- 𝘼𝙉𝙏𝘼𝙍𝙀𝙎; (𝘮𝘪𝘯𝘴𝘶...

By godhannie

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AVISOS
Prólogo | I can't forgive and I can't forget
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LIVRO FÍSICO CONFIRMADO
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AGRADECIMENTOS + LIVRO FÍSICO
PRÉ-VENDA ABERTA!!!!!!!

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By godhannie

Seis meses depois.
Hong Kong, China.
10:37

— Senhor Lee? 

Não. De novo não.

— Senhor Lee, com licença – ouço os passos dele chegando mais perto e já começo a revirar os olhos.

Levanto a cabeça com preguiça e minha visão fica turva pela tontura. Não devia ter bebido tanto assim, se meu pai sentisse o cheiro de álcool vindo de mim ia me xingar de novo e de novo como ele vem fazendo nos últimos tempos. Tem sido um inferno.

— Senhor Lee? Você está bem? – ele me olha mais de perto e ergue as sobrancelhas.

Eu não consigo ser grosso com ele como o meu pai é com todos os seus funcionários. Mesmo quando eu estou irritado, mal humorado, bêbado ou chorando por odiar minha vida, eu não consigo descontar isso em alguém tão simpático como Wong Hendery.

É claro que ele também pode ser chato. Com seu andar de passos curtos, óculos redondos, voz aguda e demasiadamente educado, Hendery consegue me tirar do sério às vezes, mas de todos os defeitos que eu tenho, não sou igual meu pai. Não vou me sentir superior tratando outra pessoa mal.

— O que foi? – respondo sem muita vontade enquanto uso meu pé pra arrastar a lata de cerveja pra debaixo da mesa.

— Precisamos urgente marcar uma reunião com o setor financeiro, eles estão com alguns probleminhas que o senhor Chinhae pediu pra você resolver.

— Eu? – levantei as sobrancelhas.

Todos os dias são assim. Problemas e problemas sendo colocados na minha mesa, papéis com palavras que eu nunca sequer vi em toda a minha vida e não faço ideia do que significa. Não sei como meu pai quer que eu resolva problemas da empresa se eu nem se quer sei como resolver os problemas da minha própria vida. Eu fracassei na faculdade, fracassei no amor, e provavelmente vou fracassar no trabalho também. Qual o sentido disso tudo? Beber parece muito mais interessante.

— Sim, senhor – respondeu Hendery.

— Diga ao meu pai que eu não faço a menor ideia do que fazer ou o que falar. Pronto, resolvido – voltei a abaixar a cabeça e me deitar na mesa.

— Mas senhor... – ele diz com a voz aguda e nervosa outra vez – Não posso dizer isso ao senhor Chinhae, ele ficaria muito, muito bravo.

— Então mande outra pessoa fazer a reunião no meu lugar. Eu não me importo, Hendery – revirei os olhos.

— Somente os administradores da TWU podem resolver isso, senhor – ele diz em pânico – Precisamos solucionar todas as pendências. A empresa está em suas mãos desde que o senhor Chinhae precisou viajar, ele ordenou que você fosse a única pessoa responsável por orientar a corporação.

— Escuta, Hendery – me virei pra olha-lo um pouco irritado – Eu não dou a mínima, tá bom? O CEO é o meu pai, não eu. Infelizmente não posso fazer nada – sorri irônico, sem muita paciência. Não quero ser mal educado com ele, mas realmente não há nada que eu possa fazer.

— Senhor, eu...

— Não se preocupe – eu o interrompo – Sei que está fazendo seu trabalho, eu é quem não quero fazer o meu. Não vou prejudicar seu emprego, relaxa.

Ele me olhou ainda preocupado e apreensivo, apertando uma pasta contra o peito e torcendo os lábios. Não sei o que mais ele espera de mim.

— Eu queria poder ajudar você, senhor Lee. Sei o quanto o senhor Chinhae é exigente, não quero vê-lo em problemas. Eu gosto do senhor.

— Eu também gosto de você, Hendery – lhe dou um sorriso – Mas isso é problema meu, não precisa se preocupar. Estou acostumado com o meu pai, ele é do mesmo jeito desde que eu nasci. – dei de ombros.

— É... – ele riu fraco – Tudo bem, então. Se precisar de ajuda com alguma coisa estou a disposição.

— Obrigado.

Ele se curvou e se despediu educadamente, em seguida saiu da sala finalmente me deixando sozinho. Peguei a lata de cerveja do chão e dei outro gole, o álcool agora é tão familiar que eu nem consigo mais ficar bêbado com tanta facilidade. Preciso buscar outra forma de conseguir me manter de pé, mas vem ficando mais difícil a cada dia que passa.

Desde que meu pai me deu uma segunda chance, o que deveria ser bom, agora é horrível. Eu não queria estar aqui, não queria voltar pra China e pra tudo que eu passei minha vida inteira tentando fugir, mas eu não tive escolha. Depois do julgamento foi como se tudo voltasse a ser como era antes, mas muito antes da minha independência e de tudo que conquistei sem a ajuda dos meus pais. Voltei a ser quem odiei ter sido, trabalhando no que odeio, dependendo de pais que não gostam de mim de verdade, e buscando redescobrir quem eu sou longe de tudo.

Não tem sido fácil, mas eu nunca imaginei que seria. Depois que fui absolvido, senti o alívio e a falsa sensação de liberdade, até que a euforia passou e as correntes da família Lee me prenderam outra vez. Eu não tinha pra onde ir, a mídia me cercava por todos os lados na Coréia, e não havia mais nada que me segurasse lá. Sei que meus pais também não me queriam aqui, mas dessa vez não briguei com Gahyeon quando suspeitei que ela tivesse convencido meu pai de me deixar vir pra China. Minha vida seria difícil em qualquer lugar que eu estivesse, afinal de contas, não tem como fugir de quem eu sou e quem eu fui.

Não podia ficar em Seul, as lembranças daquela casa iam me matar aos poucos. Gahyeon também precisava de um espaço, sofreu calada por muito tempo e precisava respirar. Dessa vez, a China não parecia ser uma opção tão ruim, apesar de não ser a melhor. Nossos pais ainda eram os mesmos e nós não esperávamos nenhuma mudança, mas saber disso era um pouco decepcionante. Nossas raízes são dolorosas, e voltar pra elas depois de tanto tempo longe é como jogar fora todo o nosso progresso.

— Droga! – minha visão dói quando vejo a quantidade de papéis na minha mesa. Queria poder fugir disso tudo também, mas viver fugindo tem sido muito desgastante, e confesso que até tentei me adaptar aqui, mas não consegui.

Meu pai é muito exigente com tudo, me trata com arrogância e cobra de mim coisas que eu realmente não sei fazer. Não terminei a faculdade, ele disse que ia ma matricular na universidade da China assim que voltasse de viagem, e que por enquanto eu devia testar meus conhecimentos na empresa, mas ele esqueceu que eu não tenho conhecimento nenhum.

Eu até tentei aprender no começo, busquei por tudo que ele me pediu e tentei me concentrar pra fazer meu trabalho direito. Levei horas e me dediquei fielmente, mas quando meu pai viu não foi capaz de dar nenhum elogio sequer e ainda por cima reclamou e me mandou refazer. Sinceramente, eu já estou velho demais pra lidar com ele, e não tenho mais forças pra tentar agrada-lo.

Desde então, eu desisti, e a única pessoa que ainda tenta me fazer continuar tentando tem sido Hendery, nem Gahyeon me apoia com isso, pois ela sabe que meu sonho nunca foi trabalhar nessa empresa. Desde que saí da Coreia venho tentando arranjar um novo rumo pra minha vida, não faz mais sentido escrever depois de tudo que aconteceu, e eu guardei meu livro no fundo de uma gaveta jurando nunca mais fazer isso de novo. Venho tentando buscar outras coisas que me interessam, mas meu pai nunca me deixa respirar pra tentar me encontrar outra vez. Tem sido difícil, e me sinto tão perdido e confuso que na maioria dos dias eu acabo me rendendo a bebida. É a única coisa que me distrai de tantos problemas e dúvidas, e dessa dor que por mais que eu esteja tentando curar, ainda me faz chorar às vezes.

— Blá blá blá, quanta bobeira – jogo os papéis pra longe e deito a cabeça na mesa completamente cansado de ler isso tudo. Sei que preciso dar um jeito na minha vida logo, preciso urgentemente juntar meus pedaços e me reconstruir, conquistar novas coisas e buscar independência dos meus pais outra vez, mas parece que agora as garras da família Lee me seguram com mais força.

Não posso ficar aqui o dia todo, com as pessoas esperando que eu seja quem eles precisam, e no momento eu não posso ser ninguém. Hoje, em vez de me embebedar o dia todo como venho fazendo nos últimos tempos, decido comer alguma coisa e voltar pra casa pra aproveitar que meu pai não está lá pra me encher.

Depois de esconder as latas de cerveja no lixo, peguei meu celular e o carregador e finalmente saí daquela maldita sala. Pelos corredores da empresa vi como os funcionários me olham, todos sorrindo e se curvando respeitosamente, pois acho que no fundo eles sentem medo que eu seja arrogante igual ao meu pai.

Cumprimentei todos com respeito, mas percebi que alguns me olharam torto como se estivessem indignados com a minha incapacidade profissional, ou ainda se lembrem das notícias nos jornais falando sobre minha acusação. Eu não me importo, eles estão certos se me acharem incompetente. Não desejo o mal para a empresa, mas se insistirem em me deixar no comando, a TWU vai falir mais rápido do que eles imaginam.

Entrei no elevador pra ir até a cafeteria, e antes que as portas fechassem uma mulher entrou no mesmo elevador que eu. Ela sorriu me cumprimentando, tinha os cabelos ruivos e os olhos arredondados. A maioria das pessoas aqui parecem muito simpáticas, o que é muito contraditório já que o requisito de contratação do meu pai é a arrogância.

— Bom dia, senhor Lee – ela falou em mandarim.

— Bom dia – respondi no mesmo idioma já que fiz muitas aulas quando era mais novo, e o tempo que morei na China me fez fluente.

— Está gostando da TWU? O CEO fez questão que nos preparassemos pra te receber.

— Gostando? – eu levantei as sobrancelhas pensando se era uma boa ideia expressar minha verdadeira opinião. Não sei se ela é uma pessoa legal ou está apenas fazendo seu trabalho, eu particularmente odeio essa linha tênue que separa relações pessoais de vida profissional. – Bom, eu... Eu estou gostando sim, só não está sendo como eu... Como eu gostaria que fosse.

