⋆⊰ Capítulo 68 ⊱⋆

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[...]

Eu quero me acalmar, quero sair dessa vala, mas nesse momento me sinto como quando soube que meu pai havia morrido. Me sinto destruída e com essa sensação repugnante que é pior do que tudo.

— O que foi, Ally? — Ryan continua a me abraçar, mas eu mal consigo olhar para ele, mal consigo encontrar minha voz entre tantos soluços. — Conversa comigo, anjo. — Sua voz soa angustiada e acredito que há anos não choro dessa maneira.

— Não, não quero falar... — Balbucio como posso, me negando a mostrar meu rosto e a forma deplorável em que me encontro.

— O que aconteceu? — Tyler surge com o olhar preocupado na porta e me encolho ainda mais no lugar.

— Nada, eu quero ficar sozinha. Por favor, me deixa sozinha.

— Eu não vou te deixar sozinha nesse estado, Ally. — Ryan acaba por se sentar ao meu lado, se negando a me deixar. — Daqui a pouco eu volto pro quarto.

Ouço quando a porta se fecha e somos apenas nós dois novamente.

Ryan apanha uma toalha e a passa pelos meus cabelos suavemente, tanto que o movimento é relaxante e eu fecho os olhos, tentando me recompor. Ele deita minha cabeça em seu ombro e não diz mais nada, apenas acaricia meus cabelos molhados e espera o meu tempo.

Eu sempre evitei chorar por algo relacionado a minha mãe, porque sempre pensei que ela não merecia minhas lágrimas, mas agora eu posso chorar, não é?

Isso é demais para segurar. Só por esse pouco eu preciso.

— Eu não sou filha do Luke. — Balbucio, mantendo meu rosto afundado em seu pescoço e percebo que suas carícias param, demonstrando sua confusão. — Sou filha de algum monstro que abusou da minha mãe. Por isso ela me odeia.

— Não, ela te odeia por escolha própria. Você não tem culpa do que aconteceu com ela, Ally. — Ele me aconchega mais em seu abraço. — Te maltratar não apaga o que fizeram a ela. Não sou capaz de entender o quanto foi horrível, mas não é uma justificativa pra tudo que ela te fez.

— Eu sei, mas eu me sinto tão suja.

— Você não é suja, anjo. Não se tortura assim. — Ele segura meu rosto entre as mãos e dessa vez o permito olhar para mim. — Nada disso muda quem você é, e o que acabou de dizer é uma grande mentira. — Ryan acaricia meu rosto e me mostra ternura. — Luke é sim seu pai. Ele te criou, cuidou de você e te deu amor, apesar de tudo. Nada muda isso, não importa o que sua mãe diga.

— Pai. — Volto a olhar para o alaranjado do fim da tarde que entra pela janela e por um instante fecho os olhos, me recordando do meu pai.

Seu sorriso e os seus abraços, do quanto ele era tudo para mim até o momento da sua partida. É ele, apenas ele. Não importa que eu não tenha seu sangue. Eu tenho suas lembranças, o seu amor e é isso que importa. É isso que me torna sua filha.

— Que bom ver esse olhar de novo. Estava me deixando aflito. — Ryan me distrai e desvio meu olhar da luz de volta para ele, encontrando meu equilíbrio novamente, mesmo que com dificuldade.

— Obrigada. — Suspiro fundo, dispersando o resto de nervosismo que ainda resta dentro de mim e me vejo um pouco mais calma.

— Eu sinto muito, Ally. Por tudo, inclusive pela sua mãe. Mas você entende o que eu quis dizer, não é? — Ryan se atenta a mim e apenas assinto.

Eu não sei qual foi o tamanho da sua dor e desespero em ter sido marcada de forma tão horrível, mas e a marca horrível que ela deixou em mim? Foi justo descontar todo o seu sofrimento em mim por 22 anos? Qual foi a minha culpa?

Ryan pede outra muda de roupas para mim e me troco no banheiro antes de voltar para o quarto. Sinto o olhar preocupado de Tyler sobre mim, mas não tenho estruturas para falar sobre nada disso com ele agora. Apenas me deito na cama e tento dormir um pouco para tirar isso da minha cabeça.

