A arte de perder - III

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Perder. Seis letras, duas sílabas, uma oxítona, um verbo transitivo e um sentimento violentamente destrutivo.

Elizabeth Bishop trouxe uma definição curiosa para o meu íntimo; de maneira tão traiçoeira que me fez enxergar algo muito simples, mas que poucas pessoas são capazes de compreender: Perder não é nenhum mistério.

Ela advertiu que muitas coisas contêm o acidente e somos capazes de perdê-las, mas, no fim, não é nada sério. E com o passar de minha vida, fui aprendendo a perder.

Perdi desde muito cedo, ainda quando menino e igual à todas as outras crianças. Começando pelo ensino fundamental, quando minha caixinha de giz de cera colorido, que deixei fugir dos meus olhos por um ínfimo segundo, desapareceu; perdeu-se de mim. Nunca mais pude encontrá-la.

Depois fui menos criterioso, perdi minha força de vontade e dignidade interna diante de tantos anos, curtos e longos, em que Yoongi ocupou a minha história; sugando cada gota de mim, pouco a pouco. Ele era um sanguessuga, todavia, no fim, sua sagacidade devorou-me com a rusticidade de um animal selvagem.

Lembro-me de um exato natal, tão colorido e radiante. Eu estava, pela primeira vez, sentindo-me completo, uma sensação muito particular e estranha, mas boa. Então Yoongi subiu no pequeno palco, que ficava ao fundo da enorme casa de praia em que estávamos. Ele docemente ligou o caraoquê e cantou.

Ainda posso relembrar a sensação de morrer e permanecer vivo dentro de um corpo. Posso sentir a premente e gélida brisa natalina, naquela noite enfeitada, com toda família reunida.

Consigo até ouvir sua voz eufônica, mas roufenha e doce, ecoar no microfone, naquela música tão mélea.

"A outra mulher vai sempre chorar até dormir

A outra mulher nunca terá o seu amor para manter

E com o passar dos anos...

A outra mulher vai passar a vida sozinha

Sozinha".

Senti que, de alguma maneira pressurosa, eu perdi; mas não é nada sério, porque essa é a arte de perder.

O problema é o que estou perdendo agora, o contratempo foi a falta de critério. Vejo minha vida se esvaindo de mim, diante de um tribunal; estou presenciando tudo escapar de minhas mãos, de maneira lenta e dolorosa. Por isso, sinto a necessidade de discordar de uma escritora fenomenal e poetisa importante do século XX.

A arte de perder não é um mistério, mas preciso manifestar: É muito sério.

Julgamento. 10 de setembro, 2020.

Xeque-mate... Isso foi o que Jung Hoseok pôde silabar lentamente para mim, não soprando som algum de seus lábios profanos; no entanto, ainda assim, ecoou como um grito poderoso, que me fez balançar sobre o banco de madeira maciça.

Para me sentir vivo, para conseguir existir em tal dolorido presente, segurei-me fortemente na bancada e senti um nó insistente ralhar minha garganta.

Não funcionou, permaneci em meus próprios pensamentos, preso à minha ruína, como se fosse impossível arrancar-me de lá. Eu enxergava todos, mas nenhuma palavra, nenhum som, nem mesmo um vagaroso gesto, eu conseguia captar ou transmitir, nem por um momento breve.

Mas quando os seus olhos pretos me olharam, fez-me abandonar o meu mundo, para de fato estar no mundo. Fazia-me parar de ouvir, para então cuspir minhas palavras entaladas.

INSACIÁVEL • jjk + pjmOnde as histórias ganham vida. Descobre agora