A porta do elevador se abriu, assim que eu saí a mulher me seguiu segurando uma pasta preta na mão enquanto ajeitava a gola de seu casaco social.

— Tem alguma coisa te incomodando, senhor? Você pode me dizer que tomarei providências.

Eu não entendo porque ela continua falando desse jeito, como se eu fosse dono da empresa e ela não só uma funcionária, mas uma súdita também. Odeio a forma como meu pai trata essas pessoas como se fossem seus empregados pessoais, e tenho certeza que todos eles me veneram porque pensam que eu possuo a mesma ignorância no gene.

— Você pode... – eu paro no meio do caminho e me viro pra ela suspirando fundo – Pode não me chamar de senhor?

Ela arregala os olhos um pouco assustada, sem entender se estou falando sério.

— Isso é uma ordem?

— Não, pelo amor de Deus. É só um pedido – falo indignado – Você pode só me chamar pelo nome, como se eu fosse qualquer outra pessoa. Não sei porque todos me tratam desse jeito.

— Tudo bem – ela sorri simpática – Minho, então?

— Isso – respiro aliviado e estendo minha mão pra ela – E você? Qual seu nome?

— Ning Yizhou – ela se curvou outra vez – Estou à sua disposição.

— Eu estou bem, não se preocupe. Eu não sou seu chefe então não precisa me tratar diferente, tudo bem?

— Ah! – ela pareceu um pouco espantada ao mesmo tempo que parecia sentir alívio – Tudo bem, não vou mais fazer isso. Me desculpe, Minho. Só estava tentando fazer meu trabalho.

— Eu sei disso, mas podemos ser amigos, ok? Eu não devo ficar na empresa por muito tempo, não quero dar ordens pra nenhum de vocês.

— Não vai ficar por muito tempo? – ela pergunta – Você vai viajar?

— Eu... Eu não sei – respirei fundo um pouco perdido. Não sei pra onde vou, a única coisa que sei é que não quero ficar aqui – Você quer tomar um café?

— Claro! – ela sorriu – Hoje tem alguns brownies na cafeteria, acho que você vai gostar.

— Ótimo – sorri satisfeito e a segui até o refeitório.

Algumas mesas estavam ocupadas com outros funcionários, e eles olharam fixamente pra mim e pra Yizhou enquanto íamos até a bancada da cafeteria. Não me importei com os olhares, estou me acostumando com eles e com as coisas que as pessoas comentam sobre mim na internet. Eu apenas ignoro, na maioria das vezes não leio, e se leio, levo um puxão de orelha de Gahyeon. Estou aos poucos tentando viver uma vida melhor e me livrar de tudo aquilo que aconteceu, mas tudo tem seus altos e baixos.

Coloco alguns brownies no prato enquanto afasto esses pensamentos, encho uma xícara de café e depois espero que Yizhou termine de pegar seu mocha pra sentarmos em uma mesa livre.

Huuum – ela murmura depois de tomar um gole logo que nos sentamos – O café daqui é o melhor de todos.

Eu bebo um pouco do meu e devo concordar com ela. É forte e bem açucarado, e agrada meu paladar.

— É mesmo.

— Você ainda não tinha tomado desde que chegou? – ela pergunta.

— Não, eu estive tomando outra coisa – lembro das latas de cerveja que sempre trago escondido e decido mentir – Chá de hortelã.

— Chá de hortelã? Que estranho, isso não é muito comum na Ásia – ela ri.

— Eu sei – dou risada – Não sei com quem aprendi a tomar isso, mas é bom. Minha irmã sempre faz pra mim.

— Você e Gahyeon são bem próximos, não são? Eu me lembro de ver algumas fotos de vocês quando eram crianças no jornal da empresa.

— Sério que eles colocaram nossa foto em um jornal? Que horrível – dou risada imaginando os funcionários olhando nossas fotos banguelos – Mas nós realmente somos bem próximos, inclusive preciso contar a Gahyeon que estão ferindo nosso direito de imagem.

Enquanto Yizhou ri e morde seu brownie, avisto Hendery passando pelo corredor ao lado da cafeteria. Ele anda apressado e tem um olhar preocupado, anota coisas em um papel sem nem olhar pra frente enquanto caminha.

— Ei, Hendery! – eu grito e levanto a mão pra acenar pra ele. As pessoas no refeitório me olham mas Hendery não, então grito mais alto – Hendery, vem aqui!

Ele olha para os lados assustado procurando pela minha voz, e assim que me vê na cafeteria da um sorriso simpático e vem andando rápido com seus passos curtos e seu jeito desengonçado.

— Oi, senhor – ele chega respirando ofegante e se curva nos cumprimentando – Olá, Yizhou.

— Sente-se, vamos tomar café juntos.

— Me sentar? – ele praticamente grita – Senhor, eu não posso, estou cheio de trabalho. Não costumo tomar café.

— Você não costuma comer? – pergunto.

— Não – ele responde naturalmente – Eu almoço quando dá tempo, mas não é prioridade.

— Você está louco, Hendery? Você precisa comer, ninguém aguenta trabalhar em jejum – fico incrédulo – Vamos, vai lá pegar seu café. Estou esperando.

— Senhor, não vou poder obedecer essa ordem.

— Que ordem? – pergunto irritado. Isso está começando a passar dos limites – Eu te disse ontem que não sou seu patrão.

— Eu sei, senhor, mas vou ter que recusar seu convite. Estou muito atarefado hoje.

Que saco.

Eu odeio como eles parecem escravos do meu pai, e odeio mais ainda como estão tão presos nisso que nem percebem o que estão fazendo com a própria vida. Isso me revolta tanto que meu sangue ferve de raiva. Eu demorei muito tempo pra conseguir me desprender do meu pai, e agora que voltei pra estaca zero, percebo que não sou o único que está acorrentado a ele.

— A rotina na empresa é mesmo muito corrida, Minho – Yizhou me explica – A maior parte dos funcionários não tem muito tempo de descanso.

Acabei bufando irritado, Yizhou ainda tenta explicar pra mim como se fosse justificável alguém não ter uma única refeição no dia apenas pra que a TWU funcione normalmente. Eu realmente não dou a mínima pra essa empresa, às vezes queria que todos os computadores e celulares da fábrica queimassem e meu pai tivesse um grande prejuízo, talvez assim ele parasse pra pensar que todas essas pessoas que trabalham pra ele merecem ter vida pessoal também.

— Certo, acho que mudei de ideia. Vocês devem mesmo obedecer minhas ordens, afinal, eu sou o futuro CEO da TWU, não sou?

— C-Claro, Senhor – Hendery gaguejou.

— Então, Hendery, você deve imediatamente pegar uma bandeija de comida e se sentar nessa mesa.

— O que? – ele franze a testa.

— Quer ser demitido?

— Não, senhor Lee. Por favor – ele se curva gaguejando e até suas mãos tremem. É uma pena ter que fazer isso com ele, mas Hendery apesar de ser tão inteligente pra assuntos administrativos, está sendo um burro agora. Preciso fazê-lo cair na real.

— Então vai – falo em tom de ordem e ele se vira andando com pressa até a bancada de comida.

Quando olho pra Yizhou, ela tem um sorriso divertido no rosto, mas não sei exatamente o que ela pensa sobre isso.

— Me desculpe, Yizhou – tento me explicar – Sei que Hendery não iria por vontade própria, e eu particularmente não suporto ver tanta coisa errada nessa empresa. O mínimo que vocês merecem é um horário livre pra fazer uma refeição, mas parece que ninguém tem coragem de exigir os próprios direitos.

— Nós precisamos do emprego, só isso. O senhor Chinhae e os gerentes dele não gostam de atrasos, por isso alguns preferem não comer do que acabarem sendo demitidos ou repreendidos depois.

— Isso é desumano – suspiro fundo pensando que aquelas pessoas sofrem o mesmo que sofri a vida toda. Não podem se livrar do meu pai porque precisam do emprego, enquanto eu não conseguia me livrar dele porque sonhava em ter uma família, sonhava em vê-lo ter orgulho de mim. – Enquanto meu pai estiver longe não vou deixar isso acontecer.

Hendery volta e coloca sua bandeija cheia em cima da mesa. Ele pegou uma quantidade considerável de brownies e crossaint's, e isso já é o suficiente pra me fazer entender que ele está com fome. Sinto um aperto no peito pensando que isso acontece com essas pessoas há muito tempo e eu me mantive tão distante disso tudo que não pude perceber.

Ele morde o brownie e arregala os olhos enquanto mastiga. Yizhou e eu rimos de sua reação, Hendery consegue até ser fofo quando não está me tirando do sério.

— Está bom? – pergunto e ele dá outra mordida sem nem engolir a primeira.

— Ótimo – da um gole no café – Que delícia, eu não sabia que o café e os brownie's daqui eram tão bons.

— Viu? – Yizhou me olhou – Eu tenho razão.

— Devo admitir – sorri.

Olho no relógio perto do elevador e vejo que faltam apenas duas horas para o meio dia. Não quero ficar na empresa hoje, as tardes costumam ser ainda mais chatas e entediantes do que as manhãs, e hoje em específico eu não estou com o mesmo nível de paciência que nos outros dias.

Acho que vou almoçar em casa ou pedir algo pra comer, assim eu posso desligar meu celular e fingir que tive algum compromisso mais importante que me impossibilitou de voltar pra TWU. Sei que meu pai vai explodir de raiva quando souber de tudo que estou fazendo, mas não é como se eu não estivesse acostumado. De qualquer forma, assim que eu arrumar um emprego bem longe daqui vou me mudar e ele não vai precisar mais se preocupar com os problemas que eu causei na empresa.

— Tirem uma hora pra comer e descansar e saiam no horário certo, não deixem ninguém desrespeitar essas ordens. Entendido? – disse com um ar autoritário para os dois. É estranho falar assim, mas pedir com gentileza não vai resolver.

— Sim, senhor – disse Yizhou.

Uhum – Hendery murmurou com a boca cheia me fazendo rir – Pode deixar.

— Bom apetite – ri e me levantei da mesa – Vou pra casa e volto depois do almoço, obrigada pela companhia.

Yizhou se levantou pra se curvar e me deu um sorriso gentil. Ela parece alguém legal, fiquei feliz de tê-la conhecido.

— Tenha um bom dia, Minho.

— Até logo, senhor – Hendery se curvou enquanto mastigava o crossaint.

Eu até poderia pedir pra que ele parasse de me chamar de senhor, mas eu acho adorável a forma como Hendery diz isso. Ele é como uma criança educada e atrapalhada vestida em um terno social.

