Felicidade

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É sábado, eu poderia estar descansando como todo mundo.
Mas não.
Estou trabalhando.
Preciso dessas horas extras para poder ter um dinheiro a mais.
Pelo menos no final de semana tem mais movimento e eu posso passar o dia vendo gente.
E o melhor, eu só cumpro o horário da manhã.
Me preocupo com meu irmão, mas ele sabe ficar bem sozinho.
Recebo uma ligação de casa no meu celular, faz meu coração disparar.
"Alô?"
Uma voz feminina fala.
- Alô, quem fala? - Pergunto preocupado.
"É a Clarice, seu irmão estava aqui fora e eu estava passando, como ele disse que estava sozinho resolvi ficar um pouco com ele."
Um alívio toma meu corpo.
- Então ele deixou você entrar? - Pergunto.
"Sim"
Ótimo, adoro quando ele ignora meus ensinamentos.
- Mas ele está bem? - Pergunto.
"Sim, eu apenas liguei para saber de você."
Saber de mim?
"Ele me disse que você trabalha, mas só para avisar que estou aqui e que me importo com você."
Tá, eu definitivamente to sonhando.
- Entendo, tenho que voltar ao trabalho, já já nos vemos. - Falo desligando rápido.
Jesus Cristo eu quase tive um infarto.
Isso tudo bem na frente de uma senhora.
- Falando com a namorada? - Ela pergunta sorrindo, ela ia lá com frequência.
- Não, é só uma amiga. - Eu falo sem graça coçando a nuca.
- Você sorri bobo assim para todos os seus amigos? Que bondoso. - Ela fala com um tom de sarcasmo.
Eu sorri? Mas como eu pude não perceber? Eu sou um idiota.
- Já pegou tudo que queria? - Pergunto desviando do assunto e saindo do balcão, ela sempre era a última cliente minha a vir e eu levava as suas compras até a casa dela, sempre rendia muitas conversas.
- Já sim. - Ela fala guardando sua carteira.
- Vamos então. - Pego todas as suas compras e ela me ajuda a fechar a loja.
No caminho vamos conversando sobre aleatoriedades da vida, como receitas de coisas ou minha vida escolar.
- Tenho uma ótima receita de um bolo que as crianças adoram, poderia fazer para o seu irmão. - Ela fala.
- Um dia. - Falo, já que nunca lembraria da receita dela.

Como os mais velhos podem não lembrar do nome dos netos mas lembram de qualquer receita na ponta da língua? Fala sério.

No meio dessa conversa surgiu um assunto um tanto interessante.
- Você tem que aproveitar bastante a vida, ela é muito passageira. - A senhora me fala.
- Como eu aproveito se tenho um irmão mais novo pra cuidar e tenho de correr para todos os lados ? - Pergunto frustrado.
- Parece que não está vivendo, mas se tivesse minha idade iria querer voltar a esse tempo de correria, a felicidade não é algo constante então aproveite os momentos que ela está presente.
- Não sei muito reconhecer a felicidade. - Falo em tom baixo.
- O que você gosta de fazer ?- Pondero um pouco em sua pergunta.
- Deixar meu irmão feliz. -Falo.
- Outra coisa.
- Hm....
- Pense rapaz, tem que ter mais alguma coisa. - Ela fala.
- Minha mãe?
- Algo em seu alcance. - Ela diz.
- Isso é muito difícil. - Falo desistindo.
- Você não respondeu minha pergunta.
- Claro que respondi! - Falo alto.
- Não, eu perguntei, o que VOCÊ gosta de fazer.- Fico confuso. - não o que gosta de fazer para os outros.

Os outros...
Incrível e triste.
Eu não sei o que me faz feliz.

- Não sei. - Penso. - Acho que gosto de desenhar. - Penso mais. - E tomar sorvete.
- Então faça isso quando chegar na sua casa. - Ela fala simplista.

Será que ter momentos de felicidade genuínos é tão simples assim?
Somente fazer o que eu gosto de fazer?

Depois de ajudar ela a arrumar as coisas deixo a casa dela para voltar para a minha casa, nervoso e ansioso ao mesmo tempo.
Será que felicidade cabe num pote de sorvete?
Será que sou digno de ser feliz?
Será que consigo proporcionar a mim mesmo sequer minutos de felicidade?

Não sei se posso responder tudo agora.
Uma coisa de cada vez.
Vou tentar pelo menos.
É o que mais faço.
Tento.

Sempre achei que a felicidade das pessoas era minha também.
Eu sempre me importei e me esforcei para deixar todo mundo feliz.
Mas acho que eu nunca tentei me fazer feliz.
As pessoas ao meu redor ficaram felizes comigo.
Tão felizes que me deixaram pra fazer as outras pessoas felizes.

Chego em casa e abro a porta, encontrando um monte de risadas.

- O que tá acontecendo? - Pergunto e vejo a cabeça com cabelos longos e castanhos de Clarice surgir no sofá seguida pelo de meu irmão.
- Estávamos brincando. - Ela sorri.

NÃO SORRIA SUA.

- IRMÃOZÃO. - O menino saí correndo e eu o pego no colo.
- Oi campeão. - Falo sorrindo e o colocando no chão.
Clarice me encara por uns segundos.
- Não pense que fugiu das minhas cosquinhas só por que seu irmão chegou. - Ela fala e ele mostra a língua.
- Ei, o que eu te disse de falar com estranhos na rua ? E deixou ela entrar ? - Falo o segurando pelos ombros. - Sem querer ofender Clarice.
- Eu conheço ela, ela é a moça do seu desenho. - Ele fala.

Esse pestinha.

- Ele me mostrou, é realmente muito lindo os seus desenhos, não pude deixar de ver mais alguns, você é talentoso. - Ela fala vermelha.
- Obrigado. - Falo me sentando no outro pequeno sofá.
- Seu irmão é tão fofo, estou apaixonada nele. - Ela fala olhando o menino que brincava de longe. - Não pude resistir a carinha de anjo dele.
- Nem eu se quer saber, ele se safa de muita coisa com essa carinha. - Falo rindo.
- Aah. - Ela se levanta e vai para a cozinha.
Depois de um tempinho ela volta.
- Desculpa eu tomar essa liberdade, mas eu achei que ele estava tristinho então comprei algo para ele e para você. - Ela fala com algo na mão.
- Não precisava, e você já parece de casa mesmo. - Sorrio.

Quando vejo o que ela segurava não acreditei.
Era um pote de sorvete de flocos.
Eu amo sorvete de flocos.

- Não acredito que você trouxe meu favorito. - Eu levantei indo até ela.
- Sério? Temos algo em comum então. - Ela fala sentando perto do balcão.

Eu pego uns potinhos e colheres e coloco tudo na sala.
Coloco as almofadas no chão e sentamos lá ligando a TV.
- Vamos ver um filme. - Eu falo e ela concorda.
- Vamos. - Ela se senta, comendo o sorvete.
- Não acha esse meio inapropriado para ele? - Ela pergunta apontando para o menino que se deliciava com o sorvete sem prestar atenção em nada.
- Ele vai comer esse sorvete e cair no sono, confia em mim. - Eu falo e ela ri.
- Se você fala. - Ela continua a comer o sorvete.

Lembro da senhora e da nossa conversa mais cedo.

- Ei. - Ela me responde com um "hm". - Por que sorvete?
- Por que sorvete me deixa feliz. - Ela responde.
- Temos mais uma coisa em comum. - Eu falo, e o filme começa.

Acho que achei algumas coisas que me deixam feliz.
A risada do meu irmão.
Um pote de sorvete.
Filme.
Clarice e eu.

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