1 - Kelly

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O barulho dos fogos interrompe o meu cochilo no sofá e eu abro os olhos, com um gemido de sofrimento. Mais um ano que começa. Mais 365 dias em que nada vai mudar na minha vida.

365 dias para eu me matar de trabalhar, suspirar pelo meu chefe sem conseguir olhá-lo diretamente nos olhos...e voltar, sozinha, para o meu apartamento e para os meus gatos.

Jujuba, minha gata vira-lata de olhos verdes, esfrega-se nos meus pés e mia, como se soubesse que eu estava pensando nela. Pego-a no colo e ela lambe o meu rosto, dando um ronronado feliz pela atenção que está recebendo.

- Eu sei, Jujuba, posso até voltar sozinha pra casa mas não tô sozinha. Tenho você e o seu irmão. - Sorrio à menção do meu outro gato, o arredio Chico. Ele costuma se esconder tão bem que eu não lembro de tê-lo visto hoje. - Tenho os meus pais, também. Que, diga-se de passagem, nem lembraram de me ligar pra desejar feliz ano novo.

Meu estômago ronca e eu levanto do sofá, indo procurar algo para comer na cozinha. Abro a geladeira e os meus olhos são atraídos para uma garrafa solitária: um espumante Veuve Clicquot rosé. Um presente (caríssimo, aliás) que eu mesma comprei para Ricardo me dar, porque, afinal, comprar coisas para ele é uma das minhas principais atribuições.

Coloco os meus pensamentos de lado e pego a garrafa de espumante gelada, depositando-a em cima da mesa. Dez minutos, um saca-rolhas e um tutorial no YouTube de como abrir uma garrafa de espumante depois, estou bebendo o líquido doce e rosado e rindo com as bolhas que fazem cócegas no meu nariz.

Sinto-me incrível após duas taças. É como se eu flutuasse e pudesse fazer qualquer coisa, incluindo ligar para o meu chefe, que, infeliz ou felizmente, está o com celular desligado e não tem caixa postal. Tenho a impressão de ter tentado ligar mais algumas vezes, mas a noite não passa de um borrão após a terceira taça de espumante.

Acordo suada e morrendo de calor na manhã seguinte, percebendo que não liguei o ar condicionado. A janela está aberta, bem como as cortinas, e a luz que entra no meu quarto parece ir diretamente para os meus olhos, cegando-me. A minha cabeça dói tanto que parece que o próprio Thor a martela, e nem vou falar do gosto de cabo de guarda-chuva na minha boca e da sede.

Sento devagar na minha cama e respiro fundo, querendo morrer. Primeira resolução de ano novo: não beber mais. A sensação de euforia não compensa a ressaca, e, graças a um telefone desligado, eu escapei de fazer a maior merda dos meus 24 anos de vida...

Deus, o que eu diria a Ricardo, se ele atendesse?

Eu te amo?

Você é um tesão?

Quero que você me coma em cima da sua mesa?

Qualquer uma das opções me faria começar o ano desempregada, e eu não consigo imaginar a minha vida sem vê-lo. Meu chefe é tão lindo, educado e gentil...eu realmente não entendo por que ele não consegue se acertar com nenhuma mulher.

Ele seria homossexual como o irmão mais novo? Juliano é o vice-presidente de marketing da Bianchi e quase tão bonito quanto Ricardo, mas, por ninguém vê-lo namorando, alguém aventou a possibilidade que ele fosse gay - o que, sem dúvida alguma, é uma lástima para todas as mulheres hétero do mundo.

Meu celular toca, fazendo-me parar de pensar nos irmãos Bianchi. Atendo imediatamente.

- Oi, mãe. - Pigarreio. A minha voz está meio estranha. - Feliz ano novo!

- Feliz ano novo, meu amor! Mas você me ligou ontem, não lembra? - Ela ri.

- Liguei? - Puta que pariu, eu não lembrava!

- Ligou, mas você tava estranha...eu até disse pro seu pai que parecia que você tinha bebido. Você falou alguma coisa sobre ligar pro seu chefe, depois reclamou por termos viajado no réveillon e te deixado sozinha.

- Eu posso ter tomado uma taça de espumante ou duas, mãe - admito, meio envergonhada. - E não tem problema eu ter passado o réveillon sozinha, você e o papai nunca viajam e merecem muito! Aí tá quente?

- Demais. E a água do mar é tão transparente e quente...é uma delícia. Você ia adorar.

- Quem sabe eu não vou nas minhas férias, né? A senhora toparia ir comigo?

- Meu amor - ela começa, - você é uma pessoa tão maravilhosa e especial! Quando você vai deixar a timidez de lado e começar a fazer amigos?

- Eu não sei, mãe. Mas é um novo ano, quem sabe eu não possa tentar? - respondo vagamente, vendo um papel com a minha letra embaixo de um dos meus travesseiros. - Manda um beijo pro papai e aproveitem Recife.

- Vamos aproveitar, sim. Te amo, loirinha!

- Também amo vocês, mãe.

Encerro a ligação e pego o papel. É uma lista de resoluções de ano novo, e a minha letra está tão diferente que tenho que me esforçar para entender o que eu mesma escrevi.

Perder peso. (Sério? Porque é algo que eu tento desde que me entendo por gente e não consigo. Próximo!)

Mudar de visual. (Tá, é mais fácil. Estou mesmo precisando de roupas novas.)

Fazer o que for necessário para conquistar Ricardo. (Oi?! Onde, quando, como?! Eu nunca vou ter coragem de me insinuar para o meu chefe, não consigo nem falar com ele direito!)

Guardo a bendita lista na minha agenda, mas, apesar de não me lembrar de tê-la escrito (maldita amnésia alcoólica!), não consigo parar de pensar nela.

365 dias neste ano.

Uma nova oportunidade a cada dia.

E eu provavelmente vou quebrar a cara, mas há uma chance, uma mínima chance, de eu conseguir. Tenho que me agarrar a ela.

Meu telefone toca outra vez e eu o atendo despretensiosamente, acreditando ser a minha mãe. Mas a voz muito masculina que retribui o meu alô não se parece em nada com a dela:

- Feliz ano novo, Kelly, é Ricardo. Posso saber o porquê de você ter me ligado tantas vezes, ontem?

Um frio toma conta do meu corpo e corre pelas minhas veias. Congelo como se estivesse em uma cena final de novela.

Um Clichê Para KellyOnde as histórias ganham vida. Descobre agora