— Até logo – sorri me divertindo com esses pensamentos.

Caminhando de volta pro elevador e pensando que finalmente vou ir embora, de repente alguém chama meu nome e me faz revirar os olhos. O que quer que seja, não vou deixar que me prendam aqui mais um dia. Estou cansado de toda essa bobeira e só quero poder fazer algo diferente hoje.

— Senhor Lee? – a voz é rígida como a do meu pai. Quando me viro pra trás, vejo um dos diretores da empresa cujo qual é um dos preferidos do meu pai. Eu o conheci quando cheguei, mas assim que percebi que ele possui a mesma aura superior e tom arrogante que o meu pai não quis mais encontra-lo pelos corredores.

— Oi – respondo desinsteressado e ele se aproxima colocando os braços pra trás e levantando o queixo.

— Se lembra de mim? Sou Wong Yukhei. Preciso da sua atenção por um minuto – ele me olha de cima abaixo – O setor financeiro necessita da aprovação de um administrador em um processo. Pelo que percebi, você está temporariamente substituindo nosso CEO.

— É... – tento pensar em como fugir disso rapidamente – Não é bem assim.

— Pode me acompanhar por favor? – ele ignora o que eu disse – Prometo que não tomarei muito do seu tempo.

Eu quero dizer não e virar as costas, mas Yukhei é um dos diretores mais próximos do meu pai, e sei que ele não vai poupar esforços quando tiver que contar pra ele que eu não estou fazendo meu trabalho. Eu não temo as coisas que meu pai vai me dizer, mas fico um pouco assustado quando penso na possibilidade da empresa entrar em crise por minha causa. Eu teria que trabalhar a vida toda pra pagar o prejuízo financeiro que causei a ele.

— Tudo bem – respondo bufando e ele me pede pra acompanha-lo.

Entramos juntos no elevador, Yukhei seleciona o botão que leva para o último andar e o silêncio se instala entre nós enquanto o elevador sobe. Quando as portas se abrem, estamos de volta no corredor da diretoria cheio de salas de reuniões e salas pessoais dos diretores. Em vez de seguir em direção a sala do CEO onde eu estava bebendo cerveja mais cedo, eu sigo Yukhei até uma outra porta onde há uma placa escrito direção financeira.

A sala segue o mesmo padrão da sala do CEO, com um painel de madeira onde led's brancos formam a sigla da empresa, e uma mesa com duas cadeiras e um computador de monitor enorme.

— Fique a vontade, senhor Lee – ele diz sentando em sua cadeira e se recostando como um rei. Eu poderia ser muito mais arrogante que ele agora, mas eu não vejo razão em perder meu tempo com isso. Ele pode se sentir superior o quanto quiser, eu não estou aqui pra competir com ninguém. Eu nem sequer queria estar aqui, em primeiro lugar.

— E então – me sento na sua frente esperando que isso acabe o mais rápido possível – Qual é o problema?

Yukhei vira sua cadeira pra alcançar uma bandeija em cima do balcão de madeira. Ele tranquilamente serve um copo de whisky, coloca sobre sua mesa, e depois se vira pra mim com um sorriso falso.

— Aceita um copo?

Inferno.

Parece que ele sabe que eu estou fugindo desses problemas, e por causa disso ele tenta me segurar por mais tempo.

— Não, obrigada – digo sem muita paciência – Pode prosseguir, por favor?

Primeiro ele dá um gole na bebida, respira fundo, ajeita a gola da camisa e só então se vira pra mim.

— Senhor Lee, nossas vendas estão caindo muito. Nossa empresa passou por muita coisa, você sabe – suspirou pesado outra vez – Estamos tentando nos reerguer.

Eu sei o que ele quis dizer com isso, a crise que a TWU passou foi bem na época do meu julgamento, pois as pessoas temiam estar contribuindo financeiramente pra família de um criminoso. Depois que fui declarado inocente, as vendas aos poucos voltaram ao normal, ou pelo menos foi isso que escutei minha mãe dizer pra Gahyeon.

Já faz seis meses, quase ninguém menciona isso perto de mim, algumas pessoas por respeito a algo que foi muito doloroso, e outras porque sentem medo de que eu seja grosseiro. De qualquer forma, eu esperava que Yukhei também agisse da mesma forma, mas sinto que sua indireta foi mesmo intencional.

— O setor financeiro solicitou um reajuste nos preços, queremos aumentar em até vinte por cento para os computadores, e dez para smartphone's.

— Vinte por cento? Pff – falo sem pensar – Vocês são a empresa de tecnologia mais cara da Ásia, se aumentarem o preço vão perder para os concorrentes.

— O que você sugere, senhor Lee? – ele sorri debochado – Tenho certeza que o senhor tem muito pra me ensinar.

Babaca.

— Eu... – tento pensar em algo rapidamente. Não quero parecer burro perto dele, vou acabar inflando seu ego mais ainda – Eu sugiro mais estratégias de marketing, talvez. Deviam gravar outro comercial com algum artista.

Yukhei ri e toma outro gole de whisky, acho que ele sente como se estivesse assistindo a um filme de comédia. Se eu pudesse eu lhe demitiria imediatamente, e pensando bem eu até posso, mas não quero sujar minhas mãos com esse lugar.

— Minho, acho que você não entendeu – ele ri baixinho e dessa vez me chama pelo nome – Estamos passando por uma crise financeira, não temos como gastar nesse tipo de coisa.

Eu respiro fundo tentando não ficar muito preocupado com isso. Hendery me disse a semana toda pra marcar uma reunião com o setor financeiro, acho que era isso que ele estava tão preocupado em resolver.

Não quero que meu pai chegue de viagem e veja a TWU falindo, ele provavelmente vai me responsabilizar por isso e eu terei que responder legalmente por esses danos. Preciso dar um jeito de controlar a situação antes que ele chegue.

— Certo – sinto minha cabeça doer de tanto pensar, mas sei que esse problema não pode ser solucionado de uma hora pra outra – Eu preciso pensar, ok? Posso apresentar uma proposta pra vocês até a semana que vem.

— Senhor Lee, não há necessidade de nenhuma proposta. O reajuste dos preços pode salvar a TWU disso, só precisamos da sua aprovação.

— Não, eu não acho que isso seja necessário ainda – falo sem ter nenhuma certeza, mas é o que acho por enquanto – Você pode me dar os relatórios das vendas dos últimos seis meses?

— Posso – ele responde e em seguida ouvimos alguém bater na porta.

Vejo Hendery colocar a cabeça pra dentro da sala, e fala com a voz baixinha e nervosa assim como faz comigo.

— Senhor Wong, acho que se esqueceu da reunião. Estão te esperando no salão.

Yukhei arregalou os olhos e se levantou rapidamente, ajeitou o terno sobre o próprio corpo e deu a volta na mesa seguindo Hendery pra fora da sala.

— Senhor Lee, peça pra meu assistente pegar os relatórios na minha gaveta pra você. Tenha uma boa tarde – se curvou rapidamente e saiu as pressas me deixando sozinho dentro da sala.

— Assistente – eu debocho sozinho e dou risada – Até parece.

Me levanto indo até a porta e abro uma fresta pra espiar o corredor. Não tem ninguém.

Não preciso pedir pro assistente do magnífico Yukhei me dar um simples relatório, eu mesmo posso pegar dentro da gaveta, afinal de contas, eu legalmente tenho direito a uma parte de cada uma dessas paredes e dessas gavetas.

— Idiota – murmuro pra mim mesmo pensando em como odeio pessoas arrogantes.

Dou a volta na mesa até chegar nas gavetas que ficam ao lado da sua cadeira. Abri uma por uma, vasculhando rapidamente os papéis pra que não fosse pego. Achei alguns livros, canetas, elásticos, grampos e alguns documentos que não eram do meu interesse. Tudo menos os relatórios.

— Droga, preciso ser rápido – sussurro sozinho e vou do outro lado da mesa pra alcançar as ultimas duas gavetas.

Na primeira encontro algumas pastas com recibos de férias e outros dois livros, já na segunda abro com um pouco de desespero e sem muito esforço vejo alguns papéis de planilhas impressas.

— Achei! – falo empolgado e pego os papéis grampeados com o título que eu precisava. Quando corro pra organizar a gaveta e sair da sala, vejo uma nota fiscal por cima de alguns papéis e acabo lendo sem querer.

Tem uma conta bancária anotada com caneta no final da folha, e a letra parece ser do meu pai. Trago a folha pra mais perto e vejo que o nome do comprador está riscado com caneta, e quando olho o valor da nota me assusto por ser tão baixo.

— O que é isso? – falo pra mim mesmo e meu coração dispara quando ouço alguém bater na porta.

Amasso o papel o suficiente pra colocar no meu bolso, fecho a gaveta rapidamente e respondo as batidas.

— Pode abrir.

Quando Hendery coloca a cabeça pra dentro da sala com um sorriso, eu respiro aliviado e o frio na barriga finalmente passa.

— Oi, senhor. Eu só vim ver se precisava de alguma coisa.

— Não, obrigada Hendery. Já estou de saída.

Pego os relatórios e ele abre a porta pra que eu saia, me curvo em despedida e lhe dou um sorriso.

— Vou almoçar, não esqueça de comer também. Até logo.

— Até logo, senhor – ele se curva demoradamente e eu me viro pra ir embora.

Entro no elevador e assim que as portas se fecham respiro fundo aliviado. Por sorte não fui pego, mas seja lá o que esse papel significa, eu vou descobrir.

Aperto o botão para o térreo, e logo as portas se abrem no estacionamento da empresa. Tenho saudades do meu carro que deixei na Coréia, ele combinava muito mais comigo do que o cadillac preto que meu pai exigiu que eu usasse.

Dirigi pelas ruas da China até chegar no condomínio onde morei com meus pais e minha irmã há alguns anos atrás. A casa hoje em dia é muito diferente do que eu conheci, passou por tantas reformas que eu nem reconheço as partes dela que marcaram minha infância.

Morar aqui é como voltar para aqueles tempos, onde tudo era tão difícil e doloroso pra mim que poucas pessoas entendiam. A única coisa que eu fazia naquela época era me trancar no meu quarto pra estudar, perder a noção do tempo e só voltar pra realidade quando a empregada me levava um lanche e um copo de suco. Hoje em dia não é diferente, eu me tranco no mesmo quarto e durmo pra não ter que esperar o dia seguinte chegar, e pra que a minha vida passe mais rápido.

