Uma Gota de Veneno Serpenteia pela Pele (2 de 5)

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— Vai ficar pra trás, mesmo, doutora? — De novo o Andrade a empurrou.

Certo dia um feiticeiro chegou aos portões da cidade. Nas ruas movimentadas ele ouviu sobre a beleza da Princesa. Então, foi até o castelo, para comprovar o que diziam aquelas tantas bocas. E deslumbrou-se ao vê-la no jardim entre as colinas. Desejou-a. Mas, como não tinha nada em mãos a oferecer, o feiticeiro declarou: "meu coração em troca de vos ter".

Ultrapassaram a marca de 700 metros sob a linha do mar. 38ºC. As pedras sufocavam o som de seus passos. Estavam quase lá. O gosto salgado do suor. Passavam por um trecho um pouco menos estreito, contudo o teto os curvava, pressionando-os para baixo com o peso de um quase-mundo sobre eles.

Em resposta, a Princesa mirou a cidade lá embaixo. As ruas estreitas, as cores presas nas casas ou soltas nos tecidos, os soldados, as pessoas. Ignorou o homem ao seu lado. O seu povo precisava dela, dela por inteiro. Assim disse "não".

Andrade afastou-se dos outros. Retirou da bolsa três pequenos discos fixando-os nas paredes. Com um giro do mecanismo acionou cada um. Três luzes fracas e vermelhas marcava o local dos explosivos. Precisava instalar mais quatro daqueles. A caverna começava a se abrir, aquele seria o último ponto perfeito para preparar o plano B.

Três meses depois, o feiticeiro voltou ao palácio com um presente digno da Princesa. No meio do salão principal, ele entregou-lhe algo envolto pelos mais nobres tecidos.

Os cinco caminharam mais um pouco até tudo finalmente se abrir.

— Meu Senhor!

Havia uma cidade inteira ali embaixo. Ela havia sido tragada para debaixo da terra, os prédios estavam lá tocados apenas pelo tempo, mas a maioria ainda em pé. Sobre as cabeças deles: um céu nublado em sombras e rochas.

Para o horror da Princesa ao puxar os tecidos seus olhos tocaram em sua desgraça e de toda a cidade. Seus ouvidos queimaram ao som das palavras do feiticeiro, e a imagem do presente, que ela segurava, cravou-se em suas retinas. Seus órgãos pareciam se mover. Sua coluna estalava e se estendia, e suas costelas pressionaram a pele. De dor ela caiu.

— Preparem... as câmeras. — A voz de Torres veio com um chiado além de um leve arfar.

Aquela seria uma descoberta inacreditável para o resto do mundo. A confirmação de uma lenda. O surgimento das mais estapafúrdias teorias. Aliens? Tecnologia vinda do futuro? Alguma catástrofe natural? Punição divina? Ação humana? O quê? Como? Aonde fossem as pessoas os parariam sedentas por explicações acerca dos mistérios da Cidade Encantada, e esta enfim veria novamente a luz, a luz dos flashes da Mídia. Em breve.

O feiticeiro a deixou agonizando, e ergueu os olhos para a cidade. Tudo ruiria naquela noite mesmo.

Os primeiros passos pela Cidade Encantada assombrou o grupo. Havia pessoas paradas nas ruas, dentro das casas, espalhadas pelo chão. Mortas. Imóveis em seus últimos gestos: homens, mulheres, crianças. Pele, carne, dente, cabelos, unhas, ossos. Suas feições conservadas, rígidas e secas. Aquilo mais parecia uma enorme tumba coletiva.

Os primeiros que encontraram fossem em pé, sentados ou caídos no chão, todos possuíam o terror no rosto. Alguns presos em gritos, outros agarrados ao próprio corpo. Suas lágrimas viraram pó. Suas pálpebras fechadas eram fundas, abertas: dois vazios aterradores.

Algumas possuíam anéis, cordões, brincos. O tempo corroera os tecidos. Trapos lhes cobriam os corpos, e em alguns casos nem isso lhes sobrara. Todos expostos ao deleite das eras até se partirem e não restar mais nada. Lembranças.

A Dra. Martins aproximou-se de um. Os ossos eram perceptíveis sob a pele, os dos joelhos, dedos e costelas principalmente. Aquelas pessoas haviam secado até restar apenas um rascunho da forma que possuíam. A cor de calcário dava a ilusão de serem mórbidas estátuas, mas ela sabia a diferença.

— Mumificados... — A palavra saiu sorrateira como o sorriso de seus lábios. Aquele lugar era um achado inestimável.

Os cinco adentraram mais na cidade. A partir de certo momento eles perceberam que os corpos começavam a apontar para uma direção. No entanto, quanto mais o grupo andava naquele sentido mais as pessoas pareciam pegas de surpresa, sem jamais terem sabido o que acontecera a elas.

A cidade inteira parou enquanto a magia investia sobre ela. As carnes definharam, o sangue secou. Tudo ficaria ali... esperando... para sempre.



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