arqueia as sobrancelhas.

— Vocês tiveram a ideia do vinho e da festinha noturna, agora cada uma deverá arrumar a biblioteca e limpar o que estiver sujo. — Diz Becca, indo até a porta. — A minha parte de salvar o couro de vocês já foi cumprida, e não deixei ninguém bêbada. Deixem tudo no lugar, para não enfrentarem a fúria da Margaret ou da mãe de vocês amanhã, que inclusive, vai estar numa ressaca daquelas. Então... — Antes de atravessar a porta, Becca lança uma piscadinha para o grupo. — Boa noite, meninas. — E saiu.

Rose recebeu olhares tortos de suas irmãs, afinal, a ideia havia sido dela.

— Não me olhem assim, vocês aceitarem a cumplicidade.

Uma almofada voou diretamente na cabeça de Rose, e o sorriso se estendeu quando percebeu que fora Cassandra quem vingou-se pela brincadeira de mais cedo. Uma segunda guerra de almofadas aconteceu em seguida, e as gargalhadas abafaram os sons dos relâmpagos.

Becca caminhou tranquilamente pelos corredores do jardim central, contemplando as poças que se formaram ao redor do quiosque de mármore com as três estátuas de donzelas. A brisa era refrescante, e às vezes algumas faixas das luzes dos trovões atingem os telhados. Subiu a escadaria com um pouco mais de pressa, desejando tirar o vestido de seda ocasional e se embrulhar contra o corpo de Alcina.

A cena na qual Becca deparou-se ao entrar no quarto a fez congelar, e ela pôde sentir os brownies subindo para a garganta, mas conseguiu forçar seu jantar para baixo. A cama está vazia, e Alcina está desaparecida. As portas da sacada foram destruídas por alguma força colossal, e a primeira impressão que viera em mente fora de Miranda invadindo o quarto para arrastar Alcina com ela.

Trêmula e a beira de uma crise de pânico, Becca corre para a sacada, sendo consumida pela chuva densa e o frio cortante. Uma poça já havia se formado dentro do quarto, e vários cacos da persiana estavam espalhados na varanda junto das lascas de madeira. Mesmo que estivesse tremendo, e encharcada pela chuva, Becca estudou o arrombamento das janelas, e tudo pareceu ficar ainda pior ao descobrir que não houve um impacto do lado de fora... Mas do lado de dentro. As janelas foram empurradas do quarto para a sacada, como se alguém tivesse se chocado contra elas.

— Alcina.

Becca estava devastada, e assustou-se quando um relâmpago ressoou dentro da floresta adiante. Ela se apoiou a beira da varanda, semicerrando os olhos para focar no ponto onde raios de luzes disparam freneticamente entre as árvores. Raios... Eletromagnetismo.

— Merda! — Becca correu para o closet.

O Megamiceto estava agindo de novo, e Alcina deveria estar sob seu domínio. Becca apanhou seu machado, antes guardado no compartimento das prateleiras de sapatos, e enlaçou o cinto de couro por cima do vestido caso precisasse de um suporte para sua arma, e saiu correndo para pedir reforços.

***

Cassandra acompanha as gotas deslizarem pela janela, sentindo o cheiro da chuva pelas frestas. Os ouvidos atentos aos trovões, e com seu instinto insinuando uma anormalidade no clima, como se não fosse natural o que estava acontecendo dentro da tempestade. Suas desconfianças afloraram com as experiências dentro e fora do castelo, por incidentes e ataques, que tornaram Cassandra uma especialista em decifrar algum perigo eminente se aproximando.

— Cassie, você não vai fugir da faxina. Vem ajudar. — Diz Bela, empurrando a poltrona de sua mãe ao seu lugar de origem.

— Eu não gosto dessa tempestade. — Cassandra continua a olhar pela janela.

— Nós estamos protegidas aqui dentro. — Daniela assegura, repondo as almofadas no sofá. — Becca prometeu isso.

Bela sorriu ao ouvir a confiança de Daniela por cima de Rebecca. Prudence bocejou, enquanto organizava os livros na estante perto da janela.

— A melhor parte de uma noite chuvosa é dormir com o barulho da chuva. — Rose se espreguiça. — Mal posso esperar para cair na cama.

— Eu também. — Diz Bela. — Tudo o que eu quero agora são minhas cobertas e meu travesseiro.

— Não vai dormir com a ruivinha? Ela deve estar com medo da tempestade. — Cassandra sorriu, maliciosa.

Suas irmãs deram uma risadinha com o comentário, deixando as maçãs do rosto de Bela da mesma cor que os cabelos de Willow.

— Cala a boca, Cassandra. — Bela resmunga, evitando contato visual.

As risadas foram cortadas com a entrada abrupta de Becca, e os sorrisos desapareceram ao mesmo tempo em que um raio atingiu o pico de uma árvore não tão longe da propriedade, e o ar faltou em seus pulmões por verem o machado com ela.

— Daniela. Rose. Preciso de vocês. — Becca as convoca, ofegante. — As outras ficam abrigadas no castelo!

— Por que você está molhada?! — Bela avança dois passos. — O que significa tudo isso?!

Outro raio eclodiu, mais agressivo.

— Não temos tempo, a mãe de vocês precisa de nós! — Becca olha para Rose e Daniela.

— Mãe?! — Cassandra aperta os punhos, ciente do que estava acontecendo. — Acha mesmo que ficarei aqui enquanto a nossa mãe é consumida pelo Megamiceto?!

— Daniela é a única que pode enfrentar a chuva, e vocês não! — Exclama Becca, apertando o machado para conter o próprio pânico. — Não vou pôr a vida de vocês em risco também!

— Eu enfrentarei qualquer coisa pela minha mãe! E não é você quem irá me impedir! — Cassandra se transforma no enxame de moscas, e Bela a segue.

— Não! Meninas! — Becca corre atrás das nuvens de insetos.

Todas disparam atrás delas. Becca conseguia ser rápida, e os treinamentos das caçadas fortaleceram os músculos de suas pernas para aguentar uma corrida voraz, quase no mesmo nível que o voo das moscas. Cassandra chegou ao Saguão de Entrada primeiro, e sequer pensou duas vezes quando puxou as portas e permitiu das rajadas de vento e chuva rasgarem sua pele. A sensação era como ser queimada por ácido, e um grito agonizante explode em sua garganta.

— Cassandra! — Becca se coloca entre ela e a porta, abraçando seu corpo para protegê-la do frio. Bela usou uma das estátuas de armadura como escudo.

Daniela e Rose empurram as portas, incapacitando o acesso da tempestade dentro do Saguão. Prudence chegou instantes depois.

— Você quer morrer?! — Daniela berra, enfurecida com a estupidez da irmã.

— Prefiro morrer no lugar da mãe! — Cassandra grita.

— Eu não vou perder a sua mãe, e muito menos você! — Becca segura o rosto de Cassandra, firmando o contato visual. — Eu preciso que você fique aqui, em segurança!

— E ficaremos aqui sem fazer nada?! — Bela protesta.

— Eu posso aprimora-las. — Diz Rose. — Como eu fiz com a Dani, eu posso deixá-las imunes contra o frio.

— Isso não irá te enfraquecer? — Becca olha Rose por cima do ombro, ainda mantendo Cassandra em seus braços... A mantendo aquecida.

— Um pouco. Mas vou encarar os riscos, pelo bem das minhas irmãs.

Não havia tempo para discussões, e Rose se mostrou muito determinada. Todas elas estavam determinadas. Becca olhou de Rose para Daniela — sabendo da capacidade em que a terceira mais velha tinha de suportar o frio, depois de Rose salvá-la numa tempestade parecida —, e voltou-se para Cassandra, enxergando a confiança em que ela demonstrou por Rose.

— É com você. — Becca diz a Rose, se afastando de Cassandra.

— Vem, Bela. — Rose estica sua mão para pegar a de sua irmã mais velha, ficando no meio de ambas. — Segure minha mão também, Cass.

Rose apertou suas mãos com força, fechando os olhos para canalizar suas habilidades na ponta dos dedos. Becca se juntou a Daniela, ambas segurando as maçanetas redondas das portas, em espera. Prudence observava da entrada do corredor, proferindo uma oração mental. Uma luz estridente cintilou de suas mãos, e Rose abriu os olhos, acompanhando o pólen cristalino disparando por suas veias e penetrar nos dedos de suas irmãs, se distribuindo pelo resto do organismo.

Uma sensação morna disparou por todo o corpo de Bela, e Cassandra estremeceu com o calor emanando dos dedos de Rose para os seus.

— Vocês estão prontas? — Becca certifica, pronta para abrir a porta. Cassandra e Bela afirmam com a cabeça, e Becca volta-se para Daniela. — Agora!

As portas são abertas novamente, e Rose não soltou as mãos de suas irmãs quando o vento chicoteou seus rostos, mas sem estilhaçar suas peles. Bela parou de respirar por um segundo quando sentiu o frio golpea-la, e não sentiu dor, sequer um desconforto. Cassandra ofegou, cada fração de ar em seus pulmões decaiu, para aumentar assim que fora engolida pela refrescância da tormenta noturna. Era gélida, fresca e convidativa; três combinações que elas jamais admitiriam ser deliciosas.

O frio não era ácido, era só gelado. Simplesmente o frio.

— É... — Bela tenta descrever a sensação, os olhos úmidos pelo alívio em seu coração. — É...

— Úmido. — Cassandra completa, partilhando o mesmo sentimento.

— Eu sei, exatamente, o que vocês estão sentindo. — Daniela sorriu, emotiva.

Envolvidas pelas correntes gélidas soprando em seus rostos, Cassandra e Bela convocam suas moscas — os insetos saindo do tecido de seus vestidos como se fossem uma nuvem escura —, experimentando do frio conforme as moscas seguem a corrente gélida para o lado de fora.

— É agora ou nunca! — Rose põe um pé a frente do outro, dobrando os joelhos em preparação para a largada.

— A mãe de vocês está ao norte do castelo! — Becca as direciona. — Precisamos ir agora!

Cassandra tornou-se uma massa de insetos primeiro, saindo noite adentro. Bela disparou por segundo, e Daniela buscou Rose, fundindo sua irmã com suas moscas e a carregando dentro da sua nuvem para o norte. Becca estava pronta para correr atrás delas, quando Prudence tentou ir com ela.

— Eu quero ajudar!

— Você vai ficar aqui! — Becca puxa as portas, deixando sua cabeça dentro do Saguão e o restante do corpo para fora. — Acorde a Margaret, diga a ela o que aconteceu e peça para preparar a banheira!

— Eu cansei de vê-la enfrentar o perigo enquanto me escondo no escuro!

— Você vai ficar aqui e ponto final!

— Eu não sou mais uma criança, Becca!

— Eu sei! — Becca assente, odiando aquela verdade. As irmãs Walker se encaram; uma querendo proteger a outra. — Mas você ainda não está pronta, Prudence.

Foi angustiante trancafiar sua irmã dentro do castelo, e Becca se odiou por ter incentivado as lágrimas de Prue, mas era necessário. Prudence não tem nenhuma experiência com a floresta do norte, uma região lotada por criaturas humanoides e sedentas por carne fresca, e se Prudence não tivera estômago forte para abater um cervo... Quem dirá se licanos interferirem em seu caminho.

O norte. Licanos. Alcina descontrolada. Becca está cavando a própria cova. Conforme a velocidade crescente de suas pernas, Becca se concentra no atalho e mantendo seus sentidos fixos aos arredores. As moscas das três irmãs voam logo à frente, mostrando o caminho para ela. Passando pelos Moinhos de Otto, raspando os pés no riacho raso, Becca penetrou por uma pequena fenda de arbustos, entrando nas profundezas do norte. A mesma área onde ela matara o lobo durante o desafio que Alcina havia feito meses atrás. A mesma área onde licanos e lobos poderiam cerca-la para o abate.

Mais relâmpagos disparam quilômetros a frente, e em sincronia, um rugido de estilhaçar a alma ecoou pela clareira. Um licano. Becca correu mais rápido, sem ousar a olhar para sua direita, onde uma figura peluda e com o dobro do seu tamanho a caçava.

Logo, o licano atirou-se na sua frente, e Becca se forçou a empunhar o machado — o segurando tão firme que seu cabo pareceu ser parte do osso de seu braço —, e derrapou na terra úmida enquanto as garras do licano passavam por cima de sua cabeça. Com um golpe, e de joelhos no chão, Becca rasga as pernas musculosas e peludas da criatura antes de cravar o machado em suas costas, partindo seus ossos e fazendo o licano rugir aos quatro ventos. Foi um ataque rápido.

Sabendo que outros licanos podem ter escutado os gritos, Becca continuou a correr na direção dos relâmpagos eclodindo contra as árvores, as pernas fortalecidas e pulmões cheios de oxigênio. Ou as caçadas definitivamente haviam transformado o seu corpo numa máquina mortífera, ou a adrenalina estava camuflando as dores em seus músculos para que ela pudesse chegar até Alcina. Poderia ser ambos, mas Becca sabia... Sabia que as caçadas contribuíram para os seus feitos, e aquela noite serviria para por todo o seu treinamento e conhecimento em prática.

Mesmo que a grama estivesse escorregadia pelas poças e lamas formadas da chuva, Becca não diminuiu sua corrida, derrapando raras vezes, mas sempre se equilibrando com eficiência e mantendo o ritmo.

Dois licanos surgem em direções opostas. Becca desacelera, projetando alguma tática de combate em sua cabeça antes das criaturas atacarem juntas. Merda!

Becca abaixou-se quando um dos licanos saltou sobre ela, como um lobo faminto. Ele escorregou em uma distância de dois metros, dando tempo para Becca se defender do segundo licano, o acertando diretamente no tórax com a traseira pontiaguda do machado, usando o pé esquerdo para chuta-lo diretamente ao chão. Menos um.

O outro licano, com uma pelugem acizentada e traços mais antigos, rugiu como uma fera sobrenatural, mostrando a fileira de dentes apodrecidos. Com o machado em sua mão esquerda, as lâminas banhadas em sangue dos outros licanos — o sangue dos companheiros dele, membros de seu bando —, o licano mais velho corre em sua direção.

Becca brandiu o machado contra a cabeça dele, mas a criatura desviou. Em seguida, ela sentiu um golpe atingir seu estômago, e seu corpo foi arremessado para trás, as costas batendo contra uma poça. Um gemido esganiçado saiu da boca de Becca com o impacto, seus ossos rangendo por alguma nova fratura.

Ela não tivera tempo de levantar. O licano avançou para cima dela, e Becca sacou seu machado, fazendo a criatura morder o cabo ao invés de seu pescoço, a única barreira entre seus rostos. Seus braços se esticam para aumentar a distância entre eles, e não adiantou afastar o terror ao ver o licano amordaçado com o cabo de ferro, a força em seus braços tem seu limite... E está se esgotando. As irmãs devem estar com Alcina, pois não há nenhum sinal de suas moscas.

Becca está sozinha, e com um licano em cima dela, prestes a trucida-la viva com aqueles dentes dilacerantes.

— Vá pro inferno! — Ela grita, como se isso fosse salvá-la.

Se recusava a morrer daquela forma. Ela não aceitaria morrer. A resistência e teimosia a fez pender o machado por mais uns segundos, o hálito de carniça do licano quase a fazendo vomitar. Uma das irmãs tinham que aparecer, qualquer uma delas. Alguém deveria ter ouvido seu grito. Qualquer uma!

Ei, engole isso!

O licano virou a cabeça na direção da voz, e Becca apenas viu uma luz cadente atravessar a cabeça dele. A criatura caiu morta ao seu lado, com uma flecha em seu olho. Becca virou-se rapidamente para a direção oposta, enxergando Prudence a cinco metros deles, com a besta apoiada sobre o ombro direito — o seu lado dominante — e um estojo de flechas preso em um suporte em seu quadril.

Uma das irmãs viera. Certamente, uma das irmãs recebera suas preces... Prudence a salvou.

— Eu disse para ficar no castelo. — Diz Becca, a voz calma, apesar da tremedeira em suas pernas.

— Ainda bem que não a ouvi. — Prue suspirou.

Lutando contra a tremedeira em seu corpo, Becca apoiou-se no machado para se levantar, e caminhou até sua irmã. Envolveu-a num abraço molhado, e lhe beijou a testa antes de se afastar.

— Teimosa.

— Você me ensinou bem. — Prue tentou sorrir, mas sua mandíbula endureceu quando olhou para o corpo do licano.

Não fora um esquilo abatido, ou um cervo vermelho, ou um lobo de porte grande. Prudence matou um licano. Quando Becca tinha dezesseis anos já havia matado animais selvagens, mas não uma criatura como aquela.

— Eu não queria que passasse por isso agora. — Becca acaricia sua bochecha, puxando a atenção de Prue novamente para ela.

— Era você ou era ele. — Prue sussurrou. As pupilas de seus olhos dilatavam, fixos na flecha dentro de seu crânio. — Quando eu vi ele em cima de você... Eu nem pensei. Só fiz. Mesmo que, antes, ele tivesse sido um homem... Será que ele sabia? Será que ele tinha alguma consciência humana, do que estava fazendo? Se sim, isso me torna uma assassina?

