TRINTA E DOIS

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Se um dia você precisasse se hospedar em Nova York, o Hotel Topo do Mundo com certeza não estaria entre as suas primeiras opções de acomodação. Você escolheria um hotel melhor, localizado perto do Central Park ou, quem sabe, na Times Square, se tivesse dinheiro para tanto. Mas não o Topo do Mundo: não o hotelzinho de três andares e vinte quartos que ficava em SoHo, Downtown. Ou – como era chamado pelos vizinhos – o Hotel do Velho Lotz, que era o zelador, recepcionista, porteiro, gerente e, com exceção das camareiras, o único funcionário do lugar desde tempos imemoriáveis.

E isso não é só uma força de expressão: até onde todo mundo sabia, Arcturus Lotz realmente comandava o Hotel Topo do Mundo desde o dia em que Deus criara a Terra. O velho Lotz era simplesmente uma parte de Nova York: sempre estivera e sempre estaria ali, assim como a Ponte do Brooklyn, a Estátua da Liberdade e o Empire State – isto é, se os terroristas não decidissem dar uma de engraçadinhos de novo e lançassem seus aviões sobre o prédio.

As suas chances de trombar com o velho Lotz andando por Downtown eram altíssimas. Todos do bairro o conheciam: o senhor que tarde sim e tarde também caminhava ao pôr-do-sol, vestindo seu terno azul de gravata vermelha, seus sapatos de couro e com sua bengala de cabeça prateada. Embora o velho Lotz nunca fosse visto usando-a. A bengala parecia ser mais um enfeite, um ornamento para completar o ar de realeza que ele costumava exalar. Ao vê-lo, seus cabelos brancos feito flocos de neve e seu rosto quase sem rugas, seu corpo magro e a conservado, você diria que Arcturus Lotz tinha cerca de sessenta anos. Só que ele era muito, muito mais antigo que isso. A única coisa que denunciava a sua verdadeira idade era a sabedoria ancestral que habitava o fundo de seus olhos. De seus olhos verdes.

Olhos que Frank O'Malley com toda certeza reconheceria.

Boatos corriam. Algumas das camareiras que trabalhavam no Hotel Topo do Mundo diziam que o velho Lotz, apesar de ser um senhor amável e sempre tratá-las com respeito, era também reservado ao extremo. Quando não estava na recepção ou na portaria, elas contavam aos namorados e amigos, o velho Lotz podia ser encontrado trancado na sala do gerente. A porta jamais ficava aberta. Às vezes, tarde da noite, quando até mesmo Nova York caía no silêncio, alguns hóspedes escutavam vozes vindas daquela sala. Palavras que eles não reconheciam, um idioma que fazia o tutano em seus ossos congelar, que invoca memórias de mundos e lugares distantes, além dessa galáxia. De manhã, tomavam aquelas vozes por sonhos e não pensavam mais nelas.

Numa manhã de quinta-feira, Ellie Look, uma jovem de 21 anos que acabara de se mudar para Nova York para cursar Teatro e que arrumara um emprego como camareira no Topo do Mundo para ajudar a pagar os estudos, vislumbrou sem querer a sala do gerente. Ela passava pelo corredor com o carrinho cheio de lençóis limpos e dobrados no mesmo instante em que o velho Lotz saía da sala. A porta se abriu e Ellie – sem querer mesmo, ela não era uma enxerida que ficava metendo o nariz na vida dos outros – olhou o interior do lugar. À noite, deitada na cama com seu noivo, ela disse:

- Lembra daquilo que eu falei pra você outro dia? Sobre aquela sala no hotel onde eu trabalho, que fica sempre trancada?

- Hmmm – fez seu noivo, equilibrando o cinzeiro no peito e acendendo um cigarro. – Lembro. O que tem?

- Então. Eu vi o que tem dentro dela.

- E aí? Pedaços de corpos, como eu disse?

- Não – Ellie riu. – É só uma salinha normal. Com uma mesinha, uma estante com alguns livros e uma cama. Acho que meu chefe dorme lá.

- Então pra quê tanto segredo?

- Não sei. Também não entendo – ela franziu a testa. – Embora...

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