Vendo a incrível construção anil, me lembrei da história que contava a origem do nome dado à cidade de Atenas. Certa vez, quando a cidade ainda não possuía nomenclatura, uma votação foi montada entre todos os seus habitantes, visando escolher um nome prodigioso para o terreno. Todos os homens votaram em Poseidon, Rei dos Mares, e todas as mulheres votaram em Atena, Deusa da Sabedoria. Pela diferença de um único voto, Atena ganhou a contenda e a cidade foi nomeada Atenas. Contudo, Poseidon nunca fora um bom perdedor, e abraçou a cidade rochosa com uma calamidade de ondas e ventos durante dias, tão terrível que só foi aplacada quando uma virgem engrinaldada foi entregue às ondas. Todos os Atenienses culparam as mulheres pelo desastre, já que elas haviam votado em nome da Deusa Atena, e assim, desde então, o voto feminino foi vetado na Pólis. E pensar que eles se orgulham de seu projeto de democracia. Uma democracia fraca e seletiva, tão hipócrita quanto seus mestres podiam ser, que determina de forma burra quem pode ou não ter seu direito de escolha levado a sério. A grande malícia de um Ateniense é sua oratória, negar isso à qualquer morador da região é como negar uma lança a um Espartano, e embora eles nos chamem de apelidos e maldições, em minha cidade até mesmo as crianças possuem uma lança.

   O porto do rio Potámis, atrás do templo, fervilhava com gritos e ordens, mercadorias e viajantes. Barcos chegavam e partiam o tempo todo, e seus mastros erguiam velas de todas as cores. Marinheiros procuravam o fundo do canal com longos cajados, empurrando as balsas repletas de pessoas e animais. Crianças corriam de um lado para o outro, afugentando as aves que tentavam roubar o soldo da pescaria.

   Um homem começou uma briga na entrada do santuário, reclamando que haviam lhe furtado uma adaga, mas ele foi repreendido pelos sacerdotes e, quando guardas chegaram para levá-lo, se abrigou nas entranhas do palácio do Deus dos Mares. As pessoas vinham ao templo de Poseidon para buscar graças e pedirem ajuda, e dizia-se que em Tégea a sorte do local emanava do mármore azulado para as pessoas, tal qual o brilho do sol. Estar na cidade para mim era um sinal de boa sorte. Os Deuses finalmente poderiam me notar e ajudar em meu objetivo.

   Por fim, decidi ficar de guarda, caso os sacerdotes ousassem sumir com nossas armas. Pedi para que meus amigos não se demorassem lá dentro pois ainda perseguíamos nossos inimigos. Então um sentimento péssimo me invadiu, pelo que eu havia dito, pois apressar um homem em sua conversa com os Deuses não era algo honroso a se fazer. Me resignei cheio de culpa, e decidi também entrar no templo. Mas no momento em que eu fiz menção de entregar minhas armas para os sacerdotes, na entrada do grande amontoado de colunas e vigas, alguém segurou meu braço com força. Girei tocando o punho de minha espada, mas logo o larguei, pois reconheci o rosto de meu amigo.

   Cletarco estava na cidade.

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   Cletarco de Esparta era um homem forte, de braços musculosos e queixo largo. Os cabelos grisalhos lhe atacavam o topo da cabeça, tentando abrir caminho entre os fios negros, mas a barba já havia sido derrotada pela branquidão da meia idade.

   Meu velho amigo e mentor, que era um dos melhores ferreiros de toda a Grécia, havia viajado para Tégea a fim de vender equipamentos. Ele chegara à Pólis naquele mesmo dia, e foi neste encontro que me contou sobre as mudanças que Cleômenes fazia em Esparta. Eu fiquei enfurecido, e apertei o cabo de minha lança, mas Cletarco tocou meu ombro e me olhou com seus olhos cansados, o que aliviou minha mente. Vendo aquele olhar, me lembrei de quando era jovem, disputando as corridas Hoplitas ao lado dele, e de como gostávamos de competir um contra o outro.

   Sorri naquela ocasião, como não sorria há muitas luas, e senti o coração leve de preocupações.

   Cletarco havia me ensinado a arte de forjar, quando eu ainda estava no Agogê. Naquela época distante, ele havia me contado um de seus segredos, que consistia em criar lanças com a madeira da própria Tégea; dos bosques que cresciam ao redor da cidade. Não havia árvores como aquelas em toda a Grécia, e o carro de bois do velho ferreiro sempre voltava para Esparta repleto de tábuas e ripas. Eu lhe apresentei meus homens, que me acompanhavam em minha vingança, e ele os parabenizou pela honra do empenho. Então, sem mais nem menos, ofereceu seus serviços para afiar nossas armas e começou o trabalho ali mesmo, na movimentada entrada da cidade.

   O ferreiro terminou o trabalho e guardou a pedra de amolar cuidadosamente dentro de seu manto. Com uma das mãos Cletarco segurou um punhado de cabelos de Zési, passou a lâmina da espada de Agnéio pelas mechas para garantir que a espada estava verdadeiramente afiada, e abriu a mão em seguida, deixando os cabelos cortados chegarem ao solo. Zési se assustou e deu um salto para trás, levando as mãos aos cabelos intactos. Tudo fora um truque do velho, que fingiu cortar os cabelos da mulher e soltou palhas tingidas no chão. Todos nós, inclusive Zési e algumas pessoas que passavam pela rua, rimos daquilo.