— Olhe pra mim. — Becca aperta seu queixo, e Prue desvia da criatura para mirar sua irmã; os olhos castanhos vagos de qualquer sentimento. — Aquilo não é mais humano. Você acabou com o sofrimento dele, e me salvou. Dá medo, eu sei. Eu já senti na pele esse sentimento, mas foi necessário para a nossa sobrevivência. Eu estou aqui com você. E Alcina precisa de nós... Agora mais do que tudo. Consegue continuar?

Prue engole seco, inspirando todo o oxigênio que podia, o expulsando pela boca. "É essa família que me dá forças.", Alcina havia dito naquela noite para ela. Com uma chama abundante queimado suas íris, Prue empunha a besta.

— Eu estou pronta.

Não há mais uma alma ingênua através daqueles olhos de café, e se um dia uma essência puramente inocente habitou aquele corpo, ela morrera na noite em que Prudence fora sequestrada. Diante de Becca, há uma garota que fora sugada para o inferno e conseguiu sair... Viva.

Becca entrelaça seus dedos, levando Prue consigo conforme correm pela trilha, enfrentando as cortinas de chuva salpicando em seus rostos. Adiante, uma linha elétrica fatia uma árvore grossa, e as irmãs recuam para o lado oposto por onde a gigantesca árvore atingiu o solo. A terra estremeceu aos seus pés.

Mais a frente, os gritos das outras irmãs ecoaram. O cenário que Becca e Prue encontraram foi avassalador; as irmãs lutam contra um bando de licanos, sacudindo suas foices para espirrar o sangue das criaturas por todos os cantos. Elas não apenas defendiam umas as outras como também formavam um escudo para Rose, e acima de suas cabeças — a quase dez metros de altura —, estava Alcina.

Becca consegue sentir suas tripas indo e voltando para a garganta por ver sua amada acorrentada por heras e caules das árvores. Era como presenciar um filtro dos sonhos grotesco, feito com as raizes da natureza, e Alcina era a pedra pendurada em seu centro. Cada hera, cada caule, estavam energizados com um brilho prateado, como se recebessem a corrente elétrica diretamente de Alcina. E talvez pudesse ser exatamente isto. As raizes estão interligadas a suas veias, rasgando sua pele e derramando seu sangue nebuloso. Os braços de Alcina estão esticados, remendados pelos caules, e suas pernas estão envolvidas por heras, o corpo dela parecia uma cruz... Alcina está crucificada.

— Meu Deus. — Prue arfa, horrorizada.

— Mãe! — Rose grita, as mãos estiradas para o alto, o poder cristalino estourando na ponta dos dedos para restaurar os cortes de Alcina. — Mãe, acorda!

— Becca, a sua direita! — Bela a orienta, seus sentidos rastreiam um licano avançando diretamente para as irmãs Walker.

Recebendo o alerta, Becca se prepara e mira o machado na direção orientada, avistando o licano a sete metros delas. Os reflexos de Prue agiram mais rápido, e antes mesmo de Becca atirar o machado, ela puxa o gatilho da besta e assiste sua flecha atravessando a garganta da criatura.

Novamente, Becca olha para Prue. Os olhos marrons estão afiados, e sem ressentimentos. Era como se Becca estivesse olhando para o seu próprio reflexo, olhando para a sobrevivente que um dia fora.

— Com todo o meu respeito e gratidão, irmã... Mas eu não ficarei mais atrás de você. — Diz Prue, alimentando a besta com uma nova flecha.

Chuva, vento, raios e rugidos ondularam por toda a floresta. Becca e Prue se aprontaram para o confronto. Suas costas se chocaram, machado e besta na mão. Uma manada de licanos surgiram da escuridão, de todas as direções. Flechas dispararam. Foices fatiaram a carne. E o carrasco empunhou o machado.

Entre os mundos paralelos, Alcina era consumida pelo Megamiceto. Eveline observava sua destruição, camuflada dentro da névoa da bruxa. Mais um pouco, e Alcina irá se desintegrar.

— Este é o seu fim. — Eveline olhou para a lua, o núcleo do Megamiceto. — Você não a quer? Então a tome!

Tempestade, névoa e sangue formaram um tornado ao redor dos personagens do livro, presenciado por Becca e as irmãs em tempo real. Os licanos foram abatidos, e elas precisavam agir antes que outros as encontrassem.

— O que a gente faz?! — Rose gritou, seus poderes cederam a exaustão.

Sem deixar com que o terror e redenção a persuadissem, Becca revisou o que Alcina dissera a Nathan sobre a conexão: ... eu me senti sendo puxada por várias direções, como se minha alma estivesse sendo desfiada para se distribuir por todos os lugares. Eu ouvia as minhas filhas, mas não conseguia me comunicar de volta...

— Ela pode nos ouvir! — Becca gritou. — Chamem por ela!

— Mãe! — As irmãs gritaram, repetidas vezes, até que suas cordas vocais rasgassem.

— Alcina! — Becca exclamou, mais alto, e mais alto. — Alcina, siga a nossa voz! Nós estamos aqui, meu amor!

Eveline resmungou, ouvindo os gritos repercutindo contra o tornado, tentando ultrapassar.

— Patéticas. — Eveline sorriu com escárnio. — Acham mesmo que chamar pela mamãezinha vai adiantar?

Pólen dourado, cintilante como ouro ao sol, encobriu os olhos de Eveline, a fazendo se debater para recuperar sua visão. Uma pancada atingiu seu rosto, feito por um joelho de uma nova entidade que conseguiu ter acesso ao núcleo.

Eveline cambaleou com o chute, derrapando e rolando na grama. O polén tomou a forma de uma empregada — a mulher reluzindo como se fosse feita do mais puro ouro —, e Eveline gritou para ela, com uma ira incontrolável.

— Como você conseguiu entrar aqui?!

A empregada nada disse, pois não tinha tempo o suficiente. A mulher de ouro evaporou numa névoa amarelada, para surgiu diante de Alcina, lhe assegurando o rosto com delicadeza.

— Alcina, nada disso é real! — A mulher de ouro dispara. — Eveline está te manipulando, você precisa voltar.

Desamparada, Alcina recobrou a sua consciência, e a dor suavizou com o roçar daquele pólen dourado em sua pele. Ela não acreditava no que estava vendo, em quem estava ali, a centímetros dela. Os olhos de hortelã brilhavam em meio ao pólen cintilante salpicando seu rosto.

— Amélia?

— Eu não tenho tempo e nem forças para permanecer nesse estrato. — Amélia informou, sorrindo perante a situação em ruínas. — Eveline vai me expulsar a qualquer momento, e você não pode dar ouvidas a ela. Sua família está a chamando. Ouça. E mostre quem manda.

Alcina piscou, perdendo o fôlego. Não conseguia raciocinar direito, e muito menos sentia dor. Amélia a libertou.

— Amélia. — Era tudo o que Alcina conseguia dizer, os sentimentos transferidos através do nome.

Amélia sorriu; um sorriso de ouro.

— Essa é a minha consciência, Alcina. — Amélia a lembrou. — E agora você a tem. Você tem a todos nós. Não deixe Miranda descobrir, e não ouse morrer. Ouça o chamado.

Mãe!

Alcina!

Ela ouvira o chamado. Eveline libertou-se do pólen de Amélia, e a fez evaporar como fumaça, a repelindo do núcleo. Quando Eveline avançou em direção a Alcina, prestes a finaliza-la, um escudo translúcido se projetou entre elas.

— Cansei dessa merda. — Os ossos de Alcina vibraram com a carga de poder transcendendo em seu corpo. — Chega de joguinhos, Eveline.

O rosto de Eveline ficou pálido.

— Você não pode ser tão forte assim!

— É o que veremos. — Asas grandiosas se estenderam atrás de Alcina, e seu poder prateado irradiou por todo o seu corpo. Ela se tornara o quinto personagem: a Lorde dos Morcegos. Bela, eterna e divina. — Este é o meu corpo. Essa é a minha consciência! Você não tem o direito de violar as minhas memórias, e não tem poder sobre mim!

Os três Lordes, junto da bruxa, desapareceram na névoa. Eveline perdera o domínio de tudo, tornando-se prisioneira de Alcina.

— Isso não é justo! — Vociferou Eveline. — Eu vim primeiro!

— Você não passa de uma consciência a muito perdida, e que pertence a mim. — Alcina manobrou seu polén cristalino em direção a Eveline, apossando sua mente. — Nunca mais brinque com as minhas memórias. Nunca. Mais!

Poder prateado, forte e estrondoso, percorreu os ossos de Alcina ao criar um escudo que fora capaz de expulsar Eveline para fora do núcleo. Por fim, Alcina despertou. Suas asas romperam as heras e caules que lhe aprisionaram conforme seus sentidos se recuperavam, e Alcina arquejou, ar e chuva invadindo sua garganta. Seu poder ainda reluzia em seus braços e mãos, e suas filhas, e Becca, estavam alguns metros abaixo.

Um novo rebanho de licanos começou a se aproximar da área, e antes das criaturas terem chance para sequer darem um salto de ataque, com um estalar de dedos, correntes elétricas foram despejadas ao comando de Alcina, matando cada licano numa só tacada com a potência das descargas.

As asas se esticaram, e Alcina descera calmamente, indo de encontro aos braços de suas filhas. Um gemido soou por seus lábios assim que os joelhos se dobraram na grama.

— Mãe! — Rose saltou contra ela, se pendurando em seu pescoço.

Não demorou para as outras quatro pularem de encontro ao seu corpo, se apertando e chorando de felicidade. As asas se dobraram, espremendo suas filhas para mais perto. Becca observou a cena com alívio e alegria sem igual, a chuva disfarçando as lágrimas que escorriam por sua face.

Uma corrente fria repercutir entre elas, e fora ali que Alcina percebeu. Ela se desvencilhou das meninas, olhando de uma em uma, o rosto levemente amedrontado.

— Vocês estão na chuva. — Alcina murmurou, lhe faltando fôlego.

— Rose fez isso. — Disse Bela. — Somos imunes agora.

— Não sentimos frio, mãe. — Cassandra soluçou. — Não dói.

— Vocês... — Alcina tocou o rosto de cada, emocionada, sorrindo — Vocês estão na chuva!

— Estamos na chuva! — Daniela comemorou.

— Ah, Rose. — Alcina beijou carinhosamente a testa da mais nova, e Rose sorriu, chorosa. — Como eu te amo, minha filha. Como eu amo todas vocês... — Alcina olhou para Prue, bem abaixo do seu braço direito. — Prue, o quanto estou orgulhosa por sua bravura, minha querida. Ter você conosco é uma benção. — Elas se amontoaram para dentro de um novo abraço, envolvidas pelas asas calorosas.

Aquela era uma cena em que Becca jamais esqueceria. Haveria a noite toda para encarar o que acontecera, mas por enquanto, elas aproveitaram aquela vitória para brincarem sob as poças e voarem pelo céu noturno, entre a chuva e trovões, de volta para casa.

***

Becca assistia os dedos de Willow trançando seus cabelos pelo espelho da imensa penteadeira de ouro. Usava suas respectivas roupas de caça: blusa branca e mangas longas, com cordões para afirmar o decote. Calças de couro preto e botas de cavalgada. Penélope, depois de trocar os lençóis e fronhas, arrastava os cacos e pedaços de madeira para um montinho de sujeira com a vassoura. Mudas de roupas e tecidos de cama foram jogados dentro do cesto que Penélope trouxera mais cedo, e feito a limpeza da sacada, ela preencheu o colchão com os suspensórios de Becca, o machado e o corset de couro preto.

— Como diabos essa sacada foi destruída? — Penélope questionou.

— Alcina é sonâmbula. — Mentiu Becca. — Ela teve pesadelos, e acordei na hora do estrondo, quando ela se chocou contra as portas. Pela nossa sorte isso não acontece com frequência, mas vamos precisar trocar de quarto.

— Minha nossa. — Penélope rodeou a cama, pegando o machado para sentir sua textura e peso. — E o que são essas caçadas que você faz com a condessa?

Mais cedo, quando estava saindo da banheira, Becca mencionou a ocasião para suas amigas. Elas já haviam visto Becca deixando o castelo com Lady Dimitrescu algumas vezes, e sabiam que elas voltavam da floresta, mas não o que elas faziam durante o período fora.

— É tipo um esporte. Coisa de família. — Becca omitiu. Não era nem meia verdade e nem meia mentira. — Praticamos na maioria das manhãs. É divertido.

— Willow queria te fazer uma pergunta a séculos, mas como ela é tímida demais farei por ela: você e a condessa já transaram?

Willow puxou as tranças de Becca, olhando Penny pelo reflexo do espelho. Sua face nunca ficara tão rosada de vergonha.

— Penny! — Will reclama.

— É uma dúvida sua na qual acabei considerando também. — Penélope devolve o machado a cama, sem vergonha alguma pela curiosidade.

— Sim, Alcina e eu fazemos amor. — Becca murmura, risonha.

— E... — Agora Penélope parecia rosada. — É muito grande?

— Pe-né-lo-pe! — Willow rosna em sílabas, os dedos cravando dentro das tranças.

Becca riu das reações espantosas de Will.

— É, é grande. Mas não é um bicho de sete cabeças. — Penélope e Willow ficaram boquiabertas, e Becca prosseguiu. — Eu consigo dar prazer a ela, e tivemos muitas noites para conhecer o corpo uma da outra.

— Dedos? — Penélope ergue as sobrancelhas.

— Prefiro o punho. — Becca sorriu de lado.

— Boca? — Willow arregala os olhos.

— É a minha parte favorita, principalmente, quando a Alcina cavalga em cima da minha.

Willow engoliu errado, e começara a tossir loucamente, engasgada com a própria saliva.

— Me engasguei desse jeito também. — Becca assimilou.

Penélope explodiu em gargalhadas, as mãos na barriga e corpo curvado, seguindo de risadas mais escandalosas conforme Willow se recuperava e continuava a fazer as tranças.

As três se olharam pelo reflexo, rindo mais uma vez.

— Então... — Penny limpa uma lágrima. — Você nunca teve medo, sei lá... De se afogar?

— Eu sentia tantas coisas ao mesmo tempo que medo poderia ter participado da minha turbulência hormonal, mas esqueci completamente de sua presença quando tive acesso ao corpo dela. — Becca ronronou, fechando os olhos com a sensação dos dedos de Will trançando seus cachos suavemente. Imagens de Alcina, nua na cama, inundaram seus pensamentos. — Ela é linda. Tudo nela. — Desde as asas; os olhos vibrantes; as garras reluzentes; a voz celestial ao cantar e ler histórias... Tudo. — Se vivêssemos no Olimpo, os deuses sequer saberiam da existência de Afrodite, não com Alcina ocupando o mesmo templo.

— Alguém está perdidamente apaixonada. — Cantarolou Penny.

Becca sorriu de volta.

— Quero saber de vocês agora, o que estão achando dos quartos?

— Maravilhoso! — Willow roçou os dedos levemente pela nuca de Becca, não deixando nenhum cacho solto. — Nem dá vontade de sair da cama, e não é frio. Me sinto uma princesa.

— Quanto às outras meninas, parecem ogros. — Comentou Penny. — Elas estão tão confortáveis que, duas noites atrás, conseguimos ouvir os roncos da Alyssa do outro lado do corredor. Eu achei que um licano tinha invadido o castelo.

— Fala sobre a Gwen e a Ruth. — Willow sorriu, as bochechas levemente coradas.

— Ah, sim. — Penny põe ambas as mãos nos quadris. — Gwen e Ruth foderam na primeira noite da troca de quartos.

— Sério?! — Becca quase berra.

— Delilah contou a Mila, e eu ouvi descaradamente. — Penny afirma. — Delilah resmungou sobre a cama de Gwen batendo contra a parede dela a noite inteira, fora os gemidos agudos da Ruth que a deixaram com insônia.

Becca e Willow riram baixinho. Era uma descoberta e tanto.

— Elas ainda visitam os parentes nas folgas? — Perguntou Becca.

— Não muito. — Willow respondeu. — Elloy saiu hoje para ver a avó, e Gemma também sai uma vez que outra. Mas, a maioria das garotas estão com medo, e preferem ficar dentro do castelo mesmo nas folgas.

Insetos escuros se manifestaram pelas frestas da porta, criando uma massa corporal na entrada do quarto. Quando o rosto de Bela formou-se, formidavelmente lindo, as unhas de Willow cravaram no crânio de Becca. Desta vez, ela não reteve um gemido com o impulso da ruiva.

— Desculpa. — Willow sussurrou, arregalando os olhos.

Conforme Bela caminhava pelo quarto, como se estivesse flutuando, Willow trancava a própria respiração e evitava qualquer contato pelo espelho. Penélope fingiu que estava reorganizando os acessórios de Becca na cama, atenta a cada movimento da irmã mais velha.

— Mãe me enviou. — Bela anuncia, parando a centímetros de Willow. — Ela gostaria de saber se está pronta?