Assim que entro na casa, sinto o mesmo alívio desde que meu pai saiu de viagem, o alívio de não vê-lo aqui e saber que não vou precisar escutar ninguém me pressionando e posso simplesmente me trancar no quarto e viver em paz. Entretanto, esse alívio morre instantâneamente quando entro na cozinha e vejo minha mãe ali, e por um instante penso em qualquer desculpa que eu poderia dar a ela pra sair correndo nesse exato minuto.

— Oi, mãe – me curvo com educação e ela me olha de cima abaixo.

Está vestindo um echarpe por cima da roupa, tem o rosto todo maquiado e os fios de cabelo enrolados.

— Não deveria estar trabalhando? – ela atira a primeira pedra em mim sem nem ao menos me dizer um oi.

— Eu só vim almoçar em casa – minto – Vou voltar depois.

— Há um refeitório na TWU, não sei se seu pai chegou a te dizer – ela responde com ironia – Além do mais, como um futuro CEO você devia saber que fazer pausas pra refeições toma muito do seu tempo. Coma depois que tiver finalizado seu trabalho.

— Deixe o garoto, senhora Lee. Ele está crescendo ainda, é importante se alimentar bem – ouço a voz da empregada chegando na cozinha – Eu estou preparando uma sopa gostosa pra você, pequeno Minho.

Meu coração se aquece imediatamente, e suspiro me lembrando do quanto essa senhora significou pra mim na infância. Era a figura mais maternal que já conheci, sempre cuidando de mim e de Gahyeon com todo o carinho do mundo, se preocupando com nosso bem-estar e muitas vezes até nos ajudando com o dever de casa.

É bom estar junto da senhora Yang de novo, e é nostálgico ver que ela continua do mesmo jeito de sempre, com seu avental branco, cabelos grisalhos, e a voz baixinha que sempre me oferecia algo pra comer ou me falava pra ir brincar um pouco. Senti falta dela, gostava da senhora Yang como se fosse alguém da minha família, mas depois que nos mudamos pra Coreia eu acabei me esquecendo de tudo que em relação a China, inclusive as coisas boas.

É bom poder me lembrar dela agora, e é muito especial pra mim ver que ela continua me chamando de pequeno Minho mesmo que eu já seja grande agora. Espero nunca me esquecer da senhora Yang outra vez, ela é uma pessoa muito boa pra alguém que trabalhou a vida toda para os meus pais.

— Não se meta nisso Meilin, faça seu trabalho calada!

— Mãe! – escuto a voz de Gahyeon atrás de mim e ela se aproxima franzindo o cenho – Não fala assim com a senhora Yang!

Ela coloca a panela sobre o fogão e começa a cortar alguns legumes na pia, não parece se importar com a grosseria da minha mãe. Acho que ela está acostumada com isso, ela trabalha para os meus pais desde que eu nasci, e certamente aprendeu a ignorar a arrogância deles pra não perder o emprego.

— Gahyeon, não comece – minha mãe diz com ignorância – Não vou discutir com você de novo por esse mesmo motivo. A empregada é minha, eu falo com ela da forma que eu achar necessário.

— Minha irmã está certa, mãe – eu interrompo – Não pode falar com a senhora Yang desse jeito, ela merece respeito. Seus funcionários não são seus escravos, são pessoas como você.

— Como eu? – ela cai na gargalhada e olha pra senhora Yang por cima do ombro. Seu ar de superioridade é tão pesado que até sinto um aperto no coração por ela – Você realmente quer comparar uma fedelha dessa comigo? Minho, meu filho. Quando foi que se tornou tão burro? A Coréia realmente acabou com você.

— Mãe! – Gahyeon gritou tão alto que me assustou.

Quando olho pra ela, está vermelha e rangendo os dentes, completamente cheia de raiva e olhando com desprezo pra nossa mãe.

— Chega de desrespeitar os outros desse jeito, não vou suportar ficar mais um segundo nessa casa se você não parar de ser tão ignorante!

Meu coração dispara e arregalo os olhos olhando para as duas. Nunca vi Gahyeon perder a linha desse jeito, e muito menos por um motivo que eu e ela estamos acostumados a lidar desde crianças. Não é como se nossa mãe fosse mudar depois dos gritos de Gahyeon, mas ela parece farta de aguentar tanta grosseria.

— Para! – minha mãe grita ainda mais alto e sua palma atinge a bochecha de Gahyeon – Me respeita, garota! Eu sou sua mãe, quem é você pra falar desse jeito comigo? Não seria ninguém sem mim!

Em segundos, essa conversa virou uma grande briga, e por instinto, me coloco na frente de Gahyeon e encaro minha mãe sem medo algum. Eu protegi Gahyeon de pessoas muito mais perigosas que ela, e não vou deixar que ela agrida minha irmã que só está tentando fazer a coisa certa.

— Não encoste nela, mãe. Vocês não precisam resolver as coisas assim.

A senhora Yang se aproxima, vejo seus olhos brilhando com algumas lágrimas e ela me olha como se estivesse implorando pra que isso acabe logo.

— Está tudo bem, meninos. Não se preocupem – ela pede – Subam pro quarto, eu levo sopa pra vocês daqui a pouco.

— Ouviu, Gahyeon? Nem ela dá tanta importância pra isso, ela sabe que é só uma empregada e que seu único dever é nos servir! – minha mãe grita. Gahyeon respira fundo tentando se acalmar, mas acho que ela só ficou mais nervosa.

— Para com esse teatro, mãe! Chega! Estou cansada de toda essa merda! – Gahyeon me empurra pro lado e se aproxima da nossa mãe – Pare de ser tão estúpida com os outros, não me faça abrir minha boca pra todo mundo ouvir.

— Você não teria coragem – minha mãe debocha e parece pronta pra acerta-la no rosto outra vez.

Não sei o que está acontecendo, nunca vi Gahyeon tão nervosa e não entendo porque ela resolveu explodir agora. Nossa mãe sempre foi assim, e desde que voltamos pra China ela foi grosseira com a senhora Yang várias vezes na frente de Gahyeon. É como se minha irmã estivesse esperando seu limite chegar pra colocar tudo pra fora.

— Para com isso vocês duas – peço com a voz firme – O que foi que deu em vocês?

Gahyeon da um passo pra trás e cruza os braços, sem parar de olhar pra nossa mãe por nenhum segundo.

— Acho que está na hora dele saber, não acha? – ela provoca – Você me fez esconder isso por muito tempo, mas agora eu simplesmente não quero mais.

— Gahyeon... – ouço a senhora Yang dizer com a voz baixinha e levar sua mão ao rosto pra enxugar as lágrimas.

O olhar da minha mãe muda completamente, o que antes era só irritação, agora é o mais puro ódio que lhe faz olhar pra própria filha como se fosse seu pior inimigo.

— Não me faça ter que calar sua boca – ela sussurra – Não vou ser gentil dessa vez.

— Você nunca foi – Gahyeon revida – Pra mim não faz diferença.

— Que porra tá acontecendo? – eu pergunto desesperado, sentindo meus batimentos acelerarem de nervoso.

— Minho, vai pro seu quarto. Por favor – a senhora Yang pede.

— Ele fica – minha mãe diz ainda olhando pra Gahyeon – Quero ver se ela tem coragem.

— Eu tenho, mãe – diz com firmeza – Você realmente não sabe do que sou capaz.

— Minho, vai pro quarto – a senhora Yang pede outra vez, mas agora quem está nervoso sou eu.

Não faço ideia do que elas estão falando, e saber que esconderam algo de mim por muito tempo me deixa completamente irritado. Preciso saber agora, e não vou sair daqui até me contarem.

— Fala, mãe – peço – Eu faço questão de saber, parem de enrolação!

As duas continuam se encarando como se estivessem prontas pra atacar, e a senhora Yang chorando no canto da cozinha me deixa ainda mais aflito pra saber o que está acontecendo.

Alguns minutos se passam em silêncio até que Gahyeon desvia o olhar pra mim, e cruza os braços andando pela cozinha.

— Se ela não quer falar, então eu falo – se apoiou no balcão da cozinha com um sorriso debochado.

Minha mãe se virou furiosa, seus olhos brilhavam com lágrimas de raiva.

— Não ouse, Gahyeon – ela sussurra implorando.

— Minho – ela me chama e meu coração se aperta – Essa mulher não é sua mãe. Nunca foi.

Disso eu já sabia, não há nada maternal na minha mãe, e qualquer outra mulher mais velha que eu já conheci na minha vida poderia ser mais minha mãe do que ela.

— Nosso pai engravidou outra mulher fora do casamento – continuou – Sua mãe biológica é a senhora Yang, Minho.

— O que?

Eu não sei o que pensar. Eu realmente não sei o que pensar ou como me sentir. É tudo muito confuso e a única coisa que faço é olhar pra senhora Yang, mas ela chora soluçando cabisbaixa e não consegue me olhar nos olhos.

Isso é estranho, o sentimento que cresce em meu peito não é bom, é diferente de tudo que conheci. Diferente de tudo que sou.

Eu sei que minha mãe não foi boa pra mim, sei que passei minha vida toda tentando conquistar seu amor e carinho e nunca consegui, entretanto, nunca passou pela minha cabeça que o fato dela não conseguir me amar fosse porque eu de fato não sou seu filho.

Uma das coisas que mais fiz durante a minha vida foi tentar conquistar o amor dos meus pais, e agora é estranho pensar que o fato de eu nunca ter conseguido me encaixar nessa família é porque eu realmente não pertenço a ela. Por mais que nossa relação fosse difícil, nunca cheguei a pensar além dessas paredes, nunca cogitei a ideia de ser alguém diferente do Lee Minho, herdeiro da TWU, que um dia se rebelou contra os pais pra tentar ser um escritor.

Por outro lado, eu sempre quis ter uma mãe, mas meu coração não se sente imediatamente feliz por saber que agora tenho uma, porque grande parte de mim ainda está tentando entender quem eu sou de verdade e de onde eu vim. Eu não era feliz sabendo que era filho da minha mãe, mas agora me pergunto se serei feliz sendo filho da senhora Yang, porque de uma hora pra outra é como se tudo que eu tivesse vivido até agora fosse uma grande mentira.

Sei que não é uma notícia ruim, mas não consigo evitar sentir vontade de chorar. É uma sensação horrível sentir tudo mudar em apenas um segundo, e é ainda pior pensar que não pertenço a lugar algum, e que a irmã que considero minha única família escondeu algo que mudaria minha vida e nunca me contou.

— Gahyeon... – minha mãe fecha às mãos em um punho e seu rosto avermelhado treme de nervoso – Cala a boca.