   Uma felicidade genuína me acometeu, e, com olhos sinceros, olhei para os céus agradecendo por aquele momento de confraternização. Todavia, os Deuses não descansam, e senti um sopro diferente passando por mim. Não era uma brisa comum, nem um vento de inverno. Ele passou pelos meus cabelos, frio como a madrugada, tal qual um murmúrio da morte. Um pedaço de tecido multicolorido era carregado por esse ar fantasmagórico, bordado com formas e animais estranhos, os quais eu nunca havia visto. Ziliáris, rápido como uma serpente, esticou seu braço e apanhou o tecido. Ele o cheirou e olhou para a esquerda e para a direita, depois colocou uma das mãos ao lado da cabeça, atrás de uma orelha, e escutou. Todos nós ficamos em silêncio, enquanto Ziliáris ouvia o sussurro da natureza. Em um piscar de olhos ele tocou meu ombro, e me contou que se eu quisesse recuperar minha mulher aquela era a hora, pois os Persas estavam no porto, tentando chegar ao Mar Egeu através do Potámis.

   Nos armamos e partimos como feras. Cletarco e Zési tentavam nos acompanhar o melhor que podiam. Cruzamos o limite do templo e demos na entrada do porto. Ali o caminho tinha um desnível, baixando cada vez mais até a água, e embalados pela ladeira corremos ainda mais rápido.

   Foi neste instante que vi uma embarcação de velas negras, sendo carregada com mercadorias e passageiros. Mais de vinte Persas preparavam o barco. Quando nos viram correndo e armados, com o Lambda de Esparta em nossos escudos, se assustaram e começaram um alvoroço tal qual um vespeiro sacudido. Homens corriam e caíam por sobre carros, tendas eram atiradas no convés de qualquer modo, e ao menos dez deles começaram a empurrar a grande embarcação para o rio.

   Foi aí que vi Lanthasménos, e aquela visão estimulou meu coração de tal modo que rugi como um animal; meus irmãos, inflamados pelo rugido, me acompanharam em um grito de guerra. Ela estava ali, no barco Persa, em pé ao lado de algumas almofadas cuidadosamente colocadas no convés. Seus olhos brilhantes se encontraram com os meus, e pude ver a surpresa em seu semblante. Ela não estava nua, como quando era oráculo em Esparta, e nem estava encimada por um manto. Vestia calças marrons e usava um pesado camisão no torso, azul e amarelo. Lanthasménos tinha os olhos maquiados e as maçãs do rosto coradas. Joias se derramavam em seu pescoço, como uma chuva de riqueza, e brincos de prata tilintavam pendurados nas suas orelhas. Uma pedra brilhava em sua testa, como os meus olhos um dia brilharam por ela, e uma capa branca descia em suas costas, acompanhada por um capuz bordado. Na cintura ela carregava um cinto feito de moedas de cobre. Estava tão diferente que, provavelmente, ninguém a reconheceria. Mas eu havia vivido com ela. Havia construído uma morada para nós, esperando passar o resto de nossos dias em meio à natureza. E com ela eu tinha criado vida, que nos foi roubada. Eu a reconheceria em qualquer lugar do mundo, e vestida de qualquer maneira.

   Vim para te resgatar, meu amor, eles não conseguirão tirar você de mim. Era o que eu pensava. Mas ela era o meu amor maldito. Sempre fora. Eu apenas ainda não sabia.

   Existem poucas certezas na vida, mas naquele momento, quando eu vi uma falange Espartana se pondo entre eu e meus inimigos, tive certeza de que somos apenas peças dos Deuses, sendo mexidas de um lado para o outro em um grande tabuleiro de jogos.

   Uma parede de escudos, com cinquenta guerreiros dispostos em cinco fileiras de profundidade, foi formada no baixio, defendendo o barco Persa. Por um momento eu não entendi, e pensei em atacar meus próprios irmãos de Pólis, mas em Esparta há irmandade. E pouco a pouco fomos diminuindo o ritmo da corrida até pararmos há menos de dez passos da parede de bronze Espartana.

   Lanthasménos deu uma gargalhada maligna, que veio cortando o ar por sobre os espartanos com escudos e lanças, e chegou até meus ouvidos, estraçalhando o meu coração.

   Hymos, o Campeão, gritou uma ordem e Plístia, Agnéio e Ziliáris fizeram uma débil parede de escudos, que foi tristemente reforçada quando Cletarco chegou com um escudo de madeira e Zési ousou pegar um remo no chão. Olhei para meus amigos, orgulhoso, pois eles estariam comigo até o fim.

   Eu apertei o punho da lança e estava prestes a erguer meu escudo, juntando-me a meus amigos, quando uma trombeta tocou e, cavalgando de forma displicente, enquanto o barco Persa finalmente deslizava para o rio e começava a fugir do alcance de minha fúria, vinha Cleômenes, o Rei de Esparta.

Paráxeni - A Ruína dos Persas. (Por Marco Febrini.)Όπου ζουν οι ιστορίες. Ανακάλυψε τώρα