— Só falta as tranças. — Becca resmungou, e as unhas de Willow afundaram mais em seu crânio. — Will, alivia a tensão nos dedos.

Willow só faltava cair morta de vergonha, e Penélope espremeu os lábios para não rir.

— D-Desculpa. — Willow repete, o tom de voz mais baixo quanto o anterior.

Becca e Penélope lançaram olhares cismados uma para a outra pelo espelho. Bela aprontou-se para sair, olhando — devorando — Willow de cima a baixo com uma rápida observação, se materializando e deixando o trio com suas fofocas.

Nenhuma delas comentou sobre a palidez de Willow.

No escritório de Alcina, três das irmãs (Rose, Daniela e Cassandra) cercavam a mãe na mesa. Rose estava sentada na beira, segurando o celular na posição horizontal defronte ao rosto de Alcina. O vídeo de sua dança na confraternização rolava; o momento em que Alcina começara a girar sem rumo, embriagada e lúcida.

Alcina franzia a testa; abrindo e fechando a boca, assombrada, piscando os olhos, e fazendo caretas por ouvir as barbaridades que saíam avulsa da própria boca. Se Rose não tivesse gravado nunca teria acreditado. A ressaca chutava sua cabeça, e o chá que estivera segurando — antes quente, o vapor raspando seu queixo e o cheiro de mel ser mais convidativo —, agora jazia gelado. Suas mãos estavam congeladas na superfície de suas coxas.

Daniela e Cassandra acompanham o vídeo, uma em cada ombro da mãe. Margaret arrumava a bandeja, sorrindo por dentro com o vídeo catastrófico.

— Quer que eu reproduza de novo? — Rose caçoa.

— Quer ficar de castigo? — Alcina arqueia as sobrancelhas.

O trio, e nem mesmo Margaret, evitaram de gargalhar.

— Precisava ver a tia Donna, mãe. — Disse Cassandra. — Ela ficou extremante enfurecida quando soube que o tio Karl mexeu nos frascos dela. Nunca a vi levantar a voz daquele jeito, nem parecia a nossa tia.

— Só o bastardo do meu irmão para conquistar tal façanha. — Alcina devolve a xícara para a bandeja no centro da mesa. — O que aconteceu depois desse desastre?

— A senhora ficou falando várias coisinhas amorosas para a Becca na frente de todo mundo. — Daniela sorriu com malícia.

O rosto de Alcina endureceu como pedra.

— Mãe, você anda muito assanhada perto da Becca. — Rose provoca.

Se Alcina fosse uma topeira já teria cavado um buraco no piso e se enfiado ali mesmo.

— Está vermelha, minha senhora, gostaria de outra xícara para relaxar o coração? — Margaret sorriu de canto.

Rose escorregou para fora da mesa, rugindo uma gargalhada igual as de suas duas irmãs.

Todas vocês, fora do meu escritório. — Alcina balança os dedos, como se estivesse espantando abelhas. — O assunto morreu aqui! Vamos, xô! — As irmãs continuavam rindo, contagiando a própria mãe. — Vejam se Bela e Becca estão prontas, e acordem Prudence para tomarmos café antes da caçada.

— Margaret, pode fazer panquecas com frutas vermelhas? — Daniela pergunta.

— Vou providenciar as empregadas a preparar. — Margaret assentiu com a cabeça.

Rose também fizera um pedido: chocolate quente com marshmellos. Alcina contemplou suas filhas enchendo a governanta com receitas, o sorriso carmesim se ampliou conforme Margaret alegava que iria preparar uma refeição de cada vez. Calafrios gélidos percorreram até a espinha quando Alcina ouviu o rastejar de penas em seu terreno. Em seguida, seus sentidos ouviram garras metálicas arranhando a porta de entrada, e o Deus Negro infestou o castelo com sua obscuridade.

— Vão para os quartos agora! — Alcina ordena. As quatro encararam a monarca com olhos arregalados. — É a Miranda, depressa!

Cassandra esmurrou a porta para liberar passagem, e Daniela puxou Rose para dentro de sua névoa de moscas, ambas materializadas e voando atrás da infestação de Cassandra. Alcina e Margaret seguiram juntas para o Salão Principal, e cruzavam o pequeno corredor que interligava ambos os salões quando Miranda adentrou. E as moscas, por sorte, se refugiaram no segundo andar.

— Mãe Miranda. — A voz de Alcina tremeu ligeiramente. — Eu...

— Criança rebelde. — Rosna Miranda, na margem de sua raiva.

Bastou uma encarada, apenas uma, por trás da máscara de corvo que Miranda ostentava naquela manhã para que Alcina gritasse. Os joelhos da monarca se dobram, batendo contra o chão, e as mãos espalmadas no piso. Garras de corvo rasgaram seu crânio por dentro, descendo lentamente pela garganta, fatiando seu peito como se fosse um moedor de carne. Rachaduras negras marcaram sua pele, indo do rosto até o busto. Quando as garras de Miranda se moviam por outras regiões as rachaduras se estendiam, lhe acompanhando.

Margaret levou ambas as mãos a boca, inclinando o corpo como se estivesse prestes a vomitar.

— Mãe Miranda, não faça isso... — Margaret súplica.

Miranda cravou os olhos na governanta, arremessando um escudo invisível contra ela, empurrando seu corpo para longe de Alcina. Margaret gritou em pavor, perplexa por aquele poder tê-la esmurrado.

— Não se intrometa. — Miranda ordena a Margaret, direcionando o olhar para Alcina. — Eu fui extremamente clara de que não era para você usar suas habilidades sem o meu consentimento! — Miranda retira uma seringa das mangas de seu manto. — Um passarinho negro também me contou de que você se aventurou no reservatório para salvar uma garotinha. — Por trás da máscara, os lábios de Miranda retorceram em nojo. — Quer dizer que você decidiu brincar de anjo da guarda e pôr o vilarejo contra mim?

Alcina revirou os olhos, angustiada; o amarelo tornou-se um profundo vermelho. As rachaduras em sua pele se intensificaram. O poder psíquico de Miranda destruía Alcina por dentro.

— Não era... a minha intensão...

— E quais são as suas intenções, Alcina?! — Miranda imobiliza Alcina contra o chão, cravando a seringa em seu pescoço, roubando o seu sangue. Alcina gritou mais uma vez. — Planeja ter o reconhecimento daquela gente? Se expondo daquela maneira para que os aldeões acreditassem que você fosse a salvação deles?

— Era só uma criança. — Ofegou Alcina.

O tubo da seringa encheu-se com o sangue de nébula, e Miranda o recolheu. Examinou a substância com grãos cristalinos, e naquele momento, Miranda soube das relíquias poderosas que escorrem das veias de Alcina.

— Quais os poderes que despertou? — Miranda ordenou.

Alcina estava inerte ao chão, como se uma rocha fosse empurrada contra suas costas. Contar a Miranda sobre as novas habilidades seria como mostrar ao inimigo a quantidade de munição que lhe restou.

— Eu não sei. Não que eu tenha sentido.

— Não era a resposta que eu queria. — Miranda retalhou Alcina outra vez, sem toca-la, observando o corpo dela se arquear em dor e os gritos ecoarem por todo o salão. — Quais as habilidades que você despertou?!

Do segundo andar, Becca arrombou a porta do quarto — os cabelos prontos em um coque trançado —, correndo em direção aos gritos, e encontrou as irmãs encolhidas a beira da escadaria, ouvindo as torturas de sua mãe. Willow e Penélope estavam horrorizadas, e espiaram o julgamento pela sacada do segundo andar.

Becca olhou para Bela; a mais velha mantinha Rose dentro de seus braços, uma das mãos acima de sua boca enquanto Rose se debatia com raiva por ter de aceitar sua mãe sofrendo. Daniela cruzou os braços, apertando os ombros com as mãos como que para conter a agonia da tortura. Cassandra tinha uma expressão severa, com um ódio crescente queimando suas íris.

Prudence cruzou o corredor, assustada com a violência logo abaixo.

— Becca? — Prue estremece, e as lágrimas transbordam. — O que está acontecendo com a Alcina?

Suas pernas agiram, e Becca abraçou a irmã, cobrindo seus ouvidos para poupar Prue de futuros pesadelos.

— O que está acontecendo lá embaixo?! — Becca pergunta para qualquer uma das irmãs.

— Miranda soube dos poderes da mãe. — Respondeu Cassandra. — Ela sabe que a mãe andou praticando, e agora, está a punindo.

Lá embaixo, Alcina gritou, soluçando ao responder:

— A bioluminescência é tudo o que eu sei!

Miranda não considerou, e multiplicou a sensação dilacerante.

— Direi apenas uma vez. — Miranda decreta. — Meu vilarejo. Meus serviçais. Minhas regras.

Os poderes psíquicos de Miranda repuxaram os ossos de Alcina, suas garras arranharam sua mente com mais força, mais fundo, lhe estilhaçando em fiapos. Alcina gritou, esganiçada. Becca prendeu a respiração, fervilhando em ódio, agonia e medo... medo de perder Alcina.

Ela não deixaria. Fizera uma promessa, um juramente de sangue, e Becca cumpriria. "Eu serei o escudo dela!", e fora esse lampejo de percepção que fizera Becca correr. Correr com fúria em direção ao agressor de sua amada.

— Não! — Becca grita, avançando escada abaixo. — Miranda!

O desespero fez suas pernas saltarem os últimos degraus, e ao invés de manter a distância e implorar a sacerdotisa que tenha piedade, Rebecca jogou-se em suas costas, dobrando os braços no pescoço de Miranda e utilizando toda a sua força para imobiliza-la, desse jeito, acabando com a tortura de Alcina. Fora uma decisão tola e irracional.

As asas de Miranda explodem para fora de suas costas, esmurrando Becca para longe dela. Seu corpo rolou pelo Salão Principal, a uma distância de quase 3 metros. A dor que Becca sentia pelo impacto no chão é instantânea, mas suportável. Alcina queria gritar para que sua donzela saísse dali, mas seu corpo ainda sofria a ardência excruciante, e qualquer som emitido em sua boca ficava entalado na jugular.

Becca se apoia com os joelhos, arfando em pânico com a visão rara dos cinco pares de asas negras que ficavam escondidas a maior parte do tempo no manto de Miranda. Com as asas expostas ela conseguia ser ainda mais intimidante e maléfica.

— Humana delinquente, como ousa me atacar desta maneira?! — A voz de Miranda era fria. — Como ousa interferir nos assuntos entre minha filha e eu?!

— A culpa não é dela! — Becca grita, se colocando de pé para enfrentar a ira do diabo.

— O que está insinuando?

— Rebecca, volte para o seu quarto e não se intrometa com a Mãe Miranda outra vez! — Margaret murmura, a voz trêmula por estar contendo as lágrimas ao máximo.

— Fui eu quem a motivou usar as novas habilidades! — Becca continua, olhando firmemente nos olhos de Miranda. — Eu a encorajei para isto, indo contra a sua exigência. Dessa forma, eu pus a vida dela em risco, por pura diversão. Então, puna a mim, e não ela.

Os olhos de Miranda estavam avassaladoramente arregalados, espantada, mas não pela coragem de Becca e sim pela oportunidade que recebera de mãos beijadas para castiga-la ali e agora. Alcina gemeu algo incompressível, se contorcendo no chão.

— É o que você ouviu. — Prosseguiu Becca, decifrando os pensamentos de Miranda sobre sua confissão, suspeitando de que suas palavras poderiam ser um blefe. Mas não eram. — Me puna no lugar dela. Eu mereço tanto quanto ela.

Uma risadinha venenosa soou entre os dentes cerrados de Miranda

— Vê, Alcina? — Perguntou Miranda, apesar do sorriso de víbora estar na direção de Becca. — O quão longe o amor de sua humana pode chegar? — Ela olhou para Alcina, não se abalando com a surpresa nos olhos da condessa por sua alegação. — Não me olhe assim como se não soubesse de nada, é explícito os sentimentos dela por você. Um bichinho não se arriscaria tanto. — Miranda volta-se para Becca. — Embora você tenha me causado problemas, preciso reconhecer a sua coragem, Sra. Walker. Para a sua sorte, meus dons não funcionam em você... Mas há uma punição que será aplicada, e esta não falhará. Você confessa seus pecados para contra a sua sacerdotisa?

— Eu confesso. — Becca responde, imperturbada.

O sorriso de Miranda se alargou.

— Que assim seja. — O braço direito dela se alongou numa metamorfose diante de Becca, se tornando uma raiz obscura e fina como um chicote. Não foi difícil decifrar o que Miranda pretendia em seguida. — Você manipulou minha filha, a fazendo ir contra os meus princípios em pró do seu bel-prazer. Receberá 50 chibatadas; 25 nas costas e 25 na frente.

— Mãe Miranda... — Margaret protesta. — Isso é realmente necessário?!

O que aconteceu em seguida fora tão rápido que Becca quase tivera seu coração saltado pela boca, e Alcina gritou em protesto. Margaret fora espancada no rosto pelo chicote enraizado, desabando no chão e perdendo seus óculos na queda.

— Margaret! — Becca tentou chegar até a governanta, mas Miranda chicoteou o ar entre elas, alertando Becca para que se mantivesse longe de Margaret. — Pare, por favor!

— De costas, garota humana! — Ordena Miranda. Becca contraiu os lábios, olhando para Margaret e se sentindo responsável pelo seu castigo. — Devo passar adiante, então? — Miranda levanta o braço de raiz na direção de Margaret.

— Não! — Becca a impede. — Não será necessário!

— Ajoelhe-se. Humana.

Miranda praticamente cospe a palavra humana como uma ofensa, e Becca se imaginou cortando sua cabeça com o machado, e até mesmo sua mão apertou-se em volta de um cabo invisível. Ela está desarmada, e o machado não pode ser recuperado agora.

Quando Becca virou-se de costas, ajoelhando-se para cumprir com a sentença, seu coração batera com rapidez ao presenciar as irmãs e Prudence escondidas no topo da escadaria, acompanhando tudo. Elas usavam as sombras para se camuflar, como também a esquina da escada para espiar. Mesmo que Willow e Penélope não se mostrassem, Becca sabia que suas amigas ouviam tudo onde quer que elas estivessem.

Cassandra abraçava Prue, cobrindo sua boca como Bela fizera com Rose. Ela chorava, se afogando nos próprios soluços mudos. Becca não queria que sua irmã, ou qualquer uma das meninas, soubessem o quanto ela estava com medo. Então, Becca sorriu. Não um sorriso falso, mas materno, um sorriso que dizia: "Vai ficar tudo bem.".

A primeira chibatada acontece, antes que Becca pudesse prever. Um grito escapa, o primeiro e último. Nas próximas chibatadas ouviu-se apenas o som da raiz mutilando as costas de Becca, as unhas cravadas no couro de suas calças e dentes cerrados, mordendo a parte interna de seus lábios. Becca não gritou para garantir as meninas de que estava bem. Becca não gritou para que Miranda não se deliciasse com sua dor. Becca não gritou para que Alcina, sua amada, não sofresse internamente e poupasse seus ouvidos sensíveis.

Por sua família Becca aguentaria a tortura. Sua camiseta branca tornou-se vermelha com o sangue mesclado no tecido, dando para ver perfeitamente onde os cortes se abriram e o quão profundos são. Alguns são mais curtos, outros são tão extensos que marcaram desde os ombros até o fim da cintura.

O esforço mental que Becca fizera para conter a dor fora tão intensa que perdera a contagem das chibatadas, e só soube que chegara a vigésima quinta quando a voz de Miranda a conduziu:

— De frente.

Becca obedeceu. Arrastou os joelhos pelo piso até estar defronte a sacerdotisa, mas seus olhos foram diretamente para Alcina, vislumbrando seu rosto rachado como porcelana. Esta seria a parte mais difícil; ser castigada olhando diretamente para a mulher que ama. Houve um choramingo no canto do salão, e Becca não precisou olhar para Margaret para conferir suas lágrimas.

— Eu tentarei poupar seu rostinho. — Miranda sorriu.

A única coisa que conseguia sustentar Becca era o seu amor pela família Dimitrescu. Por mais que as próximas chibatadas estejam fatiando seu peito, dilacerando sua carne e transformando sua camiseta em fiapos de tecido, ela olhou para Miranda, a encarou impiedosamente. Seu corpo permaneceu rígido contra as chibatadas, e seus olhos não desviaram da sacerdotisa. Cada impacto da raiz, e perante a cada gota de seu sangue derramado, Becca orou em nome daqueles que foram vítimas de Miranda. E desta vez, cada chibatada fora contada.

A décima quinta chibatada, por sua mãe, Daiana Walker.

A décima sexta, por seu pai, Neil Walker.

A décima sétima, por Amélia.

A décima oitava, por Pyetra.

A décima nona, por Prudence.

A vigésima, por Rose.

A vigésima primeira, por Daniela.

A vigésima segunda, por Cassandra.

A vigésima terceira, por Bela.

A vigésima quarta, por Margaret.

E, por fim, a vigésima quinta — a mais ardente e cruciante que sentira chicoteando a lateral esquerda de seu crânio —, e que mesmo a beira da perda de consciência, Becca resistiu e sangrou por ela... Por Alcina.

