C A P I T U L O 2

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   O último tiro dado por um criminoso é sempre o tiro de glória. O tiro fatal. O tiro que determinará o que será da vida de todos os envolvidos da cena em questão daquele momento em diante. Mas quando o tiro sai pela culatra, o atirador torna-se a vítima, iniciando um novo enredo para uma história ainda mais emocionante. Uma história onde o animal e o caçador trocam de papel, e o caçador passa a ser a presa.

   Aos meus cinco anos de idade, recordo-me de ser plena o suficiente para distinguir-me como uma menina extremamente feliz e sagaz, com a extraordinária capacidade de contagiar e transmitir paz para quem estivesse aos arredores, pois possuía uma aura pura e clara, como a neve em sua melhor temperatura. A maldade era algo que passava-se despercebida por meus olhos grandes e azuis como o mar. Gostava de pensar que passaram de azul para verde por conta de minha inocência roubada, que o verde era uma grande representação de tudo de ruim que restara em mim. Entretanto, ao notar que em oscilações de humor eles voltavam ao azul, arranquei este pensamento de minha cabeça, e fixei o fato de que a inocência não voltaria como um raio de luz para os meus olhos, nem mesmo por frações de segundos. Era tudo balela, afinal.

   Era Páscoa, tão perto de meu aniversário que me lembro de ansiar por presentes antes mesmo de meus parentes e amigos terem a chance de lembrar da véspera. Tudo o que uma garotinha quer é ser adorada por todos ao seu redor, recordando-os de que haviam a necessidade de a amar e de admirar toda a sua beleza infantil e pura. O ápice da felicidade. Estava em minha melhor roupa rosa e meu penteado realçava com graça meus cabelos negros que balançavam com a brisa do vento conforme me movia. E eu me movia muito. Era o tipo de criança que corria por todo o canto e ainda não estava satisfeita com todo o local explorado, tendo a necessidade de explorar cada vez mais, cada vez mais longe, cada vez mais curiosa.

— Call, tenho algo para você! — Ouvi aquela voz tão conhecida por mim e alegrei-me no mesmo momento, correndo afim de seguir seu som e apanhar o meu tão esperado presente. Ora, era meu presente, não era? Ele tinha algo para mim, ele prometeu ter! — Entre aqui, criança, — ele sorriu em seu diálogo, contente em me ver —, iremos fazer algo que deixará um de nós dois muito feliz! — e aquela sentença proferiu algo muito importante sobre sua promessa: ele ficara feliz. Eu jamais me senti feliz novamente após aquele dia.

   As paredes de sua cozinha eram pintadas em tons pastéis. Haviam cortinas bordadas nas duas grandes janelas e uma geladeira atraente, que possivelmente possuía todo o tipo de comida que eu imaginasse. Nunca cheguei a abri-la, pois fome era a última coisa que eu sentia naquele momento. Seu chão era gelado e branquinho, exceto pelas gotículas de sangue que rodeavam meu pequeno e frágil corpo sentado ao chão, olhando ao redor em confusão, euforia e dor. Muita dor. Eu era Callie Muligan, mas não me sentia Callie Muligan naquele instante. Me sentia como a alma de um corpo que acabara de o abandonar para vagar pelo mundo em busca de algo que nem sabia o que era.

   Ele estava sentado em uma cadeira a poucos metros longe de mim, com as mãos apoiadas em sua cabeça e uma expressão tensa o suficiente para carregar o clima da casa, fazendo tudo ficar cinza como uma nuvem de tristeza e maldade, e monstruosidade, e tudo o que há de ruim no mundo. Com certa pressa, o medo tomou conta de meu corpo e um borbulho no estômago me fez derramar tantas lágrimas, que em certo momento, achei que havia secado. Com estas lágrimas, eu reguei flores negras que tomaram conta de minha alma.

— Querida, — ele olhou para mim ao falar —, isto fica entre nós. O que fizemos... — O vi fechar os olhos e balançar a cabeça em negação, fazendo-me secar meu rosto molhado de melancolia com minhas pequenas e fracas mãos. — Não poderá sair daqui. Sua mamãe não iria gostar e ficaria muito infeliz. Quer acabar com todo o nosso amor, querida? Acha que pode carregar esta culpa? — Eu não poderia carregar aquela culpa! Mamãe era a pessoa que mais amava em todo o mundo e queria a fazer feliz, tanto quanto me fazia, custando minha dor e meu sangue.

— Eu ficarei quietinha, Billy. Juro com o dedinho. — Me arrastei até ele com dificuldade e juntei meu dedinho ao seu, prometendo-o sigilo por queimar minha alma e transformá-la em cinzas. Era inimaginável que uma promessa tornaria-se um peso grotesco para alguém que sequer entendia o que estava fazendo, o que acabara de acontecer e os motivos pelos quais aconteceram. E eu chorei por todas as noites. Chorei por sentir culpa em olhar para Billy dando as mãos para mamãe, e com medo das mesmas mãos. Chorei por ter medo de mamãe descobrir o que Billy fez e me culpar, pois havia deixado o medo tomar conta de todo o meu corpo e não fizera nada além de engolir as lágrimas e esconder a dor que meu corpo suportou. Chorei por anos, em todas as noites, até não restar nada além de mágoa.

   A mágoa transformou-se em ódio, o ódio transformou-se em raiva, e a raiva tornara-se em um plano. Com idade o suficiente para entender o que havia me acontecido, também entendi que o mundo não me consolaria da forma que sempre pedi aos céus. O céu é surdo, afinal. Eu me consolaria banhando-me do sangue daquele que me quebrou ao meio. Eu faria-o pagar por cada parte dolorida de meu ser e o obrigaria a implorar pelo meu perdão, cortando em seguida suas mãos sujas e cada membro necessário de seu corpo, pelo prazer de o ver gritar como eu deveria ter gritado. 

   Entretanto, eu ainda era uma adolescente-quase-adulta em desenvolvimento. Ainda sentia-me fraca o suficiente para declarar a morte para qualquer sujeito, e o medo se instalara em mim como uma praga hospedeira, recusando-se a me deixar. Tudo o que fiz naquele dia foi deitar em minha cama abraçando meu maior travesseiro, desejando ter algum porto seguro para abraçar daquela forma e curar cada cicatriz de meu corpo. Mas era só eu, o travesseiro e as estrelas em meu teto. 

Blood Hands (Concluído)Where stories live. Discover now