maré oscilante

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O mar sempre foi minha segunda casa. Se bem que tendo um pai pescador é quase impossível não criar uma conexão com o oceano, e comigo não foi diferente; claro que minha avó sempre brigava dizendo que eu era muito novo pra esse tipo de coisa e que eu sequer sabia nadar direito pra ficar saindo com o meu pai quando ele trabalhava, mas acho que ela nunca entendeu muito o que eu sentia quando o barco era sacolejado pelas ondas e meu cabelo ficava quase duro por conta da maresia e do sal. Além do mais, acho que ela nunca soube que o mar não era minha única conexão durante aquelas pescarias matinais, porque não era ela quem sorria pra mim por simplesmente acompanhar.

Como morávamos no litoral, meu pai tinha um dos melhores negócios nesse tipo de lugar que era ser pescador, e eu sei que você deve ter imaginado que ele tinha muita concorrência, mas, acredite que se quiser, pescadores na nossa região eram um tanto raros. Em uma cidade como a nossa, são muito comuns as lendas, e, dentre tantos monstros do mar, era normal que alguém sentisse um arrepio na espinha sempre que alguém falava sobre sereias.

É, eu sei, a sereia Ariel não tem nada de tão ruim assim né? Queria eu que a Disney tivesse trago para nós uma tranquilidade maior com esses seres sobrenaturais, mas isso só fez com que as pessoas tivessem mais cuidado, como se a doçura e os sorrisos fossem uma armadilha mortal.

Se os turistas, que eram constantes por ali, fossem nadar na praia, jamais poderiam ir muito longe, e se algum barco tivesse que navegar, ele teria que estar preparado para qualquer coisa que acontecesse, o que era o caso do meu pai. Nosso barco, um antigo mas muito bem conservado e limpinho, era repleto de várias armas de fogo, arpões, facões e outras coisas que poderiam afastar sereias, e, se isso não fosse suficiente, nós apenas navegávamos usando tampões de ouvido que nem permitia que eu tivesse conversas longas com o meu pai durante o trabalho, mas que nos garantia segurança.

Inclusive, falando nele, meu pai sempre foi um grande contador de histórias e lendas, e acho que ele poderia ler até a lista do supermercado dele pra mim que eu continuaria o olhando atento e encantado. Eu não passava o dia inteiro com ele, desde criança eu apenas o acompanho nas pescarias matinais por ter aulas no colégio, e agora faculdade, durante as tardes; mas as noites, querendo ou não, sempre eram nossas.

Depois de jantarmos, assistirmos um pouco o jornal na televisão e ajeitarmos toda a casa e o barco para a pesca do dia seguinte, eu me deitava em minha cama e meu pai se sentava numa cadeira ao meu lado para poder me contar alguma das suas histórias de marinheiro. Dentre todas elas, a minha favorita era quando ele me contava mais sobre as sereias e, naquela noite, era isso o que ele contaria pra mim.

Sei que uma coisa dessas pode parecer bem infantil, até porque um cara de vinte e um anos pode muito bem só deitar e ficar mexendo no celular até pegar no sono, mas as coisas sempre foram diferentes em casa; não pelo meu pai me tratar com tanto carinho e não ter medo de demonstrar afeto com beijos na testa de boa noite, mas porque eu sempre pareci diferente por ali, como se esse não fosse o meu lugar.

Uma vez, por exemplo, meu pai e eu tivemos que nos mudar temporariamente para outra casa porque a nossa, próxima da praia, estava reformando e eu sempre tive uma rinite bem complicada; as coisas iam muito bem, eu adorava o meu quarto super diferentão da casa que alugamos no centro da cidade, mas bastava que a noite caísse para que eu não gostasse dali nem um pouco. Eu não conseguia dormir sem o som das ondas, se eu pregava os olhos acabava tendo pesadelos constantes sobre espuma marinha e água salgada, e era como se eu não fosse conseguir paz enquanto não tivesse as ondas e o ventinho salgado; meu pai passava noites e mais noites tentando me acalmar quando eu acordava chorando ou desesperado para sair de casa, mas acabou descobrindo com o tempo que só conseguia me fazer dormir em paz quando me falava sobre o mar.

o conjurador de marés | vmin / pjm +kthOnde as histórias ganham vida. Descobre agora