~

— Ally.

Em meus sonhos ouço uma voz distante me chamar. Ela é serena e a princípio não a reconheço.

A luz começa a ofuscar minha visão e de repente me vejo sentada no banco de um carro. É o lugar em que sofremos o acidente, mas diferente do que me lembro, nada está destruído. O carro está intacto, a rodovia limpa, estamos parados e a luz alaranjada do sol no fim da tarde banha tudo ao meu redor. Sinto paz, diferente da tragédia que esse cenário me trouxe.

Ao olhar para o lado vejo meu pai no banco do motorista, com um sereno sorriso enquanto me olha.

— Pai... — Estico minha mão para tocar a sua e por alguma razão não consigo me mover mais para abraçá-lo.

No momento em que sua mão se aperta na minha, eu fecho os olhos, sentindo meu rosto se banhar em emoção. É o mesmo toque que me lembro, o aperto firme e amplo, os calos abaixo do dedo médio e anelar em sua palma, a forma como seu polegar brinca com os nós da minha mão.

— Eu sinto muito, filha. — Sua voz soa baixa e o fito, encontrando seus olhos azuis.

Ele ainda tem a falha de cabelos na testa, esses com um leve tom de grisalho em meio ao castanho escuro. A barba por fazer um pouco alta do jeito como ele costumava deixar. As leves rugas no canto dos olhos e na testa. É tudo tão... ele.

Eu estou mesmo sonhando?

— Eu não queria que você soubesse daquilo. Você não precisava saber daquilo. — Ele cerra os lábios juntos, mostrando sua aflição.

— Não importa. Esclareceu algumas coisas de qualquer forma. — Maneio a cabeça freneticamente, esse assunto não sendo capaz de me obscurecer mais.

Ele está aqui, eu posso senti-lo. É um sonho ou não? Não importa! Eu sinto paz aqui!

— Você é minha filha, Ally. MINHA filha, isso nunca vai mudar. — Ele solta minha mão e alisa meus cabelos, ainda esboçando aflição em seu olhar. — Eu queria muito ter estado com você um pouco mais. — Ele sorri, um sorriso cheio de emoção. — Eu tenho muito orgulho de você e eu te amo muito, filha. — Seu tom muda, é como uma despedida e aos poucos sinto que me afasto dele, a sensação do seu toque desaparecendo.

— Eu também te amo, pai. Sinto muita sua falta. — O nó que se forma na minha garganta é imenso e ele vem com um leve soluço.

É um choro de saudade, essa que deseja um pouco mais de tempo aqui, mas logo já não ouço mais sua voz. Sua boca se move e ele sorri, mas é tudo silencioso. A última coisa que sinto é o seu beijo em minha mão, uma branda paz me abraça e ela é calorosa, até que tudo aquilo some e eu volto a escuridão do meu sono, despertando aos poucos.

A luz da janela me ofusca um pouco, sinto meus olhos embaçados e um toque carinhoso em minha bochecha, arrastando uma estranha umidade.

— Bom dia!

A primeira coisa que meus olhos encontram é Ryan com uma expressão serena enquanto me observa. Ele está sentado ao lado da minha cama e tem o queixo apoiado sobre seu braço.

Toco meu rosto e percebo que o que tanto embaça meus olhos são lágrimas, todo aquele vívido sonho inundando minha mente.

— Eu ia te acordar, porque pensei que estava tendo um pesadelo, mas você estava sorrindo. Com o que sonhava? — Ryan questiona curioso.

— Meu pai. — Balbucio, sorrindo mais uma vez ao lembrar da sensação do seu toque, daquele calor cheio de paz.

Ryan sorri, me olhando com admiração e me beija, como faz todas as manhãs, permanecendo um pouco mais ao meu lado, ambos em silêncio.

Esse sonho pode ter sido criado por um desejo inconsciente de tê-lo aqui ou pelo quanto eu sempre pensei nele, mas foi tão real, mesmo para um sonho. Eu posso mentir para mim mesma que aquilo era real, não posso?

Se foi uma ilusão da minha mente ou não, me fez sentir muito. Eu precisava dessa sensação.

[...]

Luzes da VidaWhere stories live. Discover now