Seu corpo obtivera espasmos, e mesmo que render-se a escuridão de sua mente pudesse ser tentador, Becca aguentou firmemente de joelhos. Miranda esperou que ela se acovardasse, que implorasse para poupa-la do sofrimento. Mas não fora o que aconteceu. E ver Rebecca ali, consciente e inexpressiva — uma humana que, teoricamente, deveria ser frágil e covarde —, deixou-a com um certo pingo de tremor.

Becca emitia a face de um lobo; selvagem, forte e líder. Um lobo em pele humana.

"Aproveite enquanto estou de joelhos a você. Deguste das minhas feridas, e inale o cheiro de meu sangue o quanto puder... Porque eu vou fazê-la pagar o dobro um dia.", fora o que o olhar de Becca dizia em um silêncio ameaçador. Miranda espreguiça seu braço, e a raiz volta a ser parte de seus membros. Nada mais fora dito em relação a Becca, e Miranda voltou-se para Alcina. Inclinou-se o suficiente para seus dedos metálicos apertarem o queixo dela, a obrigando olhar para cima.

— No solstício de verão, todo este sofrimento e sangue derramado terá servido ao seu valor. — Miranda murmura para Alcina. — A entrada da estação dará início ao seu renascimento, como minha filha legítima, e deverá se preparar. Alimente-se com o dobro de sangue, e mantenha Rebecca sobre uma corrente se precisar, porque se houver mais uma interferência dela perante a nós... — Miranda chega mais perto, os lábios encostando no lóbulo de sua orelha, o hálito quente e venenoso faz as estranhas de Alcina revirarem. — Você terá desejado que eu tivesse a empurrado do penhasco.

Miranda largou Alcina, e olhou para Becca uma última vez. Mesmo que houvesse uma aura maligna exaurindo das penas de corvo por sob os ombros da sacerdotisa, Becca não se abalou, devolvendo a mesma intensidade de remorso com um simples encarar. Como uma sombra, Miranda deixou o castelo, e finalmente, Becca se permitiu tombar contra o piso ensanguentado.

***

A escuridão se dissipou para um borrão azul-celeste, e Becca se comprometeu a fechar os olhos ligeiramente com o clarão solar. O vento farfalhou em seus cabelos, e seu corpo inteiro arde, uma sensação de estar sendo queimada viva. Becca sabia que não estava dentro do castelo, muito menos atirada no chão... Aqueles braços grandes e femininos estão a carregando para algum lugar. Alcina está voando com ela para algum lugar.

Novamente, Becca tentou abrir os olhos e decifrar onde elas estavam; picos de montanhas e alguns pinheiros fora o máximo que ela conseguiu distinguir com os borrões de sua visão. O rosto de Alcina está próximo do seu, e seus olhos... chorosos, e manchados. As rachaduras ainda estão transparecidas, e o vento secou suas lágrimas. Há raiva em seu olhar amarelado, por tudo o que Miranda fizera a elas no início da manhã.

Para onde estamos indo? O que vai acontecer comigo? Becca tentou perguntar, mas estava fraca demais até mesmo para abrir a boca. E, quando se esforçou, sentiu o gosto metálico do sangue em sua língua.

— Aguente, meu amor, estamos chegando. — Alcina sussurrou, percebendo que Becca estava consciente, embora fraca.

Elas despencam sob a montanha que continha uma cachoeira, e as asas de Alcina bateram poucos metros do chão, e enfim, elas aterrizaram numa espécie de jardim.

— Donna! — Alcina grita, avançando em direção a casa de sua irmã.

Além do som uivante do vento, Becca detectou os zumbidos das moscas das irmãs, e voltou a abrir os olhos para enxergar as meninas, uma terceira tentativa. Seu pescoço pareceu rasgar conforme sua cabeça vira para baixo, e um gemido agudo saiu de sua boca.

— Não faça esforço! — Alcina a reprimiu.

— Eu estou aqui, Becca! — Prudence se manifesta, ao lado esquerdo de Alcina.

A primeira figura surgiu para fora da casa, escancarando a porta, e fora Heisenberg — seu martelo pronto para um combate e bem firme na mão direita — . Atrás dele, Chris, Jill e Claire saíram armados. Os aparelhos de vigilância devem ter anunciado a chegada bruta de Alcina, e eles devem ter deduzido de que fosse uma ameaça.

— Caralho, trombadinha! — Karl arregala os olhos, abaixando o martelo.

Jill dispensou sua pistola e se inclinou para dentro da casa, chamando pela proprietária.

— Donna, precisamos de você!

Todos abriram espaço para a entrada de Alcina e suas filhas, e Donna desceu a escada e com Angie rodopiando sua cabeça. Chris agarrou Rose, os dedos grossos procurando por qualquer machucado nela.

— Aconteceu algo com você?! — Ele investiga.

— Eu estou bem, Chris. — Rose aperta suas mãos, expulsando o desespero dele.

— Alcina? Becca?! — Donna ergue a saia do vestido de veludo preto, descendo com mais agilidade.

— Donna, rápido, onde eu posso deixá-la?! — Alcina pergunta, procurando por qualquer mobília que parecesse macia e quente.

— Leve ela para o elevador. — Donna aponta para a segunda sala. — Eu irei tratar dos ferimentos no andar debaixo.

— Não é lá onde fica sua Oficina de Bonecas?! — "Não é lá onde você tortura os bastardos com alucinações e manequins trituradores?!", era o que Alcina queria ter dito, negando qualquer local imundo que poderia prejudicar o psicológico de Becca, e muito menos que as bonecas se divirtam com ela.

A maioria das criações de Donna eram inofensivas — embora carreguem objetos letais e possuem uma personalidade moralmente duvidosa —, mas há aquelas que conseguem escapar de seus domínios e agem por conta própria, e são friamente agressivas, mantidas celadas em alguns cômodos no porão da casa.

— É seguro. — Donna identifica os temores nos olhos de Alcina. — Minhas criações defeituosas estão aprisionadas.

A suavidade composta na voz de Donna acalmou os nervos sobressaltados de Alcina, e ela seguiu o caminho. Atravessou a segunda sala e entrou no corredor íngreme, suas cinco filhas e Donna logo atrás. Virou à esquerda e encontrou um elevador composto por portas de grades, não tão distinto do que ela tinha em seu castelo.

Donna apertou o botão redondo, acima de uma mesinha com um jarro de flores da campina, e as portas se abriram — rangendo pelas engrenagens enferrujadas —. Alcina percebeu que o elevador não é tão grande quanto o seu, e poderia não corresponder ao seu peso e acrescentando o de Becca junto.

— O elevador não irá suporta-la, Alcina. — Donna assente, como se pudesse ler os pensamentos agitados dela. — Uma das meninas desce comigo, e leva a Becca. Vou precisar de uma ajuda.

— Eu vou. — Cassandra se voluntaria, uma atitude que deixara sua mãe respectivamente grata. — Eu sou a mais forte, posso carrega-la.

— Eu quero ficar do lado da minha irmã! — Prudence exige, os olhos inchados e maçãs do rosto avermelhadas.

— Vocês duas podem vir. — Donna permite. — E peço para que as demais aguardem aqui. — Ela entra no elevador, esperando por Cassandra.

Como Alcina não havia se movido, rejeitando o fato de não poder estar ao lado de Becca — se odiando amargamente por não ter sua altura humana —, Cassandra se move para frente do elevador, e sua mãe abaixa a cabeça, percebendo o quanto estava absorvida com seus próprios arrependimentos para notar os braços de sua filha se esticando para alcançar Becca.

— Cuidaremos dela, mãe. — Cassandra não era muito de sorrir, mas seus lábios formaram um sorriso... pequeno, mas bastou para sua mãe confiar Becca a elas.

Cassandra sentia que estava carregando pedaços de um vaso quebrado nos braços, visto o quanto Becca arfava de dor com a pressão dos braços de Cassandra diretamente em seus cortes. Mas não havia outra maneira de segura-la, todos os lados de seu tronco estavam mutilados. Prudence entrou por último no elevador, e Donna apertou o botão para a descida.

Alcina caiu de joelhos, acompanhando as portas se fecharem e suas duas filhas e irmã sumirem para o andar particular da residência. Ela ainda não havia percebido seu vestido encharcado com o sangue de Becca, o vermelho reluzindo com o verde-esmeralda do tecido fino. Partes do que acontecera naquela manhã rondaram em sua mente, a torturando de novo, de novo, de novo... Até o momento em que Becca desmaiou no salão, parecendo um cadáver.

Mãos grossas apertam seu braço com gentileza. As mãos de Chris. Sua chegada fora tão silenciosa que Alcina não o percebeu.

— Alcina, vamos voltar para a sala. — A voz dele era calma e baixa. — Becca está em boas mãos.

Alcina persistiu ajoelhada, olhando para as portas fechadas do elevador, como se tentasse enxergar através dele, tentar ver o que estava acontecendo lá embaixo. A atitude que Becca tomara naquela manhã provou o quão longe sua bravura pode ir... O quão longe o amor dela pode alcançar além de seus limites humanos.

Alcina sabia o encerramento dessa história. Sabia muito bem o fim que as aguarda a espreita.

— Eu vou perdê-la. — Alcina sussurrou, a voz exausta. — Rebecca é capaz de tudo, até mesmo de dar a vida dela para salvar a minha. Eu, uma alma miserável condenada a eternidade. Eu não a mereço.

— Não diga isso, Alcina... — Chris aperta seu braço, mantendo a voz baixa.

— Eu não quero perdê-la, Chris. — Alcina olha para ele, os olhos marejando conforme a tremedeira em sua mandíbula. — Eu não quero perdê-la. Eu não quero... Se tiver alguém que precisará se sacrificar pelo resto de nós, eu o faço! Eu me sacrifico...!

— Alcina, me escuta! — Chris comanda. — Você está em choque pelo o que aconteceu, e não está pensando direito! Você precisa tratar os seus ferimentos agora, e eu preciso ter a certeza de que posso te ajudar, então me deixe fazer a minha função enquanto você me esclarece como tudo isso foi acontecer, certo?!

Os músculos dela relaxam. Chris tinha razão, o incidente afetou seu estado mental, embora, Alcinha tenha sido sincera quando dissera sobre seu sacrifício. Esclarecer tudo. Ela precisava contar sobre a revolta de Miranda, o incidente na última madrugada e... sobre a garotinha.

— Eu preciso que você me conte sobre a Eveline.

A mandíbula de Chris contraiu-se, sinalizando que ele havia cerrado os dentes com força ao ouvir aquele nome. Karl se inclinou para frente, ansioso por alguma resposta. Bela e Daniela apertaram as sobrancelhas, e Rose olhou de Chris para Alcina.

— Como descobriu sobre a Eveline? — Chris pergunta, sussurrando.

— Ela veio até mim. — Alcina responde, apressadamente.

— Quem diabos é Eveline? — Karl questiona.

Chris soltou um longo suspiro, e soltou o braço de Alcina. A cabeça dele fez um pequeno movimento em direção ao corredor, insinuando para segui-lo de volta a sala. Todos o seguiram, se reunindo no pequeno espaço rústico. Alcina sentou-se no sofá grande, com Rose a sua direita. Claire ficou em pé, cruzando os braços no encosto do móvel. Chris ocupou a poltrona de Donna, e Karl se acomodou no puff do lado oposto, perto da janela — onde ele pode ficar de olho no jardim e avisar qualquer ameaça antecipadamente —.

Antes dos esclarecimentos, Chris pediu os detalhes desde a madrugada, e Alcina contou tudo do que se lembrava. Contou da invasão de Eveline dentro de suas lembranças. Das provas que ela tivera de enfrentar e que quase a mataram, de novo. Do incidente na floresta com os licanos. E de Miranda a punindo por estar praticando com suas novas habilidades, e de como Becca a enfrentou para protegê-la das torturas.

Terminando, Alcina se silenciou, e todos estavam de olhos arregalados. Jill, que estivera na cozinha, chegou com uma xícara e um pirex, entregando para Alcina.

— Para te fortalecer. — Disse Jill. — Aprendemos muito com a Donna durante essas semanas de convivência. Ela pensou em tudo caso seus irmãos ou sobrinhas precisassem de forças.

— Eu posso te aprimorar, mãe. — Rose oferece.

— Não. — Alcina cobre a mão de sua filha, a impedindo de prosseguir. Rose entristeceu com a sua reação. — Me desculpe, querida, mas receio que suas habilidades estejam acelerando mais a minha... transição. Devemos evitar esse tipo de contato, por enquanto. — Alcina virou-se para Jill, aceitando a xícara. — Obrigada.

Chris pigarreou.

— Eveline... — Ele esperou Jill sentar no braço da poltrona, todos os olhares fixos nele. — Foi a arma biológica que infectou a família Becker. A BSAA foi a responsável por tirá-la das mãos de Miranda, e, por terem se interessado nela, eles recrutaram a Mia para levar Eveline á outra base nos USA. Entre tanto, Eveline se descontrolou e matou toda a tripulação do navio, e o acidente ocorreu em Louisiana. Mia sobreviveu porque Eveline a queria para ser sua mãe, e acabou a infectando com o mutamiceto.

— Por que nunca me deu esses detalhes sobre a minha mãe biológica? — Rose ficou boquiaberta.

— Não havia razão para dar esses detalhes, ao menos, até agora. — Chris continua. — Os Backers encontraram o navio encalhado perto da propriedade deles, e eles resgataram a Eveline e sua mãe. O que eles não contavam era que a garota iria escraviza-los com o mofo e criar uma "família" para ela. Quando Eveline se sentiu insatisfeita, necessitando de um pai, ela manipulou a Mia para entrar em contato com o Ethan e traze-lo para Louisiana. E foi assim que o pesadelo dos seus pais começaram.

— Mas espere, o Ethan não matou essa pirralha? — Karl questiona, uma das sobrancelhas arqueadas. — Como ela conseguiu entrar em contato com a Alcina?

— Eveline não foi criada com o Cadou, ela é fruto do próprio Megamiceto. Ela e Rose são similares em questão da genética. Alexandra uma vez me disse que o Megamiceto funciona como um banco de dados; ele guarda todas as consciências das pessoas que morrem perto dele, ou que foram feitas dele. É por isso que a Miranda sempre acreditou de que poderia reviver a Eva, pois o organismo tem a consciência da filha, e basta um hospedeiro para compacta-la.

— Sorte nossa que a Alcina ainda não teve a consciência da Eva transferida pra ela. — Karl suspira.

— Na verdade... — Alcina abaixa a cabeça, deixando a xícara apoiada nas coxas. — A transferência aconteceu.

Seus sentidos aguçados captou o exato momento em que todos prenderam a respiração, os corpos eretos e endurecidos da tensão que pairou pelo ar.

— Você... e a Eva...? — Chris tenta completar a pergunta, mas cada palavra parecia angustiante demais para proferir em voz alta.

Alcina balançou a cabeça, um sinal negativo.

— Não. Eu não sou a Eva. Por enquanto. — O efeito do chá com resquícios do mofo começam a curar Alcina, e sua cicatrizes somem, deixando sua pele de mármore intacta conforme seu esclarecimento. — Eveline me disse que, por eu ter atingido o núcleo do Megamiceto, o que fez a consciência da Eveline se fundir a minha, a de todos também estavam. Eu não considerei essa parte no momento devido à situação em que me encontrava, mas, analisando agora, a Eveline quis dizer que a consciência de todos os mortos se fundiram a mim.

Jill virou-se para Chris.

— Nathan havia dito que tudo o que o Megamiceto é e sente a Alcina também pode.

— Então é provável que a consciência da Eva já esteja com você. — Chris assente para Alcina, concordando com Jill.

— Eu posso senti-la, adormecida em algum lugar na minha consciência. — Alcina engole seco, prosseguindo. — Eva irá despertar com a cerimônia.

— Miranda. O Megamiceto. BSAA. E a pirralha da Eveline. — Karl conta com os dedos, nada satisfeito. — Quatro ameaças que querem nos foder, tem como ficar pior?

— Acrescenta o possível apocalipse. — Lembra Claire, irônica.

— O que seria da minha ansiedade sem você, Claire? — Karl sorriu de escárnio, esticando o mindinho. — Cinco.

— Eu já cuidei da Eveline. — Diz Alcina, a descartando. — Consegui erguer um escudo mental para mantê-la aprisionada, e dominei a prática das minhas habilidades psíquicas.

— A Blue Umbrella está do nosso lado, e eles tem uma parceria com a BSAA. Uma não pode agir sem a provação da outra. — Diz Chris. — Com a Alexandra sendo a chefe da corporação Umbrella, e a vice da BSAA, isso nos descarta como alvos deles, por tempo indeterminado. Mas já é uma vantagem. E o apocalipse só vai acontecer se a Miranda conseguir fazer a cerimônia.

— Legal. Isso alivia o nosso couro. — Karl se levanta, a expressão aliviada de qualquer preocupação. — Com três a menos já estamos a dez passos à frente da Miranda.

— Minha cerimônia foi agendada. — Alcina quebra o clima.

