QUINZE (i)

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Scott estava lá no dia em que a cidade de Corinna foi fundada.

O Molec chegara ao Alabama cerca de uma semana depois das primeiras notícias sobre a nova gripe. Scott Amber, com oito anos, já tinha visto os mortos – todo mundo tinha. Um grupo de hackers autointitulada os Cavaleiros do Apocalipse, cujos membros usavam aquelas máscaras brancas de Guy Fawkes, de cavanhaque escuro e sorriso irônico, havia invadido os sistemas do Pentágono, da CIA, da OMS e de só Deus sabia quem mais, e encontrado toneladas de dados em vídeo. As filmagens mostravam as vítimas do vírus sendo levadas em macas para laboratórios secretos espalhados pelo país; soldados do Exército atirando nas cabeças de pessoas infectadas e enrolando-as em lençóis sujos antes de jogá-las em valas cavadas em algum lugar escondido entre as montanhas; homens de terno e gravata com cabelos brancos assinando ordens para que cidades fossem bombardeadas às cinzas. "O Governo mentiu para vocês", diziam os Cavaleiros. "Não é uma gripe, é uma arma de destruição em massa que saiu do controle. Vocês estão sendo enganados".

Os vídeos vazados tomaram conta da internet. Os noticiários também não falavam de outra coisa. Certa noite, Scott estava em casa, de pijamas e esperando a hora de ir para cama, vendo com os pais e Margot o jornal, até que o âncora – que parecia gripado, tossindo e de olhos vermelhos – avisou aos telespectadores para que "as crianças fossem tiradas da sala", exatamente como eles falavam em Hollywood, pois "as imagens eram perturbadoras". Seus pais haviam enxotado ele e a irmã para os quartos, mas Scott e Margot esconderam-se no alto da escada e, encolhidos e prendendo a respiração, assistiram à televisão mostrar um filme onde uma família – um homem, uma mulher e duas garotinhas loiras que não podiam ter mais de cinco anos, uma delas abraçada a um Ursinho Carinhoso de pelúcia de pelo amarelo com um arco-íris de glitter estampado na barriga – era ajoelhada em um quintal e fuzilada por soldados. Depois disso, Scott não conseguira dormir, o barulho dos disparos repetindo-se em looping dentro de sua cabeça. Mesmo três décadas depois, ele ainda acordava com aquele som ecoando em seus pesadelos.

Scott estava na escola, fazendo exercícios de Matemática, quando o Exército chegou a Birmingham. Uma sirene começara a soar, mas não era como aquela que anunciava o intervalo entre as aulas: era bem mais alta, bem mais urgente. A professora, uma mulher com os cabelos já grisalhos e que usava sempre o mesmo vestido amarelo estampado por margaridas, saiu correndo da sala e voltou logo em seguida, dizendo para os alunos formarem uma fila para irem embora. As aulas haviam sido canceladas e eles todos passariam alguns dias em casa.

- Igualzinho como nas férias – ela sorrira, embora fosse um sorriso frágil, tremido nas pontas e prestes a cair do rosto da professora como uma folha seca soprada pelo vento de outono.

Os alunos guardavam o material, fechando os cadernos e apostilas e enfiando os lápis e canetas nos estojos, mas a professora lhes dissera para deixar aquilo de lado. "Depois vocês pegam suas coisas", e mandando-os se apressar, rápido, rápido, andem logo. Scott ocupara seu lugar no fim da fila – as crianças menores ficavam na frente, e Scott era alto mesmo então. A sirene continuava a gritar – uuuuáaaam!, uuuuáaam!, tão barulhenta que os dentes de Scott vibravam nas gengivas.

Era impossível se mover pelo corredor. A escola inteira estava ali. Os alunos corriam por todos os lados, gritando, chorando, chamando por suas mães. Alguns professores e funcionários tentavam organizá-los, outros se juntavam a eles e fugiam para as saídas. Scott viu o Sr. Tudor, que dava aula de História, socar um aluno do segundo ano no nariz para tirá-lo da frente, cuspindo e xingando. Alguém chocou-se contra Scott e lançou-o ao chão: ele caiu estatelado, de quatro em uma confusão de pés calçados por tênis All Star. Não havia mais fila para guiá-lo, só um turbilhão de pernas e de joelhos que batiam contra as laterais de sua cabeça. Ele enrolou-se em uma bola, com medo demais até para chorar. O ar pesado e quente se recusava a entrar em seus pulmões. Fechara os olhos, rezando ao Anjo da Guarda, como a mãe lhe ensinara.

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