02. não é tão fácil assim, campeão

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Érico conectou o celular no carregador e se esticou na cama. O papel de parede azul, resquício dos tempos da infância, sorriu-lhe de volta. Ele apoiou os braços atrás da cabeça, contando os planetinhas colados no teto do quarto enquanto as vozes dos âncoras do telejornal noturno chegavam aos seus ouvidos como um ronronar desconexo.

Cléber, o padrasto, possivelmente estaria sentado na mesa da cozinha, cortando as cebolas para a Dona Dai e dando uma espiadinha na televisão tão logo ela virasse as costas. Érico fechou os olhos por um segundo, rindo ao imaginar a mãe fiscalizando de pertinho o trabalho do pobre Cléber, que prestava mais atenção no telejornal do que nas cebolas do jantar.

Ainda de olhos fechados, os pensamentos de Érico vagaram sem destino, até encontrarem parada em Isabel e naquele dia tão... atípico. Mesmo no silêncio do quarto, com a brisa gostosa da noite fazendo-lhe companhia, Érico não conseguia acreditar no estranho rumo que os eventos daquela manhã tomaram.

Em resumo, a aposta virara contra os feiticeiros. O coração dele ainda batia enlouquecido quando se recordava do olhar frio de Isabel avaliando-o como se ele não passasse de um contratempo, um imprevisto insuperável numa quarta-feira qualquer. Se Isabel tivesse reagido com fúria, Érico teria compreendido. Apostar com os amigos que conseguiria sair com uma guria era ridículo. Brincar com os sentimentos dos outros era uma merda, e ele teria aceitado uma explosão, um tapa na cara ou gritos. Tudo, menos ausência de reação.

Aquela aura de Wandinha Addams causava mal estar em Érico. Era horrível não saber o que ela pensava, o que sentia. Como dizia a porcaria do ditado: "Águas paradas, águas profundas". Ele franziu o cenho para a constatação. Meu Deus, eu tô virando a tia Maia, pensou Érico. A irmã mais velha da Dona Dai era incrivelmente eficaz em aplicar ditados a todos os momentos e lugares, fossem eles aplicáveis à situação ou não. Ele abriu os olhos, esquecendo-se da tia, de Isabel e da aposta quando a porta foi aberta devagar.

— Podemos trocar uma palavrinha, amigão? — perguntou o padrasto, enfiando a cabeça pelo vão da porta. — Prometo não demorar.

Érico ergueu o corpo, assentindo com um sorriso quando Cléber ajeitou os óculos, fechou a porta do quarto, e sentou na colcha, na pontinha da cama.

O padrasto era alto, negro e tinha a compleição robusta de um guia turístico da savana africana. Apesar de gigante, Cléber era incapaz de qualquer ato violento ou palavras ácidas. Havia, em seu passo cadenciado, no sorriso faceiro e na maneira como inclinava a cabeça quando falavam com ele, uma atenção que era pura reverência e respeito ao interlocutor.

Cléber e a Dona Dai se conheceram quando ela estava grávida, sem saber o que fazer quando foi abandonada pelo pai da criança que carregava no ventre. Aparentemente, nada disso constituiu um problema para Cléber, que aceitou Érico como seu filho mesmo antes do nascimento propriamente dito.

Apesar da evidente diferença física, Cléber havia sido um pai exemplar. Foi ele quem recebeu os desenhos medonhos de Érico em todos os Dia dos Pais, quem compareceu às reuniões de escola com a Dona Dai, quem o ensinou a se barbear e quem o ensinou a nunca, nunca mesmo transar com alguém até que estivesse pronto para entrar numa farmácia e comprar, sozinho, as próprias camisinhas.

Cléber era um cara legal. Seu único defeito, porque até as melhores pessoas possuem uma pequena parcela de defeitos irrecuperáveis, era ser gremista. Se não fosse isso, o padrasto seria um pai exemplar, do tipo que ganha estrelinhas e tudo.

(Do pai biológico, um marinheiro-barra-biólogo alemão que parara algumas semanas no cais do porto, as recordações eram escassas. Havia uma foto dele, esquecida no fundo de uma das caixas antigas da mãe, mas já não importava mais. No espelho, as únicas coisas que Érico reconhecia como sendo daquele pai que ele sequer chegou a conhecer eram os olhos azuis claros como o mar de Santa Catarina, o rosto meio quadrado e o nariz reto. Sem estrelinhas para ele.)

Entre Muffins e Apostas | ✓Where stories live. Discover now