— Abafa tudo o que eu disse. — Karl volta a sentar, derrotado.

— Quando? — Pergunta Chris a Alcina.

— No solstício de verão.

— 20 de junho. — Diz Jill. — É quando ocorre o solstício aqui na Europa.

— E estamos em abril. — Claire continua. — Nós temos dois meses para impedir essa cerimônia.

O estalo pinicou na cabeça de Alcina, e ela percebeu que: fez cinco meses desde que ela retornara ao vilarejo, quando passou a trabalhar de empregada. Tudo aquilo aconteceu em cinco meses; a morte de Amélia; sua depressão no percorrer do mês de dezembro inteiro, e ela nem havia comemorado o natal com Chris e Rose; conhecera Rebecca no final do mês, na colheita, e vem suportando as torturas de Miranda, sendo estilhaçada até a alma... quebrada dia após dia por cinco meses!

— Vou informar a Alexandra, e assim o Scott pode preparar os homens para o combate. Dois meses é mais do que suficiente para nós, e vamos acabar com isso antes do solstício. — Chris pareceu confiante ao que dizia, ou ele se esforçava para não dizer o contrário, mas seus olhos de ônix falavam a mais. Alcina sorriu para ele, mesmo que haja aquele medo dentro de seus olhos, ela era agradecida por Chris sempre formar um otimismo mesmo quando tudo parecia estar perdido. — Nós vamos conseguir, nem que eu precise esmurrar o Scott para conseguir munição infinita.

— Meu herói. — Karl piscou os olhos e fez um biquinho, parecendo uma adolescente apaixonada.

Risadinhas descontraídas se distribuíram pela sala, sorrisos alegres e olhares tristes. Inesperadamente, um grito abafado soprou nos ouvidos de Alcina, e sua cabeça inclinou para baixo, os olhos arregalados contemplando o chão de madeira. O grito fora de Becca, e Alcina só soube imaginar no sofrimento dela em ter de aguentar a agulha cruzando sua pele mutilada enquanto Donna faz os pontos e usa suas soluções na limpeza das feridas.

Daniela foi perspicaz, e foi a primeira a perceber o comportamento alerta de Alcina.

— É a Becca, mãe?

Ter aqueles olhares ansiosos e preocupados, ao mesmo tempo em que seus ouvidos são corrompidos pelos gritos de sua donzela quilômetros abaixo, foram demais para Alcina.

— Preciso de ar puro. — Murmura Alcina, saindo da casa.

A brisa não fora o bastante. O sol escaldante e os sopros do vento contracenam juntos para sua enxaqueca. O sangue seco em seu vestido arrecadou tonturas em Alcina. Becca. Becca mea. Eu sinto muito, meu amor.

Um formigamento roeu a ponta de seus dedos, suas emoções estavam borbulhando a fonte de seus poderes. Logo, Alcina pensou em Margaret. E se Miranda voltasse?

Para verificar a segurança do castelo, de seu lar, Alcina caminhou até a árvore perto da saída da casa, alguns metros do elevador da montanha. Puxou um caule retorcido de um dos galhos ao seu alcance, o esticando para perto de si. Alcina fechou os olhos, distribuindo parte de sua consciência para a árvore.

Se eu sou tudo o que o Megamiceto é, então serei como ele. A sensação era de ser puxada, fio por fio, desfiada por camadas e se multiplicando por todas as raizes abaixo da terra. No subterrâneo do vilarejo. Através da conexão, Alcina monitorou os sons dos aldeões, se orientando por eles até encontrar o caminho do castelo. Era mais difícil quanto aprender a dirigir um carro, mas ela conseguiu se direcionar no caminho certo.

Sua consciência vagou pelas redondezas do castelo, vasculhando até as fronteiras. Alcina não sentira Miranda, e sua propriedade estava silenciosa. Bom...

Alcina?

A voz meiga e sussurrante de Donna era reconhecível, e Alcina virou-se para a irmã. Decifrou a confusão e, um breve pânico, surgindo nas feições de Donna. Ela ainda não tinha presenciado seus olhos esbranquiçados e as veias pulsando sangue prateado.

Ao soltar o caule, as mãos e olhos de Alcina recobraram ao normal.

— Eu estava fazendo a conexão. — Alcina percebe um pano úmido dentro das palmas de Donna. — Por precaução. Fiquei preocupada com Margaret e as empregadas. — Ela olha para as próprias mãos, o sangue seco de Becca fundiu-se as farelos do caule. — Eu estou pegando o jeito, ao menos, não perco o controle como antes.

Donna sorriu, se aproximando para entregar o tecido.

— Eu trouxe para você. — Alcina sorriu em resposta, limpando os dedos com facilidade. Donna encolheu os ombros, unindo as mãos abaixo do ventre. — Você está bem, Alcina?

— Eu tento parecer. — Alcina deu um sorriso sem graça. — E a Becca?

— Dei morfina a ela, e os ferimentos foram tratados. Ela está dormindo agora. — Donna assegurou. — Cassandra e Prudence estão cuidando dela. Eu subi para preparar algo que pudesse te fortalecer, e Jill me informou de que estava aqui, e que lhe deu o chá.

— Sorte minha não ter sido o Heisenberg. — Alcina sorriu de escárnio, e Donna a acompanhou. — E sorte a dele que você não o tenha pegado bisbilhotando seu estoque.

— Ele teria grandes problemas com as minhas bonecas.

Era raro testemunhar Donna sorrindo, ou se entretendo na companhia de outras pessoas e superando suas inseguranças. Oferecer sua casa como um abrigo, cuidando de uma parte de sua família e, de boa vontade — impulsionada pelo afeto e amor —, retornar ao vilarejo onde tivera sua alma violada pelo Cadou e Miranda a tratando como uma marionete, todo esse risco para salvar sua irmã. Alcina era grata por Donna. Honrada por tê-la como tia de suas filhas, e como a irmã que nunca tivera.

Visto o silêncio que residiu entre elas, Donna, pela primeira vez, tomou uma iniciativa:

— Gostaria de dar uma caminhada no outro jardim?

Um convite indispensável.

— Ar puro era o que eu precisava. — Alcina expõe suas asas.

Donna cruzou a montanha, usando o elevador. Alcina voou por cima, pousando nas extremidades do túmulo de Claudia Beneviento. Donna chegou instantes depois. O pólen dourado encobria as fronteiras, acumulado acima das árvores, parecendo um véu amarelado, ou tapeçarias esticadas sobre suas cabeças. Da névoa para dentro do jardim o oxigênio puro era conservado, podendo ser inalado sem sofrer as alucinações.

Alcina passou todos os assuntos discutidos na sala para Donna, ambas caminhando lado a lado, seguindo o corredor de arbustos secos e espinhos. O jardim se debruçava entre flores desbotadas e secas, daquelas que resistiram ao inverno e das que morreram com ele. Há dois pátios; um com uma pequena casa de madeira, um depósito para guardar os equipamentos de jardinagem, e um poço cujo balde se perdera em seu fundo de escuridão. O segundo pátio é restrito, com um portão de ferro o separando do resto do jardim.

Alcina e Donna seguiram para o pátio do poço.

— Por quanto tempo Becca ficará adormecida? — Pergunta Alcina.

— Vai depender dela. O corpo humano é diferente do nosso, mas acredito que a Becca vai superar. Ela é muito forte.

— Ela quer ser como nós. — Donna piscou, surpresa, para a irmã. Mas Alcina continuou olhando para frente. — Discutimos sobre isso ontem, e dei tempo para que ela pudesse refletir. Mas, depois do que Miranda fez hoje, me caiu a fixa. Mesmo com as caçadas, preparando o corpo dela para o confronto que nos aguarda, eu não vou suportar se tivermos que nos separar e Becca ficar sozinha. Não com Miranda a beira da loucura, licanos, mofados, e todos os tipos de soldados atirando as cegas e matando tudo o que veem pela frente... Então, eu vou considerar o pedido dela. Eu quero que ela seja como eu, eu quero Rebecca tendo a eternidade comigo, eu... — Eu quero dar o meu título a ela. Quero que seja para sempre.

Ela está certa do que quer?

Alcina encarou Donna, e seus pés desviaram levemente da trilha, esmagando um canteiro de cravos rosas. Abalada com o próprio desastre, Alcina soltou um gemido de frustração, embora Donna não parecesse arrasada por suas flores terem sido pisoteadas.

— Donna, eu sinto muito! — Alcina agachou-se, os dedos trêmulos roçando os cravos secos. Eles já aparentavam uma cor morta, entre tanto, as flores para Donna eram como os vasos para Alcina. Culpa e ódio socavam seu peito conforme seus dedos cruzam com as pétalas pisoteadas. — Minha cabeça não estava no lugar.

— Calma, Alcina. Elas já estavam mortas. — Donna murmura, olhando os cravos por cima dos ombros da irmã. — Eu não pude fazer muito por elas, eu tentei... mas não restou esperanças. Eu também perdi algumas tulipas pela falta de adubo quando abandonei minha casa.

— Meu jardim sofreu também, e quase não consegui restaura-lo. Se não fosse pelo Erick... — Restou a culpa no olhar de Alcina. — Este meu tamanho é um tormento na minha vida. Primeiro, é o elevador. Agora, foram os cravos.

— Não se odeio por isso, Alcina.

"Como não me odiar?", Alcina perguntou-se. Se arrependia amargamente por ter pedido a Miranda que a fizesse grandiosa. Ainda estava em luto, retalhada pela depressão, e se achava fraca. Agiu por impulso, pela vingança, para no fim, ela se comparar aos cravos; esmagada por dentro.

Alcina queria recuperá-los de alguma maneira. Imaginou Donna sorrindo por ter seus cravos reluzindo a luz do sol, desejando que sua cor fosse restaurada, a textura, os caules... Pólen cristalizado irradiou de seus dedos, e os cravos começaram a crescer diante delas, as pétalas espreguiçando num tom de rosa vibrante. Alcina mal conseguia absorver o que estava fazendo.

Os cravos estavam mortos — mortos — e brocharam com vida, exatamente da maneira que Alcina desejara.

— Como? — Donna ofegou.

Nem mesmo Alcina sabia. Ela imaginou. Desejou. E aconteceu. Aquela habilidade não viera dos Lordes, nenhum deles podia fazer vida. "Vida? Eu fiz vida?", Alcina indagou repetidas vezes. Nem Miranda tinha tal poder, então não poderia ter vindo dela, a não ser... O Cadou. O parasita criado a partir do mutamiceto, capaz de reerguer coisas mortas com o mofo governando seu ecossistema.

Tudo o que o Megamiceto é e sente a Alcina também pode. Fora o que Jill dissera na reunião, repassando as palavras de Nathan. O Megamiceto lhe dera esse poder. E se houver mais? Alcina sequer sentia alguma coisa, não coisas positivas no final das contas. Ela não reconhece mais o próprio corpo. O desconhecido habita dentro dela, e isso a faz estremecer friamente.

— Eu não consigo explicar, Donna. — Alcina diz, por fim. — Mas há algo despertando dentro de mim, e não é o dragão. E cada nova habilidade explorada só me faz ter mais medo de mim mesma.

***

A primeira coisa que incomodou Becca fora a luz amarelada esquentando seu rosto e ultrapassando a barreira de seus cílios grossos. Depois, o cheiro de analgésicos e substâncias nas quais ela não conseguiu identificar. O rosto dela contraiu-se com toda aquela iluminação acima dela, e com muito esforço, Becca abre os olhos. O lugar onde se encontra é novo.

Há pernas, cabeças e braços de bonecas, feitos de madeira, pendurados por ganchos na maior parte do teto rochoso. Todas as paredes são feitas de pedras, e o espaço é amplo, como uma oficina deveria ser. Pela superfície reta e dura abaixo dela, Becca reconheceu a longa mesa de madeira que serviu como maca, e há uma tecido fino roçando sua pele exposta — sem dúvida um lençol branco hospitalar —.

Becca se esforçou mais para conseguir olhar em volta, e não só sentiu todo o seu tronco enfaixado por ataduras como também gemeu com o choque ardente diretamente em seus pontos, e não se atreveu a repetir o movimento.

— Você é uma suicida.

Becca sorriu de escárnio, se sentindo aliviada por não estar sozinha, e, ao mesmo tempo se sentindo azarada por estar na companhia de Heisenberg num momento de vulnerabilidade.

— Tá, me diga algo que eu não saiba.

Karl riu baixo.

— Como sempre, você é uma pérola. — Karl se inclina na cadeira, apoiando os antebraços nas coxas, o sorriso desaparecendo para abrir espaço a um semblante seriamente preocupado. — Onde você estava com a cabeça de enfrentar a Miranda dessa maneira?

— Não foi você que me disse para ter fé em mim mesma? — A voz de Becca era rouca e baixa.

— Não desse jeito. Se oferecendo como uma gazela para um leão faminto, nem mesmo eu teria feito algo assim se estivesse no seu lugar.

— Eu fiz uma promessa, e não podia ficar parada enquanto a mulher que eu amo sofre por todos nós. Não vou permitir da Alcina se sobrecarregar por causa da Miranda, não mais. Eu suportei 50 chicotadas e vou suportar mais se for necessário.

— E eu não duvido disso. — Diz Karl suavemente. — Todos nós sabemos o quão longe você pode ir, principalmente a Alcina. Não sabe o quanto ela ficou apavorada depois que te deixou com a Donna.

— Alcina está bem? As meninas, minha irmã, como elas estão?!

— Relaxa, elas estão bem agora. — Karl garante, e se levanta. — Vou buscar uma água para você.

Ele entrou em uma segunda sala ao lado, e Becca ouviu o barulho de uma torneira e um copo sendo preenchido pela água corrente. Segundos depois, Karl retorna. Becca apoiou-se com os cotovelos, e Karl pressionou sua nuca para poupa-la de muito esforço. Quando finalmente sentou-se na mesa, dominando o copo e empurrando a água de uma só vez em sua garganta seca, Becca conseguiu vislumbrar os arredores da oficina de Donna.

Na frente dela há uma porta dupla, uma das entradas e saídas da sala, e há um forno de pedra a suas costas, com uma chaleira de metal e mais um piano velho e empoeirado. Do seu lado esquerdo, há uma estante rústica com potes e membros de bonecas de porcelana em fase de produção. Uma mesa de madeira, com uma máquina de escrever antiga, um pote com itens de costura e uma lamparina preenchiam aquele lado da sala. Aquele espaço deveria ser onde Donna costura as roupas de suas bonecas. Também tem um corredor que deveria dar para algum lugar mais reservado e fora do alcance de Becca.

Na parede a direita, há uma cômoda sem gavetas e com um rádio dos anos 70 como único item exposto nela e baldes empilhados ao lado. E sem mencionar a outra sala, que Becca supôs ser um tipo de cozinha.

— Macabro, né. — Karl comenta, acompanhando os olhares curiosos de Becca pelo local. — Eu nem sequer imagino o que Donna aprontava com os aldeões que vandalizavam a propriedade dela.

— Que parte da casa é essa?

— Um andar abaixo da casa, mais privado. É a minha primeira vez aqui também. Perambulei pelos cômodos enquanto você estava inconsciente, e acredite, se você acha esse lugar assustador precisa ver o poço.

— Quanto tempo eu fiquei aqui embaixo?

— Praticamente a manhã toda, Donna deve estar fazendo o almoço agora. — Karl vira de costas, as mãos se dobrando na borda da mesa. Ele vira a cabeça para fitar Becca. — Cassandra e Prudence ficaram com você, ajudando Donna com o necessário para te limpar. O restante de nós ficamos lá em cima, discutindo sobre o que aconteceu essa manhã e na madrugada. Depois, eu vim aqui para me oferecer a ficar de olho em você, assim a Cassandra e a Prudence poderiam passar um tempo com a Alcina e as irmãs.

— Eu quero sair daqui. — Becca faz menção de por suas pernas para fora da mesa.

As mãos de Heisenberg interferem na sua tentativa, a mantendo no mesmo lugar.

— Paciência, trombadinha. Você não pode sair andando assim.

— Tá, me carregue. — Diz Becca, quase como uma ordem.

Karl arqueia uma das sobrancelhas.

— Acha que sou seu lacaio? Sabe, um por favor seria mais educado, e eu me sentiria honrado.

— Me carregue agora, por favor.

Karl estrala a língua.

— Tão meiga. — Ele se inclina, os braços musculosos espremendo suas pernas e servindo de apoio a sua coluna.

— Você gosta de ser o pau mandado, confesse. — Becca encolhe os ombros, soltando alguns resmungos com a ardência.

— Principalmente vindo de lindas lenhadoras temperamentais que jogam um machado contra você como um convite para o primeiro encontro. — Karl provoca, seguindo calmamente pelos corredores com papéis de parede desbotados e até mesmo rasgados. — Acho que esse é o primeiro contato mais íntimo que temos, pele com pele. Diga-me, eu sou tão quente e tentador quanto pareço? — Ele lança aquele sorriso cafajeste.

— Você parece um porco arrogante.

— Carne de porco é a mais macia e suculenta.

— Acho que eu prefiro ir andando.