— Não, mãe. Ele merece saber – Gahyeon se vira pra mim e olha no fundo dos meus olhos – Me desculpa por nunca ter te contado.

— Por que? – pergunto com a voz embargada – Por que escondeu de mim esse tempo todo?

— Eu... Eu não tive escolha, Minho – seus olhos brilham com lágrimas – Eles me disseram que iam nos separar pra sempre se você soubesse, e eu não queria ficar longe de você.

— Eu... Eu não entendo – olho pra Gahyeon implorando por uma explicação – O que foi que aconteceu?

— Minho, o papai tinha medo que você crescesse como um bastardo e tivesse direito as ações da empresa no futuro. Ele preferiu te criar como seu filho, até porque a mamãe teve problemas quando ficou grávida de mim, e não podia ter mais filhos. Ele precisava de um herdeiro.

Como eu pensava, minha única utilidade esse tempo todo era ser um herdeiro, o futuro administrador da TWU, e foi só por esse motivo que eles me criaram. Tudo faz sentido agora.

Quando era só um pressentimento doía menos, mas agora que tenho a confirmação, meu coração realmente sente muito. É como se eu tivesse sido usado minha vida inteira, como um robô programado, um investimento a longo prazo que precisava atender a todas as expectativas.

É por isso que sempre fui forçado a aprender sobre os negócios da família, e por isso sempre odiei seguir esse caminho. Em algum lugar bem lá no fundo, eu sabia que esse não era meu lugar, não era minha vida, e não era minha família. Dói saber de tudo isso agora, mas há uma pequena parte de mim que sente esperança. Esperança de que esse seja, finalmente, o momento em que toda a minha existência faça sentido.

— O papai ofereceu dinheiro pra senhora Yang ir embora, mas ela não quis – disse Gahyeon – Ela se ofereceu pra continuar trabalhando de graça, com o único intuito de vê-lo crescer.

A senhora Yang segura seu avental com as mãos calejadas, usa ele pra enxugar as lágrimas do seu rosto e aos poucos levanta a cabeça, quase como se não conseguisse, e olha pra mim com os olhos baixos e sofridos.

— Eu estive esperando você voltar pra China esse tempo todo – ela chora – Está tão crescido agora, tão bem. Eu rezei muito por você, pequeno Minho.

Sinto uma pontada no peito tão forte que me faz soluçar outra vez. As palavras dela são tão carinhosas, seu olhar é tão amoroso apesar de sofrido, e agora eu vejo que todo o cuidado que ela teve comigo era na verdade amor de mãe.

Mesmo que eu ainda não consiga vê-la como minha mãe, isso dói de um jeito bom, e dessa vez eu choro porque me sinto acolhido, eu choro porque nunca pensei que um dia eu seria o filho de alguém.

— Ela está mentindo, Minho. Não dê ouvidos a sua irmã.

Minha mãe se aproxima, vejo que seus olhos estão cheios de raiva, mas ela força seu melhor pra fingir estar falando a verdade.

O teatro é tão real que ela pega meu rosto em suas mãos, acaricia minha bochecha com seus polegares como nunca fez em toda a minha vida. Isso só prova que Gahyeon está certa, e a única coisa que sinto olhando pra mulher na minha frente é o mais profundo desprezo que um ser humano pode sentir por alguém.

— Você é meu filho, nosso herdeiro, sua irmã não faz a mínima ideia do que está falando.

Me lembro de sonhar tanto com esse carinho quando eu era criança, mas agora que finalmente o recebo, eu não sinto absolutamente nada.

Me afasto dela até que suas mãos não estejam mais em mim, dou alguns passos pra trás e olho pra ela de longe com extrema indiferença.

— Não coloque suas mãos em mim de novo – peço – Não sabe o quanto eu desprezo você.

— Olha o que você fez Gahyeon! – ela grita andando na direção da minha irmã – Está satisfeita agora sabendo que arruinou o futuro dos seus pais?

— Para, mãe! Você não vai mais me fazer guardar isso, eu passei anos da minha vida com a verdade entalada na minha garganta e me deixando ser manipulada por vocês dois – diz ofegante e nervosa – Meu irmão não é sua propriedade, não é seu filho, e nem o futuro dessa empresa de merda. O Minho é livre, mãe!

Minha mãe deixa as lágrimas escorrerem pelo seu rosto, mas ainda assim não abaixa seu olhar. Ela ainda pensa que vai dar a volta por cima, que vai continuar nos tratando feito seus fantoches que ela controla da maneira que quer.

— Você não tem noção do inferno que está causando, Gahyeon, mas eu espero que você saiba da dívida imensa que tem com seus pais agora – ela ameaça – Você não devia ter feito o que fez, e você vai ser a culpada de todas as consequências que vierem.

— Eu não me importo – Gahyeon responde sem remorso – Eu fiz o que eu precisava fazer, e se quiser me odiar por isso tudo bem.

Ela suspira furiosa, tentando se controlar pra não perder a linha com Gahyeon, e da um olhar de desprezo pra senhora Yang antes de dar as costas e sair batendo os pés.

Eu olho pra Gahyeon e vejo sua preocupação comigo, ela se aproxima receosa com medo de que eu não lhe queira por perto.

— Você está bem?

É bem óbvio que eu não estou bem, mas acho que essa pergunta é mais pra que ela tenha certeza de que eu não estou magoado com ela, e que a descarga de emoções que tive não me fez surtar.

— Sim – respondo com a voz baixa. Estou bem na medida do possível, e não posso ficar magoado com Gahyeon, pois conhecendo os meus pais, eu sei que eles a chantagiaram de todas as formas possíveis pra que ela nunca me contasse a verdade.

Ouço os saltos da minha mãe batendo contra o assoalho, e logo ela reaparece na cozinha com os olhos vermelhos de raiva e joga várias roupas e pertences no chão.

A senhora Yang acaba soluçando quando vê, e logo eu entendo que minha mãe está lhe expulsando de casa da pior maneira possível porque humilhar os outros é o que ela faz de melhor.

— Pegue seus trapos sujos e suma daqui, Meilin. Leve esse seu... – ela me olha procurando por uma palavra que me ofenda, mas por um segundo, ela não consegue – Leve Minho junto com você. Não quero que coloquem seus pés na minha casa outra vez.

— Você enlouqueceu? – Gahyeon pergunta incrédula – Mãe, a senhora Yang não tem pra onde ir, ela morou aqui a vida inteira.

— Isso não é problema meu – ela responde com desprezo – Aguentei essa desclassificada a vida inteira pelo bem do nosso futuro, mas agora que está tudo arruinado, eu não vou mais fazer isso.

— Mãe, você não pode – Gahyeon abraça a senhora Yang que chora sofrido e olha pra minha mãe implorando.

— Devia ter pensado nisso antes de abrir sua boca.

— Por que você tem que ser tão ruim? – ela grita enquanto chora – Por que eu tenho que ser sua filha?

Não quero que as coisas piorem, isso não é sobre Gahyeon, é sobre mim, e eu não quero que a crueldade que aconteceu comigo prejudique a relação das duas, por isso me forço a fazer alguma coisa antes que tudo piore.

— Para – eu me aproximo dela e peço com a voz mais calma – Não precisa disso, Gahyeon. Vamos dar um jeito.

A primeira coisa que eu faço é juntar as coisas da senhora Yang que estão no chão e colocar na minha mochila, pois sei que ela se sentiria muito mais humilhada se tivesse que fazer isso.

Eu vou ajuda-la, sei que não tenho muito pra ajudar, mas farei o possível. Meu coração não me deixaria dar as costas a ela em um momento como esse, nem se ela não fosse minha mãe biológica, eu faria isso por qualquer outra pessoa que precisasse de ajuda depois de sofrer nas garras da minha mãe por tantos anos.

— Saiam daqui! – ela grita assim que eu coloco a mochila no ombro – Rápido.

Gahyeon ajuda a senhora Yang a andar logo atrás de mim, e assim que passo pela minha mãe, vejo que ela não me olha nos olhos e começa a chorar.

Não acho que esse choro seja porque há um coração dentro dela, acho que na verdade é apenas um sentimento confuso parecido com o meu, o sentimento de quando estamos acostumados com tudo que vivemos e de uma hora pra outra tudo muda e você se sente perdido, sem saber o que fazer, sem saber pra onde ir.

Eu não a odeio, acho que a forma como tratamos as outras pessoas diz muito sobre o que nos foi ensinado, e talvez não tenham ensinado muitas coisas boas pra minha mãe ou o meu pai.

As gerações de poder e dinheiro não costumam dedicar muito tempo aos seus filhos, não lhes ensinam sobre seus deveres de casa e tampouco sobre os valores pessoais que devem ter. Acho que não ensinaram minha mãe a conviver com pessoas diferentes dela, e não lhe avisaram que aqueles que não fossem como ela não seriam seus súditos, apenas pessoas que não tiveram as mesmas oportunidades que ela teve.

Meus pais criaram Gahyeon com a visão distorcida que tinham sobre amor, com o pouco que conheciam sobre família, e todo o resto ela aprendeu comigo, com a senhora Yang, e com todas as outras pessoas que passaram pela sua vida e lhe ensinaram uma coisa boa.

Foi assim que eu também me criei, com as coisas que aprendi com a minha irmã, com os bons momentos que vivi com Felix e tudo que o mundo me ensinou. Eu queria que minha mãe também tivesse aprendido dessa forma, mas talvez pra ela seja um pouco mais doloroso e difícil aprender como ser diferente do que ela sempre foi, e principalmente, talvez ela queira continuar sendo exatamente igual.

Eu só espero que esse sentimento confuso acabe um dia, que eu possa aprender novas coisas com minha nova mãe, e que ela me ajude a trilhar um novo caminho e uma nova vida que me faça verdadeiramente feliz. Espero que minha mãe também consiga se sentir assim, e que ela nunca perca seu dinheiro e sua arrogância, pois sei que ela não aprendeu a se preencher com nada além disso, e vai ser muito doloroso se ela perder tudo que tem.

— Vai! – ela abre a porta da sala e nós três saímos. Ainda ouço o choro baixinho da senhora Yang, e minha irmã acaricia seu ombro tentando conforta-la.

Nós três olhamos pra trás, o sentimento estranho volta a doer no meu peito enquanto observo a casa que morei durante tantos anos.

Não sinto nada, e sei que não vou sentir saudades também, mas saber que essa não era minha vida de fato me faz sentir completamente perdido, sem saber de onde eu vim, sem saber porque vim ao mundo.

