dois

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No caminho de volta para casa Raquel me faz companhia — como sempre — não parava de falar um segundo se quer. Fomos liberados mais cedo, a professora de química não compareceu. Ela raramente dava o ar de sua graça.

Obrservo algumas mulheres caminhando em direção a um estabelecimento. Todas montadas e com roupas curtas.

Quem é Alícia perto delas?

Não pude passar na biblioteca da escola a mesma estava fechada. Gosto muito de ler, passo o dia inteiro com meus olhos grudados em um pedaço de papel com várias frases. Ler me faz viajar sem sair do lugar, me acalma — dependendo do livro — abre minha mente. Fico triste em saber que hoje não terei o que devorar.

— Alá o Alê Tatoo te encarando...de novo. — Raquel alerta.

Disfarçadamente levo meus olhos até o grupo de homens parados onde antes estará Renan. Lá estava ele, Ale tatoo, frente da comunidade me encarando novamente. Poderia dizer que o motivo é meu pai estar lhe devendo, mas não é. Há anos ele me fuzila com seu olhar e eles não me transmitem nada além de raiva. Não sei muito sobre o mesmo, tudo o que sei é o que todos sabem ele era um tatuador aqui da comunidade, começou fazendo tatuagens nós marginais e hoje é um deles. O fato de ter sido tatuador justifica seu corpo e rosto tatuados, provavelmente esse homem tem 90% do seu corpo tatuado. Isso é assustador.

— Não fique encarando. — Murmuro.

— Ele é estranho — comenta ela — mas tem alguma coisa nele que me faz querer sentar sem parar.

— Como você é depravada. não é só você que sente isso, metade da comunidade sente. — Digo rindo. — Ah, talvez seja porque para ser bonito precisamos ser feios.

— Você não pode falar de feiúra. Parece aqueles desenhos japonês, porra.

— Sei não. As meninas lá na escola dizem que tenho cabeça de batata.

Nós duas nós olhamos e caímos na risada.

— Essas recalcadas são invejosas. Quero ver fazer na mão — Ela diz batendo palmas. Chamando atenção daqueles homens.

Seguro em seu braço e apresso meus passos, consequentemente os dela também. Eu só queria sair do olhar atento do tatuado.

— Quer que eu vá na sua casa mais tarde

Raquel pergunta parando em seu portão.

— Não precisa. Amanhã te conto como foi o encontro.

— Você precisa de um celular. Vou morrer se ansiedade até amanhã. — Ela revira os olhos. — tô indo. Se cuida e use camisinha.

— Palhaça! — Rebato sem graça.

Chego em casa e noto que minha mãe está na cozinha. Nossa casa não é muito grande, então com poucos passos chego até a mesma. Paro atrás dela e a vejo preparar a massa do bolinho de chuva. Comemos isso quando não há comida para alguma de nossas refeições. Normalmente bolinho de chuva é sinônimo de alegria na casa de uns, aqui em casa é sinônimo de tristeza e miséria.

— Mãe, cheguei — Alguma notícia?

— Não. — Responde sem desviar sua atenção do que faz.

— Falei com Renan, ele vai nos ajudar. — Finalmente ela se vira, limpa suas mãos na lateral de seu corpo e me observa. — Ele vai ver se meu pai foi comprar drogas em alguma outra comunidade.

— Se ele entrou em outra comunidade...

— É mãe. Sabemos que nenhum morador daqui pode entrar em outra comunidade, ainda mais as que tem por aqui. Todas rivais

— Não vamos pensar no pior. Fiz bolinho de chuva — Ela finge animação — seu pai estava com o dinheiro das compras. Não tem mais nada além de farinha de trigo, açúcar e café.

Passo as mãos pelo cabelo e respiro fundo. Estalo meus dedos — faço isso sempre que estou nervosa — e me sento na cadeira enferrujada.

— Eu preciso te ajudar — Sussurro.

— Você só tem dezessete anos Alícia.

— Muitas pessoas trabalham nesta idade, mãe — Rebato

— Você não é essas pessoas. Vai estudar. Eu vou conseguir mais faxinas.

O silêncio toma conta do local. Minha cabeça começará a doer, isso se tornou um hábito.

— Ainda tem remédio? — Indago.

— Não. Você precisa usar o óculos, Alícia. Não sei como está enxergando.

Uso óculos desde muito nova, mas infelizmente meu grau mudou e junto com ele as lentes, estão mais grossas. Não suportando os comentários idiotas na escola, deixei de usá-los. Uso apenas em casa.

— Mãe, posso sair hoje a noite?

Pergunto sem jeito, afinal meu pai estava desaparecido. Não quero parecer incoveniente.

— Pode. Você precisa se distrair. Vou a um culto na casa de Neide, terá algo para comer no final, guardo e trago para você.

Aquilo fez meu coração estremecer.

— Ele vai aparecer, mãe.

— Mesmo que apareça. Nós temos que aprender a nos virar sozinhas. Estou de saco cheio dessas atitudes dele.

— Você tem razão. — Me levanto — vou tomar um banho, talvez a água gelada alivie a dor.

Vou até meu pequeno quarto, e com pequeno quero dizer minúsculo. Cabia apenas meu colchão de solteiro, minha cômoda e um móvel pequeno onde eu guardava algumas coisas, uma delas é meu terrível óculos.

Vasculho minha cômoda em busca de alguma peça de roupa que fique no mínimo boa em mim.

Opto por um vestido florido soltinho, não é algo que as adolescentes de hoje em dia usará, mas eu gostei. Meu encontro com Renan será inesquecível, esse vestido fará com que eu relembre.

Após um banho longo, visto qualquer roupa e me sento para comer junto a minha mãe, que logo se retira afim de se arrumar para o tão esperado culto.

Penso comigo mesma, as pessoas recorrem ao ser divino — Deus, Jesus — quando tudo está complicado demais, e então quando tudo dá certo elas simplesmente vão embora, muitas vezes sem agradecer. Nossa, se eu fosse Ele, teria pulverizado metade dessas pessoas. Não tenho religião específica mas gosto bastante do Espiritismo. Uma das razões pela qual eu gosto é que nele não há tantos julgamentos, não há tanta intolerância, muito pelo contrário as pessoas buscam amar uns aos outros, sem acepção. É realmente o: Fazer o bem sem olhar a quem.

Minha mãe nunca foi religiosa ao ponto de ir em cultos, mas desta vez o negócio está sério. Espero que Deus ouça suas súplicas.

Entre Rosas -(DEGUSTAÇÃO) Where stories live. Discover now