Karl gargalhou suavemente, e Becca o acompanhou com uma risada rouca. O Lorde era um cafajeste, arrogante e egocêntrico, mas era considerado o melhor amigo que Becca poderia ter — e obviamente ela nunca dirá isso a ele por adorar sua rivalidade —.

Antes de virarem o corredor que dava acesso ao elevador, passaram por uma porta com letras metálicas soletrando depósito, e os passos de Karl despertaram as criações que estão contidas do outro lado. Arranhões, batidas e gemidos se manifestaram, e Becca sobressaltou pelo leve susto.

Deixe-nos sair. Deixe-nos desfiar sua pele e remoer seus olhos. Vozes finas e cadavéricas sussurravam atrás da porta. Os arranhões eram metálicos, causados por variadas lâminas; tesouras, facas, canivetes, quem sabe?

— O que tem ali dentro? — Becca sussurrou a Karl.

— Morte imediata. — Karl segue o caminho, arrepiado com os múrmuros das bonecas celadas. — São as criações da Donna que não deram certo. Ela mantém as bonecas que não consegue controlar aprisionadas aqui embaixo.

Eles adentram o elevador, aliviados por saírem do subsolo. Não havia ninguém dentro da casa, exceto Donna fazendo o almoço, e o cheiro de molho de tomate, tempero verde, peixe e queijo contagiaram as narinas de Becca, lhe deixando salivando. Karl carregou Becca para um quarto de hóspedes no primeiro andar, o cômodo possuía uma cama extensa com um armário de duas portas e uma cômoda entre a cama e a janela defronte a cachoeira. O som das cascatas servia como uma trilha sonora relaxante.

Becca agradeceu por Heisenberg ter todo o cuidado de ajusta-la na cama, apalpando os travesseiros e os encaixando em sua cabeça.

— Eu vou chamar a Alcina.

— Obrigada. — Becca agradece uma segunda vez.

Karl acenou com a cabeça, e saiu. Becca fechou os olhos, aproveitando os sons da cachoeira para esvaziar sua mente e aliviar a tensão em seus músculos. A temporal esquerda de seu olho está latejando, a mesma região que Becca recebera a última chicotada. Ela gesticulou que deve haver pontos em sua cabeça, mas não se aprofundou em sua análise mental, não quando os sons dos sapatos de bico fino se aproximaram do seu quarto.

Becca continuou de olhos fechados, reconhecendo o perfume requintado de sua senhora, pairando pelo ar. Cada passo de Alcina era um ranger grogue do piso de madeira, e em seguida, Becca ouviu o tecido do vestido pesar no chão ao lado da cama. Uma mão grande, fria e macia deslizou abaixo de sua palma aberta, ficando inerte ao toque.

Em resposta, Becca entrelaçou seus dedos, os apertando com força. Uma rápida memória veio a tona; da vez em que Becca cuidara de Alcina, na noite em que ela perdeu a consciência no túmulo de suas filhas, e então, Margaret e Becca tiveram a ajuda das outras empregadas para levar Alcina aos aposentos. Naquela mesma noite, enquanto Alcina estava inconsciente, Becca havia comparado o tamanho de suas mãos, obtendo uma reação involuntária da condessa. Seus dedos se entrelaçaram, exatamente como estavam agora.

— Isso me soa familiar. — Alcina ronrona.

Um sorriso irradiou na face de Becca. Saber que Alcina tivera o mesmo pensamento, e lembrava disso, fora uma evidência de que parte dela estava consciente naquela noite.

— Então, você sabia. — Becca abriu os olhos, alívio e alegria transbordam em suas íris por ver a pele de Alcina lisa e sem nenhuma rachadura, sentada no chão sem dar a mínima para a poeira. — Sabia que era eu, e por isso apertou minha mão?

— Eu estava meio acordada e meio dormindo. Não tinha certeza do que era sonho ou realidade, mas, algo em mim não queria estar sozinha de qualquer jeito. Então me agarrei ao primeiro calor que senti em meus dedos, e, soube que era você. Sonho ou não, para mim não importava se você era fruto de alguma alucinação minha, só queria que você ficasse ali... Que não fosse embora do castelo.

— Eu ia embora. Pretendia fugir com a Prudence. — Confessa Becca. Alcina desvia o olhar para suas mãos. — Pareceu incerto pra mim. Havia tantas coisas inexplicáveis, ataques sem sentidos e... Havia você, uma condessa solitária, partida e prisioneira da própria escuridão. Meu senso de justiça é o que aflora minha teimosia, e foi o que me fez ficar... Voltar para você. Essa foi a melhor decisão que eu poderia ter tomado, a qual jamais me arrependi. Da mesma forma que não me arrependo do que fiz hoje.

Alcina olhou para Becca.

— Você podia ter morrido.

— Miranda não quer me matar, ao menos, ainda. Seria fácil demais. Ela quer me ver implorar, e me ver sofrer. Ela cospe e pisa em mim por desprezar minha mortalidade, e acha que eu não vou aguentar. Mas a verdade, é que eu sou mais imprevisível do que ela imagina. Ela terá que fazer muito mais do que umas chibatadas para me derrubar.

— E eu acredito em suas palavras. — Alcina assente. — O que você fez hoje pela nossa família, me fez abrir mais a minha mente e a... reconsiderar seu desejo.

— Como assim? — Os latejos em seu olho incapacitaram Becca de raciocinar as entrelinhas.

— Sua imortalidade. — Até mesmo a cachoeira pareceu se silenciar com o pronunciamento da palavra "imortalidade". — Se esse ainda for o seu maior desejo, então assim será. O Cadou pode transformar seu corpo num escudo impenetrável; sua pele será restaurada em segundos; habilidades serão manifestadas; sua alma... eterna. Como a minha. Sem dor. Sem sofrimento.

Os olhos de Becca umedecem. Parecia ser algo impossível por parecer tão maravilhoso; não sentir mais dor.

— Faria mesmo isso por mim?

Alcina sorriu, inclinando-se em direção ao seu rosto, lhe beijando as lágrimas que transbordaram silenciosamente.

— Eu cometeria as sanções mais extremas da humanidade por você, draga.

Elas sorriram uma para a outra. A imortalidade pode ser a única solução, Becca presumiu. Sua resistência será maior, e poderá se igualar a Alcina, vivendo ao seu lado, a amando imensamente pelos próximos milênios. Mas, isso exige um sacrifício: sua humanidade.

Por Alcina. Pela família delas, Becca abandonará seu espírito mortal; por Alcina, pelas meninas, por amor, ela destruirá suas fraquezas humanas e renascerá como a mais nova filha do Cadou. Por sua família, ela venderá sua humanidade.

— Eu amaria ter a eternidade ao seu lado.

Alcina respondeu com um beijo suave em sua boca, compartilhando o gosto salgado das lágrimas. Por fim, Alcina se distanciou a poucos milímetros, as mãos ainda entrelaçadas.

— Depois do almoço, pedirei a Donna para fazer uma coleta do seu sangue.

— Ainda dá tempo de tirar um cochilo antes do almoço?

— É claro, draga mea. — Alcina beija seus dedos uma segunda vez. — E quando você acordar, estarei bem aqui.

— Cante para mim. — Becca já estava se rendendo a sonolência.

— Para todo o sempre.

A cama pareceu transformar-se numa nuvem, levando Becca aos céus, onde os anjos cantam e tocam seus violinos celestiais. Alcina equilibra suas cordas vocais em uma baixa ópera, suave e melodiosa. Enquanto a exaustão aprofundava Becca cada vez mais para seus sonhos, ela imaginou Alcina no palco, como Miss D. Seria uma honra vê-la se apresentando um dia, como em seus tempos quando ainda era humana...

Não mais humana. Imortal. Aquela palavra começou a ecoar dentro de sua mente, mas Becca não soube interpretar como algo bom ou ruim. E estava exausta demais para reavaliar sua decisão, deixando que a ópera de Alcina a atinge-se.

Mesmo que Becca já estivesse submersa em seus sonhos, Alcina continuou cantarolando a ópera de Morgana, desenhando ondas nos dedos de Becca com o polegar. Chegando no anelar, Alcina mediu a circunferência do dedo, e sua mente projetou um anel de noivado. Um sorriso bobo emergiu em sua face com aquele pensamento... Será que estava cedo demais? Tarde demais? Uma coisa era certa, e a própria Alcina concordara consigo mesma, que Becca ficará avassaladoramente bela com um anel forjado de diamantes.

Quando ela acordou, Alcina ainda segurava em sua mão.

***

Depois do almoço, Donna coletou uma amostra do seu sangue — preenchendo um tubo siliconado de 10 ml —, e Chris se encarregou de levar o recipiente a Alexandra durante a madrugada. Feito a coleta, Becca voltou a dormir. Acordou com uma sensação de cócegas na curva do pescoço, a despertando preguiçosamente. O sol da tarde estava morno, e seus raios colidem contra as cascatas da cachoeira, formando um arco-íris.

Prudence cochilava ao seu lado, e seus cachos eram a causa de suas cócegas.

— Prue?

A cabeça de Prue sobressaltou do travesseiro como um gato assustado, os olhos esbugalhados e pupilas dilatando para se adequar ao reflexo do arco-íris salpicando seus olhos de café.

— Becca. — O sorriso de Prue fora o medicamente essencial para a disposição de Becca e impulsiona-la a ter vontade de sair da cama. — Achei que jamais te veria acordada hoje.

Becca não havia almoçado na mesa. Donna preparou uma bandeja com um prato cheio da sua receita italiana, chamada de ravioli, e um copo com água. Alcina lhe serviu na cama. Nenhuma das irmãs tivera acesso ao quarto — um pedido de sua mãe, visto a exaustão de Becca —, e cientes do descanso que ela precisaria ter, as irmãs foram se distrair no jardim, e Karl tomou conta do resto.

— Sinto muito por ser tão preguiçosa. — Becca deu um meio sorriso, apenas para descontrair. — É bom te ver, Prue.

— Fiquei preocupada, achei que algo mais grave havia acontecido com você.

— Por que acharia isso?

— Eu soube que a tia Benevinento coletou seu sangue, e a Alcina alegou que era apenas por precaução. — Prue senta na cama, cruzando as pernas. — Não é nada sério, é?

— Não... Não exatamente. — Merda, eu não sei como contar a ela. Becca lambe os lábios, desconsiderando aquele momento para contar a Prue sobre sua escolha de tornar-se imortal. — Mais tarde falamos sobre isso, e não se preocupe... — Becca se antecipa quando Prue abriu os lábios para contradizer. — Não é grave. — Prue voltou a fechar a boca. — E as meninas?

— No jardim. Cavalgando. — Prue arregala os olhos, como se tivesse esquecido de algo extremamente importante. — Você ainda não viu ele! — O semblante confuso de Becca só aumentou com o entusiasmo de sua irmã. — Você precisa ver! Consegue levantar da cama?!

— Eu acho que sim.

— Vem! Vem!

Seja lá o que deixara Prue tão entusiasmada, Becca apenas seguiu a corrente do mar e conseguiu sair da cama, tendo a empolgação de sua irmã como suas muletas. Becca tentava andar devagar, mesmo que Prue estivesse apertando sua mão e dando pulinhos durante o percurso até a saída.

Finalmente, Becca entendeu a agitação de Prue ao sair da casa. Havia muitas informações; Alcina estava conectada ao caule de uma árvore próxima a subida da montanha, raizes se enroscaram em seus dedos afim de lhe passar informações, sussurrando exclusivamente para ela através da ligação. Bela, entre suas duas irmãs, assistiam o manuseio de Karl para com a criatura mecânica galopando ao redor dele.

Lá estava, a mais bela criação de Lorde Heisenberg. Armagedom.

O Corcel de Aço, tão escuro quanto uma sombra, palpava a grama com seus cascos de ferro, registrando uma trilha no formato de um círculo em torno de Karl. Rose era seu cavaleiro, guiando Armagedom com as rédeas de couro conforme as orientações de Heisenberg. O Corcel era inteiramente de aço, sua caixa tórax estava desnuda, revelando as engrenagens que simulavam seus pulmões e coração de lata. Os cabelos do mamífero metálico foram feitos com cabos elétricos, assim como sua extensa calda. E seus olhos ofuscantes eram lâmpadas amarelas. Um adorno dourado era sustentado em sua cabeça por algum imã, e a peça fizera Becca recordar-se de onde reconhecia aquele design. O cavalo fora inspirado no livro Vilarejo das Sombras — um dos primeiros livros que Prudence tivera na infância —.

Donna estava acomodada em sua cadeira de balanço no deck, uma de suas bonecas vitorianas tagarelava em seu colo, enquanto as mãos ágeis da Lorde costurava a manga bufante de seu vestido. Cada degrau da entrada do deck foram ocupados pelo trio de Chris, bebericando seus copos com água e cubos de gelo boiando na superfície.

— Cabeça entre os ombros, Rose. — Orienta Karl. — Alinhada com o quadril. — Rose se endireita, ficando na posição correta. — Isso, está indo bem. — Karl virou a cabeça na direção da casa, percebendo Becca. — Você está viva!

Todo mundo virou a cabeça na direção dela, e até mesmo Alcina cortou a ligação com o caule para ir ao seu encontro. Os outros sorriram por vê-la em pé.

— Como você está? — Bela pergunta, suas irmãs a seguindo até a subida da escada.

— Melhorando. — Becca responde com um sorriso.

Cassandra, exibindo uma expressão solene, lançou um pequeno sorriso por vê-la de pé. Dava para notar um triunfo em seus olhos dourados. Daniela sorria abertamente, e Rose descera do cavalo para se juntar aos outros.

— Draga, você está muito exposta. — Alcina diz. — Evite o sol, por favor.

— Tenho alguns vestidos que possam servir. — Donna se levanta, e a boneca vitoriana voa para o jardim, unindo-se aos seus outros amigos de porcelana. — Vou buscar um.

Os outros observaram a saída de Donna, voltando-se para Becca em seguida, e quando Armagedom relinchou — um ronco selvagem e robótico, como se Heisenberg tivesse gravado os sons de um cavalo de verdade e posto a fita em sua saída de ar —, todos fixaram no Corcel. Vapor quente saiu de suas narinas, como a chaminé de um trem.

— Então esse é o seu alazão? — Becca sorriu, fascinada.

— Uma belezura, né?! — Karl limpa as mãos de graxa em suas calças. — O que acha de uma voltinha com ele?

— Não! — Alcina intervém.

— Deixa de ser chata, mulher!

— Acha mesmo que deixarei Becca, no estado em que ela está, subir nessa coisa selvagem?!

— Selvagem? Armagedom é a criatura mais dócil que existe. — Karl estala um tapa no traseiro do Corcel.

Armagedom emitiu um guincho, dando um coice poderoso em Heisenberg. Chris se engasgou, cuspindo água até pelo nariz. Jill e Claire ficaram boquiabertas.

— Tio Karl! — Bela e Cassandra berraram juntas.

Prudence cravou suas unhas em Becca, assustada com o golpe certeiro. E, é claro... Alcina, por outro lado, pareceu estar recitando uma meditação silenciosa para não rir do irmão. O rosto etéreo congelado de qualquer linha de expressão, e os lábios — com muito, muito esforço — tentavam não revelar os dentes perfeitamente alinhados.

Karl não levantou do chão, imóvel como um corpo desolado.

— Tio Karl morreu? — Daniela pergunta, os olhos arregalados.

Alcina desejava que sim. Mas ela não diria em voz alta. Quanto a Armagedom, ele relinchou e passara a limpar os cascos na grama. Karl continuou no chão.

— É melhor alguém ver ele. — Indicou Rose, espremendo os olhos para enxergar além do seu campo de visão.

Chris inspirou, apoiando as mãos nos joelhos ao levantar-se para socorrer Karl. Armagedom parecia calmo, e sequer demonstrou interesse nos dois homens ao seu lado, como se dar aquele coice em Heisnebeg tivesse relaxado seus nervos. Chris checou seus pulsos abaixo da mandíbula, e estavam estáveis.

— Ele tá vivo. — Chris anunciou.

A devastação no rosto de Alcina não passou despercebido por Becca. Chris joga Karl por sobre os ombros, o carregando como se fosse um saco de batatas.

— Eu disse pra ele que era uma má ideia. — Chris resmungou, entrando na casa.

As cinco irmãs se olharam, os mesmos pensamentos se interligado através do silêncio, e risos baixinhos começaram a sair como sopros em seus lábios, até se tornarem em gargalhadas altas. Gargalhadas com um levo peso na consciência, mas que fora impossível de segurar, e elas pediriam desculpas ao tio assim que ele acordasse.

Momentos depois, Donna voltou com um de seus vestidos pretos e acompanhou Becca para o quarto de hóspedes. Suas ataduras foram trocadas por novas, as mãos gentis de Donna pareciam seda de tão suaves — quase mal davam para serem sentidas —. Além da precaução da Lorde, cada vez que ela precisava tratar das regiões consideradas mais íntimas de Becca, Donna pedia sua permissão para prosseguir.