— Gahyeon, você não – ela diz chorando – Vem pra dentro, pare com isso.

— Você acabou de expulsar meu irmão e a mãe dele – ela responde – Acha mesmo que ainda quero ficar com você?

— Você é minha filha, Gahyeon! Para de se meter nessa história, volta pra dentro. Eu te amo, seu pai te ama, não vire as costas pra gente!

— Você virou as costas pra mim primeiro. Eu te dei a chance de fazer a coisa certa mãe, e olha o que você fez. – disse magoada.

Minha mãe fecha os olhos e respira fundo, sei que por dentro seu coração deve estar disparado, com medo de que a consequência disso tudo seja perder o amor de Gahyeon pra sempre.

— Gahyeon, volta pra dentro – ela pede com a voz mais calma dessa vez – Amanhã nós conversamos, eu prometo.

— Não, mãe – ela responde – Eu não vou estar aí amanhã.

Por fim, ela se dá por vencido, e vejo como fecha os olhos sem coragem de olhar pra sua filha e fecha a porta segurando o choro.

Sinto pena das duas, sei o quanto elas se amam apesar de tudo, mas meu coração ainda tem esperanças que elas conversem depois de um tempo.

Depois que ela fecha a porta, nós três nos entreolhamos com certo alívio, ao mesmo tempo que nosso coração teme essa nova fase.

A senhora Yang limpou as lágrimas em seu rosto, e me olhou com o olhar ainda receoso e triste, com medo de me dirigir a palavra.

— Seria muito incômodo se eu te pedisse um abraço?

Acabo me assustando com a pergunta, mas meu coração derrete feito manteiga.

Eu gosto de abraços, e por mais que eu ainda não tenha tanto afeto por ela como mãe, eu imagino o quanto ela esperou por esse momento a vida inteira, e não consigo negar seu pedido.

Eu abro os braços um pouco envergonhado, ela se aproxima com as mãos tremendo e me dá um abraço leve e caloroso, como se não quisesse me sufocar com todo o amor que ela tem pra me dar.

É um abraço desajeitado, eu e ela não sabemos como nos comportarmos ainda, mas o que sinto ao abraça-la é bom, então não me impeço de continuar em seus braços pelo tempo que for necessário.

A senhora Yang estica o braço chamando Gahyeon, e logo ela se junta a nós dois apertando seus braços em nossa volta e acabando com o receio que nossos braços sentiam.

E então, na beira da rua de um dos condomínios mais luxuosos da China, eu abracei minha família, minha nova família, com uma mulher baixinha de sorriso doce que uma parte de mim ansiava pra chamar de mãe.

Mais uma vez, minha vida virou de cabeça pra baixo e tudo mudou de uma hora pra outra, mas dessa vez não sinto medo. Essa mudança é boa, vai fazer tudo ficar melhor, vai aos poucos colocando cada coisa em seu lugar. É por isso que esse abraço é tão caloroso, é por isso que consigo sentir o amor que as duas me transmitem. Eu queria que esse momento durasse pra sempre, mas pensando bem, não precisa. O amor nunca morre, mesmo que nós venhamos a morrer um dia. O amor fica. Vive pra sempre.

***

Duas semanas depois.
Distrito de Yau Tsim Mong, Hong Kong.

Não tem sido muito fácil ultimamente, as coisas ainda andam meio estranhas, ou melhor, diferentes.

Desde que a senhora Yang — que eu ainda não estou acostumado a chamar de mãe — saiu da casa dos meus pais, eu e Gahyeon procuramos por uma casa onde eu e ela pudessemos morar, já que obviamente não fazia sentido continuar morando na casa da mãe de Gahyeon, que agora não é mais minha mãe.

Achamos um sobrado simples e pequeno no distrito de Yau Tsim Mong, não muito longe de onde Gahyeon mora e onde a TWU fica.

É um lugar barato, não tem muita luz solar, os móveis estavam velhos e empoeirados quando chegamos, e a geladeira fazia um barulho estranho. É o oposto de todas as casas que já morei, é humilde e não tem nenhum luxo, mas pelo simples fato de ter um lugar onde eu pudesse ficar, já foi o suficiente pra que meu coração sentisse um apreço por cada parte daquela casa.

Minha irmã me ajudou a trazer todas as minhas coisas, e na primeira semana já me instalei na minha nova casa, com a minha nova mãe, e a minha nova vida.

Aquele sentimento diferente ainda persiste, e nos primeiros dias foi ainda mais difícil me adaptar a tudo que vem acontecendo.

A senhora Yang está tão feliz que seus olhos brilham quando me olha, e por causa disso me sinto na obrigação de me sentir feliz também, mas é um pouco cedo demais. Primeiro, eu preciso aceitar que meus pais me usaram durante toda a minha vida, e depois, eu preciso desvincular a imagem da funcionária gentil que cuidava de mim quando criança da senhora Yang Meilin que é quem me deu a luz.

Eu preciso de um tempo pra pensar, e desde que nos mudamos não pude ter esse tempo. Pra pagar o aluguel dessa casa e nossas novas despesas, eu decidi continuar trabalhando na TWU até que meu pai volte de viagem. Ele provavelmente não sabe de tudo que aconteceu, então não corro o risco dele me despedir ou fazer uma cena. Enquanto isso, estou tendo que realmente me esforçar pra trabalhar naquela maldita empresa, com o único intuito de não passar nenhuma dificuldade enquanto não arranjo outro emprego.

Por causa de tanto trabalho, nas últimas duas semanas cheguei em casa tarde da noite e Meilin já estava dormindo. Como sempre, ela deixou um prato de comida separado pra mim, minha cama já arrumada, minhas camisas sociais passadas e penduradas no cabide.

Não estou acostumado a receber esse tipo de cuidado, e uma parte de mim se sente mal porque parece que estou me aproveitando dela. Entretanto, quando comentei isso com Gahyeon ela me disse algo que pesou na minha consciência. Essa é a forma que Meilin cuida de mim, porque é isso que as mães costumam fazer pelos seus filhos. Por mais que eu já possa me cuidar sozinho, ela nunca teve a chance de cuidar de mim quando criança, e agora, o mínimo que posso fazer por ela é deixar que ela tenha esse prazer de mãe.

O único dia que não fui trabalhar foi a primeira vez que pude tomar café da manhã com Meilin, e como o esperado, ela acordou mais cedo que eu só preparar uma boa refeição pra me sustentar durante a viagem.

Vou precisar voltar pra Seul, o julgamento de Xiaojun será na quarta-feira e vou precisar testemunhar contra ele.

Eu temi esse dia, não porque eu ache que ele será absolvido, mas porque relembrar tudo isso depois de ter passado tanto tempo longe dessa história me aterroriza um pouco. Dessa vez, voltar pra China com meu pai não foi uma escolha tão ruim como das outras vezes, na verdade, me fez bem.

Viver aqui durante todo esse tempo me fez ter a sensação de que estava muito, muito distante de tudo aquilo que aconteceu na Coreia, e só aqui eu tive a chance de recomeçar minha vida sem todas as lembranças que deixei pra trás. Isso me ajudou a adormecer aqueles sentimentos, a camuflar as memórias e a fingir que tudo aquilo foi só um pesadelo. Mas agora, preciso sair dessa ilusão e ser forte ao encarar tudo isso outra vez, porque preciso ajudar a fazer justiça por todos aqueles que sofreram nas mãos de Xiaojun.

— Bom dia – diz Meilin. Ela ainda não me chama de filho, na verdade eu acho que ela sente vontade, mas não quer forçar a barra comigo.

— Bom dia – respondo com um sorriso cansado porque não dormi muito tempo. Quando cheguei do trabalho ontem a noite, fiquei até duas horas da manhã arrumando minhas malas, e agora o cansaço está me torturando.

Meilin serviu uma xícara de chá de hortelã pra mim, e antes que ela fosse preparar minhas torradas, eu me apressei pra fazer isso antes dela. Eu gosto que Meilin cuide de mim, mas não acho necessário que ela faça tudo. Eu não sou mais o filho da patroa que ela precisa servir, não precisamos mais ter essa relação, e consequentemente, eu posso passar manteiga na minha torrada sozinho, sem me aproveitar da sua boa vontade.

— Conseguiu dormir bem? Você tem uma longa viagem hoje – ela pergunta.

— Não muito, cheguei muito tarde da TWU ontem, mas acho que consigo dormir no avião.

— Ou então pode descansar quando chegar lá, você precisa se alimentar bem e dormir bem antes do julgamento – ela se junta à mesa comigo e prepara seu chá.

— É... – acabo suspirando nervoso com aquela última palavra. Me aterroriza pensar que além de relembrar tudo aquilo de novo, vou precisar olhar nos olhos dele. Venho tentando colar os pedaços do meu coração que se quebraram depois de Jisung, mas agora que vou vê-lo de novo, sei que vão se quebrar outra vez.

— Sei que está nervoso, pequeno Minho. Eu sei o quanto isso é difícil pra você – ela tenta sorrir pra me confortar – Mas o pior já passou, você já foi inocentado, agora só precisará ajudar a fazer justiça.

— Eu sei, mas não é isso que me deixa tão nervoso. Eu...

Não consigo terminar a frase, pronunciar o nome dele ficou um pouco difícil agora. Apesar de já ter passado alguns meses, parece que foi ontem que ele foi me visitar na delegacia e disse que não sentia mais nada por mim.

— É o garoto – ela diz – Eu sei que é.

Eu arregalo meus olhos pra Meilin, sem entender como ela sabe sobre isso.

Jisung é o assunto mais sensível pra mim, e se eu fosse contar pra ela, demoraria um bom tempo até eu ter coragem de tocar nesse assuntou outra vez.

— Como....?

— Gahyeon me contou – respondeu – Ela sempre me deu notícias sobre você, e na época do seu julgamento eu estava muito, muito preocupada, mas não podia comparecer e nem te visitar, seu pai nunca deixaria. Foi ela que me tranquilizou durante esse tempo, e me contou o motivo pelo qual você estava sofrendo tanto. Não a culpe por isso.

Meu coração sente pena de Meilin. Durante todo esse tempo ela se certificou de cuidar de mim mesmo de longe, e mesmo sem saber, eu tinha alguém além de Gahyeon que estava ali por mim caso eu precisasse.

— Eu não me importo da senhora saber, e obrigada por ter se preocupado tanto – tento sorrir um pouco sem jeito – Eu só não consegui te contar, isso é algo que... que ainda me dói muito. Me dói demais.

