VINTE (ii)

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Como Scott desconfiava, os carros abandonados na estrada eram tão úteis para ele quanto óculos de grau para um cego. Nenhum funcionava. Ele tentou dar partida em um Audi que estava com a chave na ignição – precisou tirar do banco do motorista um cadáver ressecado cuja pele podre grudou-se em seus dedos feito goma de mascar – e não conseguiu. Arriscou também fazer ligação-direta em pelo menos outros três veículos, e nada. Desistiu e seguiu seu caminho a pé.

No momento em que a noite caía, Scott estava com os pés doendo e inchados dentro dos sapatos. O que não era nenhuma surpresa, já que ele andara sem parar desde que deixara Crane e as garotas. Olhou para os dois lados da estrada, procurando uma placa com o nome de uma cidade ou qualquer coisa que pudesse indicar onde diabos ele estava, e não encontrou nada do tipo. A única coisa à vista era um outdoor comido pelo tempo e meio escondido pelas árvores que cresciam sem controle. Mostrava o rosto de uma lutadora de boxe com o nariz sangrando e um sorriso determinado, anunciando: LUTE COMO UMA GAROTA. A assinatura era o logo da Nike.

Andou mais um pouco. O dia findou: o céu, que se abrira após a passagem do tornado, adquiriu um tom roxo de hematoma e então foi engolido pelo negrume da noite. Não havia estrelas nem lua. Scott decidiu que era uma boa hora para parar – seus pés estavam em chamas – e aproximou-se de um Hyundai enferrujado largado no acostamento. Poderia dormir nele e continuar sua caminhada de volta para Corinna assim que a manhã raiasse.

Ele arrancou as trepadeiras que cobriam o carro e tentou abrir a porta do motorista. Estava emperrada, porém cedeu quando Scott deu-lhe um tranco, escancarando-se tão de súbito que ele quase caiu sentado no chão. Um fedor pulsante e adocicado o atingiu como um soco. Scott tampou o nariz e espiou o interior do Hyundai. Os bancos da frente estavam vazios, mas havia algo no banco traseiro. Um carrinho verde de bebê, coberto por um lençol branco, ao lado de uma mamadeira cheia pela metade de um leite amarelo e estragado. Era dali que vinha o cheiro.

Scott bateu a porta e se afastou. Havia outros carros na estrada, só que eles não pareciam mais abrigos para passar a noite. Pareciam túmulos. Dormir neles não seria diferente de deitar-se em um caixão. Scott teve uma visão de si mesmo dividindo a cama com um cadáver, e achou melhor deixar a ideia pra lá. Arrumou a mochila nas costas e seguiu para a floresta que margeava a Interestadual.

Adentrou as árvores. O negrume era total. Scott abriu a mochila e revirou-a até encontrar uma pequena lanterna. Ligou-a, e o feixe de luz brilhou com a intensidade de um holofote naquela floresta escura. Esperou para ver se as pilhas não iriam falhar – elas davam para fazer isso com uma frequência irritante – e voltou a caminhar, enroscando os pés doloridos nas raízes e tentando não imaginar o tipo de animal selvagem que vivia por ali.

Depois de uns dez minutos, encontrou uma clareira. As árvores tinham rareado, formando um círculo em torno de um espaço coberto de grama. Havia uma pequena barraca ali, que dava a impressão de ter sido abandonada há muito tempo. Ela sacolejava ao vento e os rasgos em sua lona abriam e fechavam como bocas falando.

Scott mirou na barraca a luz da lanterna.

- Ei! – disse. A mão direita segurava a .40 S&W. – Oi, tem alguém aí?

Nada. Com cautela, Scott foi à barraca, esperando que a qualquer momento que algo – ele não sabia exatamente o quê – saísse dela e pulasse sobre ele. Isso não aconteceu. O zíper da barraca estava aberto, e Scott lançou o feixe de luz da lanterna dentro dela. Viu um lampião coberto de poeira sobre um caixote de madeira, um saco de dormir embolorado e uma mochila. Pegou-a e abriu-a: em seu interior havia somente uma faca de caça em uma bainha de couro gasto, duas camisas masculinas de flanela com manchas de suor e uma calça-jeans rasgada, além de um caderno grosso de folhas amareladas.

A Viajante.Where stories live. Discover now