O vestido preto cobria do pescoço aos pés, com mangas longas e justas, e botões que desciam até seu umbigo. Não tinha espartilho, dando a Becca uma oportunidade de mover-se mais livremente, e o tecido pareceu se ajustar as curvas de seu corpo e musculatura dos braços. Donna fez um coque simples em seu cabelo, deixando algumas madeixas livres na nuca. Becca se sentiu parte dos Beneviento com aquele novo estilo, e agradeceu Donna por sua gentileza e cuidados.

Becca ficou esperando Alcina no jardim, contemplando a vista dos morros que encobriam a residência. Alcina tivera mais uma conversa com Chris, referente a sua viajem para a cidade, e depois precisou convencer Rose de ficar com Donna ao invés de voltar com elas. Rose suplicou para ficar com suas irmãs e perto da mãe, até mesmo Daniela tentou convencer Alcina e suas irmãs entraram no debate. Não adiantou os beiços e os rostos tristes, Alcina se recusou a mudar de ideia. Rose não pisaria no castelo até que as coisas normalizassem.

Becca fora arrastada de seus devaneios quando uma nuvem de vapor colidiu em sua cicatriz, sendo Armagedom. O cavalo examinou a ferida em seu rosto — um semicírculo, marcando da ponta da sobrancelha até abaixo do olho, o formato lembrando a fase da lua minguante —, e não parecia ameaçador. Estava mais para curioso, permanecendo calmo conforme fitava Becca com aqueles globos dourados e cintilantes.

— É um prazer te conhecer também. — Becca acariciou seu focinho de metal, liso e gelado. — Não deixe Alcina te ver tão perto de mim, ou ela te amassa como uma lata de cerveja.

Armagedom roncou em desaprovação, soltando uma fumaça morna na bochecha de Becca antes de caminhar para o outro lado do jardim. A criatura era esperta, e parecia compreender os humanos, além de ter vida própria. Heisenberg acertou em cheio ao criá-lo, tão certeiro quanto o coice que recebera mais cedo. Minutos depois, Alcina veio ao seu encontro, e Prudence seria carregada por Daniela.

— Vamos para casa. — Disse Alcina, se inclinando para envolver suas mãos nas coxas de Becca, evitando a área das ataduras.

Becca se agarrou em seu pescoço, descansando o queixo em sua curvatura, um ângulo perfeito para deslumbrar as asas de membrana se esticarem em suas costas. Brancas como neve, e grandiosas como as de um dragão. Assim que Alcina se impulsionou em direção ao céu, suas filhas se uniram em uma neblina de moscas, fundindo Prudence a elas. Voaram por dentro de uma corrente de vento logo acima dos pinheiros, chegando mais rápido ao castelo.

Margaret estava organizando as papeladas de mais cedo, as mesmas deixadas por Alcina antes da chegada de Miranda, e avistara a chegada da família pela extensa janela ao lado da mesa. Correu como se sua vida dependesse daquele reencontro, e, quando encontrou-se com Becca, os olhos âmbares lacrimejaram com sua recepção.

Não fora preciso nenhuma troca de palavras. Margaret abraçou Becca, assistidas por toda a família. Willow e Penélope surgiram da Sala de Jantar, como se tivessem aguardado ali o dia inteiro o retorno de sua melhor amiga. Por uma fração de segundos, Willow correspondeu o olhar de Bela antes de voltar-se para o abraço entre Becca e Margaret.

— Nunca mais faça isso. — Margaret exigiu, pousando as mãos nos ombros de Becca para fixar em seus olhos. — Diga que não fará isso outra vez. — Becca não disse, e ela não ousaria. Aquela foi a primeira promessa na qual ela não se encarregará de cumprir. — Me prometa, Rebecca!

Becca vislumbrou a atadura presa com duas fitas no rosto de Margaret, escondendo a ferida que Miranda causara a ela. Não, não irei me acovardar e deixar que mais inocentes se machuquem.

— Não posso. — É tudo o que Becca tinha para lhe dizer.

Não existe medo em seu olhar, e Becca nunca temeu o mundo. Um olhar de um verdadeiro lobo. Ali estava a sua essência.

— Vá para o quarto. — Margaret ordena, não sendo ranzinza ou grossa. Apenas desejava que Becca ficasse segura e se preparasse para a futura tempestade. — Vou levar chá e algumas vitaminas para o seu corpo.

Becca acenou com a cabeça, indo para o aposento depois do Saguão dos Quatro. Agora que o quarto principal de Alcina havia sido destruído com o ocorrido da noite passada, elas passarão as futuras noites em seu segundo aposento, mais reservado e distante dos outros cômodos. Alcina permaneceu em silêncio, e saiu para os corredores do jardim central. Sua pretenção era chegar às catacumbas, o lar das moroaicas, e onde a fortuna de sua família é mantida por séculos.

Enquanto três das irmãs seguiram com Becca, e Penélope fora convocada por Margaret até a cozinha, restou Willow e Bela no salão.

— Onde vocês a levaram? — Will perguntou, a voz baixinha como o miado de um filhote de gato.

— A uma conhecida curandeira. — Bela respondeu, mantendo o sigilo de seus tios Lordes. — Fizeram o necessário para a Margaret?

— Sim, Lady Bela.

— E... Você está bem?

Cócegas geladas roçaram o estômago de Willow. Como asas de borboletas.

— S-Sim, Lady Bela. Obrigada... Pela preocupação.

— Eu que agradeço. — Bela disse, apressadamente. Willow ruborizou imediatamente, e Bela precisou acrescentar algo a mais para não parecer desesperada com aquele novo sentimento aflorando em suas entranhas. — Pelos cuidados que tivera com minha governanta.

Um sorriso meigo formou-se na face de Willow. Fora algo legítimo, vindo do coração, e contagioso, ao ponto de fazer Bela sorrir de volta. Quando elas se deram conta do que estava acontecendo, Willow pediu licença, lhe fazendo uma reverência, e se retirou do salão. O rosto vermelho como uma cereja. Bela ficou ali, sorrindo para os cabelos ruivos presos em um coque de tranças até que estes desaparecessem do salão.

Com a chegada da noite, Alcina passou grande parte do seu tempo encarando a bolsa de moedas no centro da mesa. As costas eretas na poltrona, mãos dobras sobre os joelhos, como uma dama deveria exercer — como Connor havia a ensinado, por meios de punições e castigos com a bengala —. Fazia três minutos desde que chamara Cassandra, pedindo para que a própria mandasse um recado a Margaret.

Ao completar quatro minutos, a governanta entrou no escritório.

— Lady Cassandra disse que gostaria de conversar comigo. — Margaret informou.

Alcina assentiu com a cabeça, e encaixou a bolsa na palma de sua mão.

— É seu. — Assim que Margaret pegou a bolsa, com as sobrancelhas franzidas, Alcina continuou. — Eu somei o tempo em que a senhora trabalhou dentro do castelo, e acrescentei mais um pouco. Acredito que seja o suficiente para a sua aposentadoria.

Margaret precisou tirar seus óculos, incrédula com as moedas de ouro misturadas com pedras de rubis, diamantes e safiras. Embora estivesse segurando uma parte da fortuna Dimitrescu, Margaret não se alegrou, muito menos queria acreditar no que ouviu e vira.

— A senhora está me dispensando?

Era difícil até mesmo para Alcina, mas ela se recusaria em manter Margaret por mais um dia naquele castelo, não depois do que Miranda fizera.

— Você fez muito por nós, Margaret. Fez até demais, e minhas palavras jamais serão o suficiente para demonstrar toda a minha gratidão por sua lealdade a minha família. — Alcina se levantou, engolindo seco, impedindo a formação das lágrimas com as pálpebras, piscando freneticamente. — Mas chegou a hora de dizer adeus. Você merece algo melhor, uma vida tranquila e longe de todo esse conflito. Essa fortuna é sua, e com ela pode recomeçar fora do vilarejo. A partir de agora, eu me responsabilizo pelo castelo e por todas as garotas. Você está livre.

Um absurdo. Margaret considerou um extremo absurdo, e não aceitaria aquela pilha de riquezas. Ouros e diamantes não podem substituir o amor que ela construiu ao lado daquela família.

— Eu recuso. — Margaret devolve a bolsa a mesa. — Eu não partirei deste castelo.

— Não é um pedido, Margaret. É uma ordem. — Alcina eleva a voz, precisando ser rígida para forçar Margaret a deixar o castelo. — Pegue a fortuna e vá para casa. O Erick pode fornecer fechaduras mais resistentes, e você pode reformar a sua casa para ser mais segura. Mas você precisa partir...

— Eu não irei! — Margaret ergue a cabeça, fixando seus olhares. — A não ser que a senhora me agarre a força e me arraste até os portões, eu não irei deixar este castelo e abandonar as meninas!

— Margaret...!

— A senhora me pôs neste castelo por confiar em mim, e por minha lealdade não ser frágil! Eu aceitei me arriscar quando me contou a verdade sobre Miranda e estou ciente do perigo que presencio todos os dias neste castelo, e vou arriscar! — Uma gota cintilante, como uma pequena estrela cadente, deslizou pela face de Alcina sem sua permissão. — Não estou arriscando minha vida por ser uma tola, mas por quê acredito que nosso dia de glória chegará, e quero estar aqui quando este dia acontecer.

— O que Miranda fez a você hoje é só o começo. Com a minha cerimônia marcada, e a guerra chegando, qualquer um que interferir não será poupado.

— Prefiro morrer como uma governanta que cumpriu com sua função do que como uma covarde que deixou criadas, filhas e uma mãe para trás. — Margaret permaneceu inexpressiva, demonstrando seu afeto nas palavras e nos olhos marejados por trás dos óculos redondos. — Não deixarei o castelo, não até que minha função seja concluída. Não até ver a senhora cumprindo sua missão de trazer prosperidade para este vilarejo como você nos prometeu. Você nunca desistiu de nós. E eu também não vou desistir.

Movida por sua fé, Alcina contornou a mesa e se ajoelhou aos pés de Margaret. As mãos espalmadas no chão, e a cabeça curvada para baixo, permitindo de suas lágrimas pinicarem o piso de mogno.

— Eu fracassei hoje. — Alcina confessa, e um ferimento rompeu em seu peito. Uma sensação dilacerante de fracasso a esmagava. — Não fui capaz de impedir Miranda, e por minha causa a senhora e Rebecca pagaram um preço muito alto. Me perdoe, Margaret. Me perdoe. Me perdoe...

Mãos enrugadas seguraram seu rosto, levantando sua cabeça para que os olhos de Alcina encontrassem os de Margaret. O queixo da condessa estava numa linha reta de seu ventre, e Margaret, com um semblante pacífico e acolhedor, sussurrou para Alcina:

— Não me dê lamentos. Me dê a esperança. — Fé irradiou nos olhos da governanta. — Enquanto você persistir a esperança prevalecerá. Miranda uma vez pode ter te considerado um fracasso, mas eu não. Você não é um fracasso para mim, e quando houver uma chance, nem que seja mínima, de mandar Miranda ir para o quinto dos infernos eu direi com muito orgulho.

Houve épocas que Alcina fora privada do seu direito de sentir emoções, e se ousasse a derramar uma única gota de lágrima seria humilhada na frente das empregadas. Ela crescera engolindo o choro, confinada de seus sentimentos, e quebrada pedaço por pedaço nas mãos do próprio pai e por Mãe Miranda. Mas com Margaret era diferente; Alcina podia chorar, gritar, se espernear, e jamais seria impedida de agir como uma humana. E Alcina precisava desabar naquele momento, para que sua dor fosse expelida.

Margaret lhe abraçou, servindo sua barriga como aconchego para seu rosto, e as mãos se ocuparam em acariciar seus cachos. Não demorou para Alcina corresponder seu abraço e a enlaçasse contra ela, não restando nenhum espaço entre os corpos. Margaret não dissera mais nada, e ficaria naquele escritório — esperando o tempo que fosse necessário —, até que todo o ambiente estivesse silenciado.

Até que a última lágrima fosse derramada.

***

Por sete dias Becca ficara confinada no castelo. Nos primeiros três dias, foram gemidos agonizantes, insônia pela ardência em todo o corpo — e não importasse as várias tentativas de mudar a posição menos aflitiva, Becca era torturada com aflição noite após noite —, e não havia mais morfina para aliviá-la. Uma febre a atormentou certa manhã, e Alcina não saíra de seu lado por nenhum segundo. A condessa estivera tratando da sua cicatrização, e fora rigorosa com as empregadas sobre como deveriam tratar de sua recuperação e como preparar sua alimentação.

No quinto dia, não havia mais riscos dos ferimentos infeccionarem. Embora na sexta noite Becca tenha conseguido dormir, e que ela tenha alegado milhares de vezes que não sentia mais seu corpo queimando, Alcina proibiu sua saída do castelo. Nem mesmo o jardim podia ser frequentado.

Becca sentiu-se sufocada, andando em círculos pelos corredores e arranjando meios para despistar Alcina e conseguir ao menos uma hora para ter privacidade. Se trancou na biblioteca para estudar o romeno, e certo momento tivera vontade de arrancar as páginas e engoli-las. Willow e Penélope observavam Becca a distância, pois quando tiveram a primeira experiência de presenciar sua amiga de mau-humor — um fenômeno que, de acordo com elas, era pior do que um licano rugindo —, preferiram não intervir em seu isolamento por medo de levarem uma mordida.

Alcina pareceu acreditar na mesma hipótese, e pedira conselhos a Prudence sobre o que deveria fazer com Becca naquela tarde. "A tendência é piorar, acredite. Deixa ela sair para se entreter com o machado por um dia, e ela retornará como uma santa.", fora o argumento de Prue. E Alcina decidiu aderir.

Então, no sétimo dia, Becca pôde esticar as pernas pela floresta e as três irmãs seriam suas sentinelas. Prudence ficara no castelo para ter suas aulas de violino e piano com Alcina. Duas horas fora o exigido para Becca andar livremente no vilarejo, nem um minuto a mais. Era melhor do que nada.

As atitudes rigorosas de Alcina eram justificáveis, e Becca sabia disso, e não a odiava por mantê-la trancafiada durante a semana inteira. Sabia que Alcina fez por amor, para protegê-la dos olhares ou ataques imprudentes de Miranda. Quando Margaret lhe serviu o café da manhã, dois dias atrás, ela havia comentado sobre o que acontecera no escritório de Alcina, uma conversa que seria mantida somente entre elas. Dali em diante, cada passo a ser avançado precisaria ser cautelosamente calculado.

Becca levou as irmãs para conhecerem a área de treinamento perto do riacho. Há meses ela não frequentava a região, e, ao chegar, encontrou os alvos que construiu com seu suor completamente consumidos pela natureza. Caules e folhas se formaram por suas extensões, e a grama estava alta. Havia três das flechas de Prudence em um dos alvos pendurados em uma das árvores. Abandonadas. Esquecidas. Deixadas nas mãos da mãe natureza como o resto do campo de treinamento.

Em uma outra oportunidade, Becca irá restaurar a essência daquele lugar e trazer Prudence para treinar com a besta. Como nos velhos tempos.

As meninas revisaram os ensinamentos de combate corpo a corpo, e começaram a praticar com Becca. As caçadas foram adiadas, mas Alcina não havia mencionado nada sobre duelos. Conforme Becca enfrentava Cassandra, machado e foice raspando a todo instante, ela percebeu o quanto era boa por ser canhota, no entanto... o lado direito era um problema. Devido a essa excessão infeliz, Becca perdeu para Cassandra todas as vezes em que precisou usar seu lado destro.

Lutou com Daniela em seguida. A caçula podia agir como uma adolescente recém formada e "imatura" quando estava com suas irmãs, mas, quando o assunto se tratava de combate, seja por diversão ou proteger sua mãe e irmãs, Daniela era uma assassina habilidosa. Ela era rápida e tinha um bom raciocínio e uma visão surpreendente.

Na vez de Bela, algo anormal aconteceu.

— Parem. — Cassandra farejou a brisa. — Estou sentindo cheiro de sangue.

Becca olhou para as próprias roupas. Não havia nenhuma mancha vermelha. Bela concentrou-se para ouvir a floresta, a audição se expandindo a quilômetros.

— Ouço rosnados, e rugidos. — Bela decifra. — São licanos. Devem estar a 2 quilômetros daqui.

— Voltamos para o castelo? — Indaga Daniela.

— Se há sangue há feridos. — Becca empunhou o machado. — Podem precisar de ajuda. Não vou voltar antes de conferir.

Becca saltou floresta adentro, e as irmãs voaram por cima dela, as moscas manobrando as árvores e criando uma densa nuvem como escudo ao redor de Becca. Adiante, um licano peludo e de meia idade cercava sua presa. A criatura estava de costas, seu corpo colossal e braços grandes que poderiam quebrar um pescoço usando apenas a força bruta. Ele cobria sua vítima com seu tamanho e não percebeu a chegada do quarteto.

Preparada para o confronto, Becca arremessa o machado em suas costas. O licano rugiu ferozmente, espantando os pássaros de seus ninhos, e o machado permaneceu cravado em suas costas. As moscas das irmãs se espalharam, e a criatura virou-se para Becca, correndo abruptamente em sua direção.