— Eu sei, meu bem. Eu sei – ela alcança minha mão por cima da mesa e acaricia. Por mais que a dor ainda se faça tão presente, meu coração se aquece com esse carinho. Ela é mesmo muito acolhedora.

— Eu... Eu queria muito que ele me perdoasse, mas não acho que seja possível. Eu errei muito com ele.

— Todas as pessoas erram, Minho. Errar nos faz humanos, e pedir perdão nos faz pessoas melhores – ela diz com a voz calma enquanto eu seguro as lágrimas – Sente vontade de pedir perdão a ele?

Antigamente, eu pensava que perdão era algo inútil. Mesmo que alguém te perdoe e escolha não ter mágoa de você, ela nunca vai esquecer do que você fez, e isso, consequentemente, vai deixa-la magoada.

Entretanto, agora eu acredito que o perdão não tem ligação nenhuma com as memórias. Sempre vamos nos lembrar de quando alguém erra com a gente, mas quando perdoamos, essa memória se desvincula do nosso coração e para de alimentar sentimentos ruins, e então, o que nosso coração passa a sentir por quem errou com a gente é baseado no dia que ela se arrependeu pelo que fez.

É verdade, perdoar não apaga as memórias do erro, na verdade, ele substitui essas memórias pelo dia que aceitamos perdoar. Se Jisung me perdoasse, seu coração nunca mais sentiria algo ruim por mim, e as lembranças do que fiz com ele ficariam distantes perto da lembrança do dia que ele aceitou me dar seu perdão.

Venho sonhando com esse dia há meses, e todas às vezes sinto uma fração do sentimento incrível que se apossa do meu coração quando Jisung me perdoa. O sentimento de poder ter uma segunda chance, de poder ser alguém melhor apesar de tudo que fiz.

— Muito – respondo pra ela com meus olhos molhados. Não consegui segurar – Mas eu já pedi perdão a ele, e ele não... Ele não aceitou.

— Ele precisava de um tempo, Minho. Você também precisou de um tempo – ela responde segurando minha mão – Talvez agora ele esteja pronto pra isso, já passaram-se três meses. Você precisa tentar outra vez.

Meu coração dispara só de pensar em vê-lo outra vez, em olhar nos seus olhos e implorar pra que ele me perdoe de novo. Sei que Jisung possui um dos corações mais lindos, mas isso não significa que ele precise perdoar sem sentir que deva, e só de pensar na possibilidade dele negar, meu coração se quebra outra vez.

— Acha que é uma boa ideia?

— Se é isso que seu coração está pedindo, então faça, meu filho.

Meus olhos se enchem de lágrimas quando ela me chama de filho pela primeira vez. Durante essas duas semanas, essa é a primeira vez que conversamos como mãe e filho, a primeira vez que ela me escuta, cuida de mim, e me diz palavras de conforto que eu precisava ouvir.

As coisas realmente mudaram pra melhor, meu coração se aquece de tanta alegria e eu automaticamente me jogo no abraço quentinho e acolhedor dela. É tão bom, durante toda a minha vida eu sonhei em ter um colo onde eu pudesse chorar. Agora eu tenho não só um colo, como tenho uma mãe.

— Obrigado... – é difícil dizer, mas eu me sinto confortável agora – Mãe.

Ouço ela rir de alegria, e seus braços me abraçam com mais força aproveitando desse momento tão único. Eu poderia ficar naquele abraço pra sempre, mas assim que ouço Gahyeon buzinar no andar de baixo me movo rapidamente com medo de estar atrasado.

— Deve ser sua irmã – minha mãe diz, e eu enxugo as lágrimas do meu rosto e corro pra descer as escadas até a porta.

Gahyeon estacionou o carro tão longe da calçada que eu não consigo evitar rir. Tem sido muito divertido irrita-la depois que conseguiu tirar a carteira de motorista.

— Tá olhando o que? – ela desce do cadillac prata vestindo um sobretudo vermelho e óculos escuros. De alguns dias pra cá ela fez amizade com alguns alunos de moda da sua nova faculdade, e agora ela se veste totalmente diferente de como se vestia antes.

— Nada – dei de ombros com deboche, sem muita paciência pra irrita-la essa hora da manhã – Por que você chegou agora? Eu acabei de acordar.

— Quer que eu vou embora? Não faço questão de ver você mesmo – ela brinca com mais deboche ainda e eu acabo dando risada.

— Que chatisse, meu Deus – reviro os olhos – Entra, vem tomar café com a gente.

Gahyeon ri e sobe as escadas até nossa casa no andar de cima. Ela tira seu sobretudo pesado e pendura no cabide, depois se curva pra cumprimentar minha mãe.

— Bom dia, senhora Yang – ela diz.

Minha mãe se levanta pra abraça-la, a consideração que ela tem por Gahyeon é idêntica a que ela tem por mim, como se Gahyeon fosse sua filha adotiva.

— Como você está, minha querida? Faz um tempo que não te vejo – ela acaricia as costas de Gahyeon – Você está mais elegante agora.

— Ela tá andando com uma galera estranha – eu brinquei – Agora fica se vestindo assim.

— Não enche! – ela fica irritada me fazendo rir – Eu paguei caro nessas roupas, é pra isso que eu trabalho tanto.

— E como anda o estágio no hospital? – minha mãe pergunta.

— Vai bem, eu ganhei folga pro feriado de amanhã.

— Sério? – eu entrego uma xícara de café pra ela que se senta na mesa com a gente – Eu tive que faltar da TWU pra viajar.

— Aproveita pra descansar, você precisa recuperar suas energias – minha mãe diz.

— Hum... – Gahyeon faz cara de assustada – Eu.... Eu não vou poder descansar, tenho outros planos.

— Que planos? – pergunto enquanto mordo minha torrada e ela me olha com receio.

— Minho, promete que não vai fazer uma cena?

— Depende – eu já começo a rir sem nem saber do que se trata – Não posso prometer nada.

— Por favor, não quero que coloque expectativas nisso – ela junta as mãos implorando – Promete, por favor!

— Tá – eu reviro os olhos mentindo pra ela – Não vou fazer.

Ela respira fundo e põe a mão no bolso da calça, tira de lá um papel dobrado e estende pra mim.

É uma passagem pra Seul, no mesmo horário e vôo que o meu.

— O que? – minha mãe pergunta – Você não ia pra Seul só no dia do julgamento? Por que quer ir mais cedo?

Imediatamente eu começo a gritar e bater palmas enquanto Gahyeon esconde o rosto nas próprias mãos.

— Eu sabia, eu sabia que isso ia acontecer!

Me esforço pra fazer todo o barulho possível usando minhas mãos e minha voz, até que Gahyeon fique constrangida e com as bochechas vermelhas.

— O que está acontecendo, meninos? – minha mãe ri da minha animação.

— Conta pra ela, Gahyeon – provoco – Diz o motivo que te fez querer voltar pra Seul o mais rápido possível.

— Não é só por causa disso – ela fica emburrada – Eu tenho saudades de lá, da nossa antiga casa e dos meus antigos amigos. E quero aproveitar pra conhecer melhor uma pessoa que... Que eu não tive tempo de conhecer melhor antes.

— Ou seja, namorar com o meu advogado – digo – Os dois ficam de papo no celular desde que saímos da Coréia.

— Sério? – minha mãe parece feliz – Vai namorar com ele?

— Não dê ouvidos ao Minho, senhora Yang. Ele faz tudo pra me irritar – ela ignora minha presença e me faz rir – Ele ainda é apenas um amigo, estamos nos conhecendo e queremos sair juntos. É só isso, por enquanto.

— Por enquanto – repito – Ele está caidinho por você, Gahy. Você sabe que vai dar certo.

— Eu tenho um pouco de medo, na verdade. Você sabe que minhas experiências não foram muito boas – ela diz cabisbaixa.

— Isso não significa que você não deva tentar de novo – respondo – As pessoas são diferentes.

— Nenhum relacionamento é igual, Gahyeon – minha mãe diz – Não deixe que suas cicatrizes te impeçam de viver algo bom.

— Tem razão – ela sorri e suspira mais otimista – Então vamos lá, né? Vai se arrumar, bunda mole.

— Eu vou, prometo que não demoro – me levanto da mesa e lavo minha xícara na pia – Obrigada pelo chá, mãe.

— Denada, meu filho.

Seul, Coréia do Sul.
10:36

— Que saudade – eu respiro fundo me sentindo envolvido pelo clima gostoso da Coréia, e a sensação boa de voltar pra um lugar que gosto tanto.

— É... – ouço Gahyeon parada do meu lado esperando que meu momento reflexivo acabe, e eu finalmente saia do meio do pátio do aeroporto.

— Senti falta daqui – olho sorrindo para as letras em hangul nas lojas do aeroporto. Até ter contato com a minha língua materna outra vez me faz sentir em casa.

— Eu sei – Gahyeon responde sem se importar, o que me faz olhar pra ela procurando entender o motivo da sua carranca – Será que a gente pode ir pra casa logo?

— Tudo isso é ansiedade pra ver Seungmin? – provoco.

— Não – ela bufa e revira os olhos – Eu não gosto muito do aeroporto daqui, você sabe...

— Ah! – me dou conta e pego minhas malas no chão – É verdade, então vamos. Você já chamou um táxi?

— Já – ela responde andando do meu lado em direção a saída – Está a caminho.

Algum tempo depois de esperarmos do lado de fora, o carro de aplicativo parou e o motorista nos ajudou a carregar as malas. Durante a viagem até nossa antiga casa, eu e Gahyeon não tiramos os olhos da janela por um segundo sequer.

Sei que não faz tanto tempo assim, mas é bom poder estar aqui de novo, e ver os mesmos prédios e casas que foram minha paisagem preferida durante minha vida inteira. Mesmo que eu também goste tanto da China, penso em continuar vivendo na Coréia, trazer minha mãe pra cá quando tivermos dinheiro o suficiente pra mudança e mostrar a ela cada lugar onde eu tenho uma boa lembrança. Quero que ela conheça tudo sobre mim e saiba tudo que vivi, pra que não sinta tanto pelo nosso tempo perdido. Vamos recuperar ele criando novas memórias aqui.

— Obrigada – Gahyeon se curvou ao motorista que gentilmente nos ajudou a retirar nossa bagagem do porta-malas.

Eu faço o mesmo, e aceno antes que ele dê partida no carro pra ir embora. Respiro fundo olhando pra nossa casa, está exatamente do mesmo jeito que deixamos, apesar das outras casas na rua parecerem diferentes. Felix pintou a dele, tem um tom esverdeado agora, e isso me faz pensar que talvez não tenha sido tão pouco tempo assim.

