VINTE E NOVE (ii)

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A coisa vestida de Donald dormia sempre em sua caixa de vidro.

Eu tinha oferecido para ela um dos escritórios que ficaram desocupados depois que nossa equipe abandonou a Caixa, mas ela recusou. Disse que preferia a cama na qual dormira pelos últimos quinze anos. Nisso, ela era igual a nós: uma criatura de hábitos. Todos os dias, após nos ajudar nos laboratórios, ela voltava para sua prisão.

Só que não era mais uma prisão. A porta ficava aberta o tempo todo, e a coisa enchera sua caixa de vidro com livros que achara espalhados pelos escritórios. Romances, ficção, biografias, poesia: ela lia de tudo. Mais de uma vez, ao vê-la deitada na cama com um livro aberto nas mãos, eu me peguei olhando para Donald e precisei lembrar a mim mesmo que não, aquela coisa não era meu irmão.

Talvez Arlo não estivesse tão errado, afinal. Eu tinha dificuldades para desassociar meu irmão da coisa que o possuíra.

Certo dia eu desci ao Subsolo 8 para chamar a coisa para comer. Jimmy e Dylan, a nossa dupla com nome de desenho animado, tinham encontrado algumas pizzas congeladas escondidas no fundo da geladeira da cozinha do Andar 3, e as assaram no microondas. Quando parei diante da caixa de vidro, encontrei a coisa vestida de Donald debruçada sobre a escrivaninha, sua silhueta meio escondida pelas várias pilhas de livros. Ela tinha uma pequena chave de fenda nas mãos, girando e girando. Como um mecânico trabalhando.

Bati na porta de vidro:

- Ei.

A coisa me cumprimentou sem parar de girar a chave de fenda e também sem me olhar. De onde eu estava parado, não conseguia ver em que ela trabalhava.

- Vim chamar você para... Está tudo bem?

- Claro – ela respondeu. – Venha cá, quero te mostrar uma coisa.

Meio hesitante, eu me aproximei. Parei atrás da coisa e espiei por cima de seus ombros. Ela tinha nas mãos algo pequeno e quadrado, que me lembrou uma minúscula bateria de celular. A coisa estava parafusando um dos lados dela, e por isso ficava girando a chave de fenda daquele jeito. Notei as tralhas espalhadas pelo chão da caixa de vidro: televisores e rádios abertos, walkie-talkies e telefones com as entranhas expostas, placas de computadores e uma cabeleira emaranhada de fios de cobre.

- Que porra você está fazendo?

A coisa deu uma última girada na chave de fenda e ergueu contra a luz o pequeno objeto quadrado no qual trabalhava. Levou-o próximo do ouvido, como se quisesse escutá-lo falar, e virou-se para mim.

- Abra a mão.

Estendi a mão aberta. A coisa depositou o objetivo em minha palma. Era leve e vibrava. Emitia quase um ronronar de gato, um zumbido que fazia cócegas contra minha pele. Ergui as sobrancelhas, sem entender merda alguma.

- Ainda não está pronto – disse a coisa.

- O que não está pronto?

A coisa apontou a chave de fenda para o objeto em minha palma.

- O bloqueador.

O objeto aumentou a força de sua vibração. Não mais um ronronar de gato, mas um avião prestes a levantar voo. Então, sem mais nem menos, ele estourou: explodiu numa bolha de faísca azul e parou de vibrar, soltando para o alto um fiapinho de fumaça. Cheiro de queimado encheu a caixa de vidro. A coisa vestida de Donald torceu a boca. Foi um gesto que me surpreendeu: era incrível como ela absorvia as reações humanas minhas e do resto da equipe.

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