Cassandra se materializou primeiro, e antes do licano estar meio metro de Becca, sua foice fatiou a jugular. A criatura caiu, se contorcendo enquanto morria lentamente. Assim que seu corpo tivera o último espasmo, Becca apoiou seu pé esquerdo para aprisionar o corpo ao chão e separar o machado da carne, e, quando sua cabeça levantou para procurar a vítima ficara desconcertada em descobrir que não era um humano, mas um lobo.

O animal, de pelugem castanho-avermelhado, cujos olhos eram de um verde-água que nunca vira antes, emitia sons de aflição por sua pata traseira — a da esquerda — estar sangrando e com uma parte de sua carne comida. Cortes de garras, feitas pelo licano, rasgaram boa parte de suas costas e focinho. Uma amostra da batalha que houvera entre eles.

— O licano estava caçando. — Diz Cassandra. — Ele está morrendo aos poucos.

Por mais que Becca já tivesse matado lobos antes, aquele caso era diferente. O animal estava sofrendo, e ele não deixava de ser uma carne a mais para o almoço. Seria desperdício de comida, e um ato desumano esperar que o lobo morresse lentamente.

— Sei o que fazer. — Becca avança. Eu acabarei com o sofrimento dele.

Um golpe no pescoço, e pronto. O machado já estava acima de sua cabeça, ambas as mãos empunhando seu cabo. Becca olha nos olhos verdes do lobo, e por um instante, ela identificou um pedido silencioso dele. Tinha quase certeza de que o lobo queria dizer por favor, e seus olhos — pelos Eminentes —, pareciam ser humanos...

— Becca. — Bela aperta seu ombro.

Becca ouviu Daniela soltar um suspiro doloroso, e as três olhavam para uma toca destruída a poucos metros delas. Três filhotes as encaravam de volta. Assustados e tremendo. O lobo... não era um macho, era uma fêmea. A mãe brigou com o licano para proteger seus filhotes. E Becca quase a matou na frente de suas crias.

Aquele pedido que a loba estava tentando pronunciar não era somente por favor, mas algo como "por favor, salve meus filhotes.".

O filhote do lado esquerdo é preto como carvão, os olhos âmbares, como as folhas de outono. O filhote do meio, branco como algodão, nasceu com heterocromia. O olho direito era âmbar, como o do irmão, e o direito um lindo azul. E o filhote do lado direito, tinha a pelugem cinzenta, com par de olhos azuis, como as frutinhas de mirtilo.

— Eram quatro. — Cassandra se aproxima da toca, enxergando o quarto filhote escondido atrás de seus irmãos. Ela farejou, sentindo o cheiro da morte. — O outro está morto. O licano conseguiu pega-lo.

— Oh, não. — Daniela suspira.

— O que faremos com todos eles? — Bela pergunta a Becca.

As patas da lobo estremeceram, o sangue manchando o verde vibrante da grama. Os filhotes uivam em sofrimento. Becca encarou os olhos esmeraldas da mãe loba, sentindo uma conexão inexplicável com ela, e um aperto de pena pressionou seu peito. Não posso fazer isso. Deve haver uma esperança para eles.

Becca abaixou o machado, usando a lâmina para rasgar a bainha de sua blusa afim de amordaçar a loba.

— O que vai fazer? — Cassandra pergunta.

— Acho que podemos salvá-la. — Becca se aproxima com cuidado, agachando-se perto de seu focinho. — Vamos levá-la para o castelo, junto dos filhotes, podemos usar os curativos e alimentá-la até que não esteja mais com risco de vida.

— A mãe vai matar a gente. — Alerta Bela.

— Eu me entendo com a Alcina depois. — Becca contornou o pano rasgado no focinho, fazendo um nó para que a loba não tente mordê-la. Por estar fraca o animal nem se esforçou para se defender. — Cada uma leva um filhote.

— O preto é meu! — Daniela correu até o lobo escolhido.

— A gente não vai ficar com eles. — Cassandra pega o filhote cinzento.

— E se a gente pedir com jeitinho pra mãe? — Daniela embrulha seu filhote nos braços, que pelo tamanho parecia ter apenas um mês. — Eles são muito fofos.

— Eles são lobos. Vão crescer e devorar tudo o que verem pela frente.

Bela pegou o filhote branco, ficando hipnotizada pelos olhos coloridos da fêmea. Somente o preto era um macho. Becca jogou a mãe loba por cima dos ombros, o machado preso no suporte em sua cintura. Sentiu seus ombros arderem com o peso roscando suas cicatrizes, mas era algo suportável.

Bela ficou para trás, e cavou um buraco com a foice para enterrar o filhote morto — de pelugem marrom —, e cobriu o túmulo improvisado com folhas.

O castelo ficava a meia hora dali, e Becca sentira seus joelhos estralarem a cada passo impulsionado pela dor em carregar a loba. Cruzando a praça da donzela, os aldeões olharam boquiabertos com o quarteto carregando uma família de lobos para dentro do castelo.

Por estar na frente, Becca chutou as portas de entrada e acelerou pelos corredores em direção à cozinha. A longa mesa serviria para tratar do animal, e os filhotes poderiam se alimentar. Alyssa e Mila estavam na cozinha quando Becca invadiu, ambas gritaram de pavor.

— Becca, ficou louca?! — Berrou Mila.

— Usaremos a cozinha agora, estão dispensadas. — Becca ordena. As empregadas não se mexeram por estarem espantadas. — Saíam! — Becca exige, mais ríspida. Alyssa e Mila praticamente fogem da cozinha. — Cassandra, tire tudo da mesa.

Daniela recebeu o segundo filhote da irmã, e enquanto Cassandra liberava a mesa para Becca, Bela preparou um cesto grande como cama para os três filhotes abaixo do forno de pedra, o espaço vazio pela falta de lenha.

— Preciso que você busque o que tivermos para o ferimento. — Becca pede a Cassandra.

Antes mesmo de Cassandra dar qualquer passo, as portas se abrem agressivamente. Alcina esticou seu corpo ao adentrar a cozinha, os olhos afiados percorrendo das filhas até a loba ensanguentada a mesa. Becca respirou fundo, desenrolando os nós para liberar o focinho.

— O que significa isso?! — A voz elevada de Alcina comprovou seu enfurecimento.

— Um licano atacou ela. — Becca apoiou as mãos á mesa, esticando as costas e sem desviar da loba. — Eu não podia matar ela na frente dos filhotes.

Alcina ergueu a cabeça, encontrando os filhotes grunhindo dentro do cesto. As sobrancelhas arqueadas deixara mais implícito o aborrecimento de Alcina em ter um animal selvagem dentro de seu castelo — não um, mas quatro —. E saber que Becca havia carregado eles até ali fez sua cabeça girar por tal risco.

— É a natureza deles, Rebecca. — As pernas de Becca estremeceram por ouvir seu nome completo ser proferido naquele tom de voz. — Onde estava com a cabeça para trazê-los até aqui?!

— Ela é mãe! — Becca olha para Alcina. — Ela lutou para proteger as crias, e eu quero ajudá-la! Só me deixe tratar do ferimento, por favor. Eu limpo tudo depois.

— Rebecca...

— Olhe pra ela, Alcina! — Becca voltou-se para o ferimento, retornando a encarar a condessa instantes depois. — Ela está morrendo! Me ajude a salvá-la, por favor!

Alcina encarou a loba. E então, tudo pareceu paralisar. Era como se o tempo tivesse congelado, e somente Alcina e a loba permanecessem ilesas. Aquela pelugem, lhe era tão familiar. Um castanho que, em contato com a iluminação solar reluzindo pela janela aberta, se tornavam um ruivo acobreado. Os olhos esverdeados, selvagens e ao mesmo tempo, puros e... humanos. Alcina já os vira antes.

Não... Não pode ser.

Um redemoinho de emoções girou em seu peito conforme Alcina se aproximava da loba, atraída por seu olhar esverdeado. O próprio animal a encarava com a mesma intensidade, respirando lentamente, e o coração batendo fraco. Seu aborrecimento condensou diante da loba, parando defronte a perna mordida.

— Alcina, por favor. — Becca murmurou, temendo que a condessa usasse as garras para eliminar o animal, acabando de vez com o seu sofrimento.

Pareceu que aconteceria justamente essa atitude nobre quando Alcina ergueu sua mão, apenas para retirar sua luva de renda e sustentar seus dedos a centímetros do ferimento. Alcina desejou que cada tecido fosse restaurado, que o sangue se sustentasse nas veias e a carne mutilada se regenerasse — assim como ela desejara que as flores de Donna aflorassem com vida —. Névoa cristalina disparou de seus dedos, e as veias de seu pulso cintilaram naquela cor prateada exuberante. E, por um momento, Alcina podia jurar ter visto a aura de Pyetra se formar dentro da loba... sumindo num piscar sem deixar rastros.

Cada ferimento fora restaurado. E a loba fora salva. Não precisou de curativos ou toalhas úmidas, bastou as habilidades de cura que Alcina despertara no jardim de Donna.

Becca suspirou, e um sorriso de agradecimento e fascínio se repuxou em seu rosto. Suas filhas também sorriam após testemunhar outra das novas habilidades de sua mãe.

— Ela ficará bem. — Diz Alcina, desviando da pata restaurada para os olhos da loba. — Poderá viver livre.

— Podemos ficar com ela e com os filhotes? — Pergunta Daniela.

Bela e Cassandra pareciam querer o mesmo.

— Obviamente que não. — Alcina rejeita. — Eles pertencem a floresta. Dêem comida a eles, e depois os libertam na região sul.

Alcina olhou para a loba uma última vez. Os globos de esmeraldas lhe diziam obrigada. Aquele redemoinho rodopiou com mais agressivamente em seu estômago, e Alcina deixou a cozinha para inalar o ar puro no jardim central. Daniela não queria se despedir dos filhotes, e suas irmãs trocaram olhares entristecidos.

— Eu vou tentar convencê-la. — Diz Becca, conseguindo propagar um pequeno sorriso das três.

Seguiu de encontro a Alcina, chegando em silêncio para perto dela. Éden e Gemma aparavam alguns arbustos, usando aventais de jardinagem, e estavam distantes do pequeno quiosque onde ficava as três estátuas de donzelas. Alcina encarava os detalhes de mármore, embora sua mente vagasse a milhões de distância da estátua.

Os dedos de Becca entrelaçaram os de sua mão desnuda. Alcina não se moveu, e não virou a cabeça. Mas correspondeu o aperto.

— Ainda está brava comigo? — Becca perguntou.

— Não. E sinto muito pela maneira que a tratei. — grunhiu Alcina, a voz suave e vazia.

— Algo está mexendo com você, eu sinto isso. — Becca analisou seus dedos tensos lhe apertando.

Alcina inspirou fundo, e desceu seu olhar para as mãos em união.

— Acredita em vida após a morte?

Becca franziu a testa, pensativa.

— Acho que sim, talvez. Por que?

— Aquela loba... — O lábio superior de Alcina contraiu. — Ela me lembrou alguém. Da mesma maneira que Margaret me lembra Narcisa. Fiquei me perguntando: é realmente possível que possamos ter outras vidas além desta?

— Bem... você está aqui, não está? — Becca analisou. — Você recebeu essa segunda chance. E, se há algo em que eu mais acredito é no destino. Graças a ele, nós nos encontramos. O destino pode ter traçado o meu caminho com o daquela loba também, quem sabe?

— Não podemos ficar com os lobos.

— Lobos são familiares, e as meninas se apegaram a eles. — Alcina não respondeu, e Becca interpretou como outra reposta negativa. — Ao menos deixe os lobos passaram uma noite no castelo, e amanhã cedo eu os devolvo para a floresta. As meninas poderão ter tempo para se despedirem e alimenta-los.

Alcina expirou, rendendo-se ao olhar para a súplica nos olhos de Becca. O biquinho também a convenceu.

Uma noite.

Becca sorriu em triunfo. Uma noite era tudo do que ela precisava para arquitetar seu plano mirabolante para conseguir a adoção dos filhotes. As irmãs não desgrudaram dos lobos pelo resto do dia, e Alcina precisou dar boas explicações a Margaret depois que descobrira sobre os lobos. Ás 9 horas da noite, as empregadas e Margaret havia muito adormecidas. Alcina passara das 10 horas no escritório, e se recolheu por fim, indo revistar suas filhas conforme caminhava pelos corredores escuros, carregando um candelabro dourado de três braços com velas acesas.

Cada uma delas dormia com um filhote em cima da cama; Bela ficara com a fêmea albina, dormindo em seus pés; Cassandra dominou a fêmea cinzenta, que dormia e rosnava, as patinhas estremecendo como se estivesse correndo dentro de seu sono; Daniela, não se via seu rosto, o macho escuro roncava em cima dela. Era uma bola de pelos muito engraçadinha. Os roncos, não se sabia se eram do filhote ou de Daniela. Pode ser de ambos. E onde estaria a mãe?

Alcina seguiu para o seus aposentos no andar debaixo, passando pelo Saguão dos Quatro. Deixou o candelabro na mesinha da entrada, e adentrou. A lareira crepitante aquecia o ambiente, e a mãe loba dormia profundamente no tapete perto das chamas. Becca a esperava na cama, seminua, usando uma calcinha rendada quase transparente.

— Pensei em deixá-la dormir conosco, por ser mais quentinho. — Becca olhou para a loba, retornando a Alcina. — Tudo bem?

Alcina lhe dera um sorriso doce.

— Claro, meu amor.

Seu corpo necessitava daquela cama, e seus calos gritavam por liberdade. Alcina dispensou os sapatos, e o vestido por último. Permaneceu com sua peça íntima em renda e a cinta-liga preta, e engatinhou para perto de Becca. O colchão afundou diretamente abaixo dela, e a cama rangeu assim que Alcina envolvera seus corpos. Becca suspirou com os enormes seios se esmagando em suas costas, e um dos braços espalmando sua barriga, enquanto o outro lhe serve como um travesseiro.

Alcina beijou as cicatrizes de seu ombro, subindo para o pescoço e se demorando ali para se ludibriar com seu cheiro.

— As meninas estão dormindo com os filhotes. — O hálito quente de Alcina ricocheteou a nuca de Becca.

— E?

— Eu não vou conseguir dizer não a elas.

— Você quer que eu diga? — Becca torcia que não.

— Não. — Alcina a puxa para mais perto. — Os filhotes são delas agora.

Becca urrou de alegria por dentro, ansiosa em contar a novidade para as meninas na hora do café da manhã.

— Precisamos pensar nos nomes.

— Draga... podemos pensar nisso só amanhã? — Alcina pede, entorpecida pela sonolência.

O rosto da condessa mergulhou nas cascatas douradas, os dedos acariciando o ventre de Becca vagarosamente na medida em que adormece. Entre a calmaria, segurança e glória, Becca passou seus dedos entre os de Alcina por cima de seu umbigo, os alinhando.

— Te amo mortalmente. — Becca sussurrou, adormecendo instantaneamente.


*******

Um agradecimento para @ s2 Dedico este capítulo a essa leitora que, conseguiu dar os primeiros passos para a sua primeira história, e eu estou mais feliz ainda por eu ter servido de inspiração para o seu novo início. Estou feliz demais por vc! ❤️

Um agradecimento também a _YooParkJeongYeon_, por ter me dado a ideia da tempestade. Ela se encaixou perfeitamente com o cenário que eu havia planejado para o avanço das habilidades da Alci, e pôr uma tempestade com raios explodindo para todos os lados não poderiam ter ficado melhor <3

Tbm estou feliz por aqueles que recém encontraram a fanfic, estão passando por um momento difícil, se identificaram, e que agora conseguiram encontrar refúgio e a força para seguirem em frente (como nossas guerreiras Alcina e Rebecca). Eu acredito em vcs, e obgg por desabafarem, e mais feliz ainda por tê-los vistos se animando com o decorrer da fanfic <3

Gatinhos? Cachorrinhos? Nem mesmo um hamster? Nananinanão, eu quero LOBOS! Vai ter filhote de lobo correndo pelo castelo sim, e a Margaret q ponha na conta da Alcina depois ahahahahaha

Certa vez me perguntaram: quando que Alcina Dimitrescu e Rebecca Walker terão sua primeira dança?
E eu finalmente posso responder:... Até o próximo capítulo. 😉

Continue Reading

You'll Also Like

634 59 10
Sucy fez uma poção mas não queria beber, pois se qualquer coisinha desse errado teria pesados efeitos colaterais. Com medo disso acontecer decidiu t...
866 90 7
luz uma capitã pirata resolver navegar os mares das sereias até que no meio do caminho desses mares ela se apaixona pela sereia Amity e quebra sua ma...
284K 13.6K 64
• Onde Luíza Wiser acaba se envolvendo com os jogadores do seu time do coração. • Onde Richard Ríos se apaixona pela menina que acabou esbarrando e...
772 108 9
Dois anos depois do fim da V.I.L.E Júlia Argent não esperava que as coisas fossem desandar tanto. Carmen Sandiego quase nunca era vista, mas Júlia a...