— Eu amo essa casa – diz Gahyeon – Mas não te dá uma sensação um pouco ruim ao lembrar de tudo que passamos aqui?

Ao contrário de Gahyeon, não vejo isso com esse olhar. Tivemos lembranças ótimas aqui, vivemos felizes por um bom tempo antes que tudo aquilo começasse a acontecer, mas mesmo com lembranças ruins, eu ainda gosto daqui. Acho que tudo tem seus dois lados opostos.

— Não tanto – respondo – A gente viveu várias coisas ruins nessa casa, mas me sinto grato por poder vir aqui de novo com meu coração feliz dessa vez. É um sentimento bom, na verdade. É gratificante.

— É... – ela suspira com um sorriso – Você tem razão.

Eu giro a chave e entramos na sala, confesso que acabo me assustando um pouco com a bagunça e a quantidade de poeira. Acho que Gahyeon passou um tempo difícil aqui, é visível pela forma como a casa está diferente de como ela gosta que fique. Me sinto triste ao pensar nisso.

— Eca, tá uma sujeira – ela reclama, aparentemente não se sentindo mal como eu – Será que a gente pode descansar um pouco e limpar depois?

— Óbvio – respondo enquanto coloco as malas de lado e vou bater as almofadas no sofá pra tirar a poeira. Gahyeon faz o mesmo pra conseguir se deitar em um espaço pequeno – Ainda preciso ir ao supermercado comprar algo pra gente comer.

— Eu tinha me esquecido disso – ela bufa enquanto tira seus sapatos – Que preguiça!

— Eu vou sozinho, pode descansar – respondo – Quando eu chegar te ajudo a limpar tudo.

— Que bonzinho – ela me olha sorrindo com ironia – Obrigada, Oppa.

— Credo – eu me levanto revirando os olhos – Vou ao mercado antes que eu perca a coragem de sair de casa.

— Será que seu carro ainda funciona?

— Vou descobrir agora – pego as chaves no armário – Preciso abastecer também, talvez eu demore.

— Me dá notícias – ela disse como de costume.

— Tudo bem – aceno pra ela antes de sair de casa outra vez – Até logo.

Chegando na garagem, vejo que meu carro está tão sujo quanto a minha casa, mas eu não esperava nada diferente. Dou algumas batidas no banco do passageiro antes de me sentar, e mando uma mensagem pra minha mãe avisando que está tudo bem. Ligo o carro, que apesar de ter ficado tanto tempo parado não falha tanto o motor. Tenho sorte por morar perto de um posto de gasolina.

Não demoro muito pra chegar até o posto, paro pra abastecer e sinto meu celular vibrando no bolso da calça. É Yizhou. Ela provavelmente recebeu a encomenda que deixei na casa dela.

— Alô?

— Minho? – pergunta confusa – Está tudo bem? Eu acabei de ver o que você deixou.

— Desculpe não ter te avisado antes, você sabe que eu estive muito ocupado nas últimas semanas.

— Eu sei – responde – Mas por que me deixou esse papel?

— Eu achei na gaveta de Yukhei um tempo atrás, você também reparou no que eu reparei?

— Sim – ela parece aflita – O valor baixo.

— Isso. Tem uma conta bancária anotada no papel, eu preciso que você investigue isso pra mim. Acho que tem alguma coisa de errado acontecendo na TWU.

— Quer que eu descubra se essa conta está recebendo dinheiro sujo da TWU?

— Isso! – fico satisfeito quando ela chega direto ao ponto – Parece muito difícil?

— Não, acho que consigo.

— Ótimo – respondo – Estou de viagem agora, mas pode me deixar informado. Obrigada por me fazer esse favor, Yizhou.

— Promete que não vou me meter em problemas? – sua voz é de preocupação.

— Não se preocupe, tem minha palavra.

— Tudo bem.

— Até logo.

— Até.

Respiro mais aliviado agora que Yizhou está me ajudando, a preocupação já não é tão grande quanto antes. Pago o frentista e dirijo em direção ao supermercado agora, mas essas ruas me lembram de que estou próximo a Antares.

Parece um sonho distante quando penso, mas no fundo sei que se eu virar a próxima esquina aquele lugar ainda vai estar lá, me trazendo as lembranças e os sentimentos que eu nunca vou conseguir me livrar.

No impulso, decido virar o quarteirão mesmo assim, pois quero ver com meus próprios olhos como as coisas estão depois desses longos meses. Assim que avisto a placa do estúdio de tatuagens, arregalo os olhos ao perceber que está sendo retirada por alguns trabalhadores. O estúdio está sendo desmontado.

Estaciono o carro um pouco mais distante de lá, e me sento em um banco na calçada pra observar de longe sem que percebam.

Sinto um sentimento diferente no peito, uma sensação de alívio por perceber que realmente todo aquele inferno acabou, e vai ficando cada vez mais distante de mim.

O medo constante e o desespero que me torturavam finalmente foram embora, mas levou consigo todas as lembranças daquela época, todas as coisas que eu rezei tanto pra que permanecessem quando tudo desmoronasse, e como o esperado, foi embora junto ao vento. Ao mesmo tempo que é tão bom pensar que tudo acabou, me machuca pensar que tudo aquilo que eu amava tanto também acabou. Nada permaneceu.

— É estranho, não é?

Meu coração se acalma ao ouvir essa voz, é como ser abraçado pelos pequenos raios de sol que atravessam o tempo nublado. Meu corpo todo relaxa, minhas mãos já não suam ou tremem como era antes. Eu me sinto em paz.

Jisung está em pé ao meu lado, com as mãos no bolso de seu casaco e o cabelo maior do que a última vez que o vi. Está lindo, sempre foi lindo, eu nunca poderia me cansar de admirar como cada parte do seu ser faz o mundo todo não parecer tão belo assim.

— O que? – pergunto com a voz quase inaudível, com medo de falar com ele, como se de repente tivesse se tornado inalcançável.

— Como tudo tem seu lado ruim – ele diz – Nada, em nenhum lugar do mundo, é totalmente bom.

Em segundos, eu entendo o que lhe fez pensar isso.

— Inclusive essa palavra – completo olhando pra placa vermelha sendo retirada da parede.

— É – responde – Inclusive essa palavra.

— Acho que é a forma como as coisas funcionam, tudo se complementa e se equilibra – falo – Se não houvesse duas partes opostas, não haveria equilíbrio, não haveria paz. A paz é o ponto onde nada pende pra lado nenhum, nem pro bom nem pro ruim, é o ponto onde nenhum dos dois lados existe.

Jisung fica em silêncio, e me pego pensando se eu acabei falando demais, e dizendo meus pensamentos em voz alta. Ele não parece ter se importado, depois de algum tempo ele até se senta do outro lado do banco e nós dois continuamos olhando pra placa. Não podemos olhar nos olhos um do outro, é como se uma muralha separasse nós dois nesse banco.

— Tem razão – ele diz depois de um tempo – Se Antares não me lembrasse o dia que entreguei meu coração a alguém, e o lugar onde meu irmão morreu, talvez fosse só uma palavra qualquer. Talvez me trouxesse um pouco de paz.

Engulo em seco e meu coração dói da forma como já estou acostumado. Apesar de tudo, ele ainda lembra daquela noite que vivemos como uma lembrança boa, acho que no fundo ele sabe que apesar de todas as coisas ruins, o que vivemos juntos foi lindo.

— Jisung, eu...

Me lembro das palavras da minha mãe hoje de manhã, e minha voz segue as ordens do meu coração. Eu preciso dizer isso outra vez, não vou voltar pra Seul tão cedo, eu preciso arriscar mesmo que já saiba da resposta.

— Eu sinto muito, de verdade. Eu... Eu preciso do seu perdão.

Dessa vez ele se vira pra me olhar, mas eu não consigo fazer o mesmo. Olho cabisbaixo para as minhas próprias mãos, com medo de escutar o que ele tem pra dizer.

— Já faz algum tempo, eu pensei que você talvez pudesse ter aproveitado seu espaço e... E conseguisse me perdoar por ter errado tanto com você.

Pisco os olhos rapidamente pra não deixar as lágrimas se formarem. Não quero que ele pense que estou lhe forçando a isso, e que a falta do seu perdão deixa toda a minha vida amarga. Eu tenho coisas que me fazem muito feliz agora, mas é claro que se eu também tivesse seu perdão, eu poderia viver muito melhor, e acredito que ele também.

— Eu já te perdoei, Minho.

Dessa vez eu tenho coragem de levantar meu olhar, e quando meus olhos se encontram com os dele vejo a sinceridade que seus olhos transmitem, e a forma como ele me olha com respeito por mim e pela nossa história, não com a indiferença de antes.

— Mesmo? – eu sorrio empolgado e sentindo meu coração disparar com a mais profunda felicidade e alívio que já senti.

— Mesmo – ele confirma, e quase como um instinto eu tento inclinar meu corpo pra mais perto do dele – Mas eu não te amo mais.

Me afasto de uma só vez, e toda a esperança que criei nesses breves segundos foi arrancada pela raiz.

— Nossa história acabou – ele volta a olhar pra placa que agora está sendo transportada pra longe – Agora você vive a sua vida, e eu vivo a minha. Cada um segue seu caminho.

Meu coração se quebra de novo, e só agora percebo que eu inconscientemente associava esse perdão com o nosso recomeço, mas isso não pode mais acontecer. Jisung me perdôou, é o suficiente pra que eu viva em paz. Agora eu preciso aceitar viver sem seu amor pra sempre.

— Eu... – me sinto perdido e nervoso sem saber o que dizer – Eu... É... Eu sei, e de qualquer forma, obrigada por isso. Obrigada por ter me perdoado.

— Eu não podia viver com essa pendência pra sempre – disse – E aliás, meu irmão se foi, e eu preciso deixar ele ir. Ter mágoa de você não vai trazer ele de volta.

— Eu... Eu sinto muito.

— Tudo bem, Minho – ele diz – Você já sentiu demais. Tente viver tranquilo agora.

— Eu tentarei – minha voz treme – Eu... Eu espero que viva uma vida boa e tranquila também.

Jisung se levanta, suspira enquanto ajeita os bolsos do casaco e meu coração dói por saber que essa é a hora em que nos despedimos pra sempre.

— Como você mesmo disse, nada é perfeito, não é? O ponto de paz é o equilíbrio entre os dois lados – disse indo embora – Então eu vou tentar achar a minha paz. Encontre a sua também.

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