NOVE

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Em frente ao espelho do banheiro da tenda 3, Russel Skies se barbeava. Tinha o rosto coberto por espuma e passava devagar a navalha nas bochechas, arrancando os pelos grisalhos. Sentia-se cansado, mas não queria que isso transparecesse. Sua mãe sempre lhe dizia: Quando você se tornar um homem, terá que se portar como tal. E isso inclui cuidar da sua aparência, mesmo que esteja se sentindo um merda. Tornar-se um homem. Que expressão mais aterrorizante e abrangente, cheia de margens não exploradas. O que era tornar-se um homem? Que ritos de passagem um garoto tem que enfrentar para tornar-se um homem? Quem impunha as condições e decidia o momento em que a criança deixava de ser criança? Skies não sabia. Chegara onde estava hoje passando por cima de perguntas assim, descartando-as sem pudor. Os caminhos que percorrera não deixavam espaço para indagações filosóficas e, embora a estrada que escolhera o houvesse levado a algum lugar – até ali, naquela fazenda no meio do nada com o mundo prestes a desabar à sua volta –, Skies nunca parara para pensar se o destino no qual o rio de sua vida desembocara era o mesmo que ele planejava atingir no começo da jornada. Agora, a questão lhe ocorria: será que ele havia se tornado um homem? Será que a mãe sentiria orgulho do filho? Ele esperava que sim. Desejou poder perguntar isso a ela e obter uma resposta que não fosse um balbuciar senil.

Bateu com a navalha na pia. Cortara o queixo e um filete de sangue escorreu por seu pescoço. Ele o limpou com a toalha de rosto e saiu do banheiro para o vestiário, usando apenas uma cueca samba-canção. Os trajes biológicos estavam pendurados em fileira ali perto, e Skies vestiu um. Já era o terceiro que usava naquele sábado, e o dia ainda estava só na metade.

Skies pegou um dos capacetes que ficavam ligados aos tanques de oxigênio nas costas do traje, mas não chegou a colocá-lo. Crane entrou no vestiário e o interrompeu.

- Ah, aí está você – disse Crane. – Tem um minutinho?

- Depende. É importante?

- O que você acha?

Skies suspirou. Que coisa, ele só queria um segundo de paz. Será que era pedir muito?

- Tudo bem. Mas seja rápido.

- Dei uma olhada nos exames da mulher. E adivinha só? Ela está com o vírus.

- Impossível – Skies balançou a cabeça. – Saberíamos se ela estivesse doente. - Eu disse que ela está com o vírus, não que ela está doente.

Skies esperou que o colega dissesse algo mais, mas Crane ficou apenas olhando para ele com um sorrisinho besta e esperto no rosto.

- Arlo, que Deus me ajude, mas se você não desembuchar logo eu...

- Certo, certo. Desculpe – Crane disse. – O vírus está no sangue dela, mas ela não manifestou os sintomas porque o nosso amigo está tirando uma soneca. Entendeu? Ele está dormente.

- Dormente?

- Isso. E parece que não vai acordar – Crane deu de ombros. – Por algum motivo, o vírus decidiu deixar essa mulher em paz.

O que era uma tremenda bobagem. O vírus não decidia nada. Ele era mortal, sim, mas não inteligente. Fora programado por alguma natureza desconhecida para cumprir com apenas uma função: encontrar um organismo e destruí-lo de dentro para fora. Não havia decisão nesse ato. Havia apenas um patógeno intracelular mecanicamente imbatível que pulverizava em questão de horas o sistema imunológico e realizava um ataque suicida equivalente a uma bomba atômica explodindo nas células.

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